COLUNAS
Quinta-feira,
10/1/2008
Trabalhar e cantar
Adriana Carvalho
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Atirei no sofrê No pendão do milho Atirei, mas não matei No pendão do milho (cantiga das trabalhadoras de Serrinha, Bahia)
Destalar o fumo significa retirar o veio principal da planta, que é aproveitado industrialmente. Hoje há máquinas que fazem esse serviço, mas décadas atrás era nos chamados salões de fumo que os trabalhadores rurais, principalmente mulheres, se reuniam para fazê-lo manualmente. Os movimentos das mãos, cadenciados, se repetiam por horas a fio, muitas vezes invadiam a madrugada. E a única certeza é que no dia seguinte seria tudo igual. E assim também no próximo. E no próximo.
Mas o sertanejo é, antes de tudo, um forte, escreveu Euclides da Cunha. Forte, criativo e solidário. Por meio do canto e do trabalho em mutirão, as destaladeiras de fumo de Arapiraca, em Alagoas, tornavam a lida menos dura.
Também faziam assim as mulheres que trabalhavam na colheita de cacau em Ilhéus e as descacadeiras de mandioca de Barrocas, na Bahia; as plantadeiras de arroz de Propiá, em Sergipe; as fiandeiras de algodão de Francisco Badaró, em Minas Gerais.
E tantas outras, agora já senhoras que trancaram as músicas no baú da memória desde que o patrão ligou o rádio no pátio de trabalho, desde que a TV chegou e que as crianças foram deixando de ser embaladas pelas cantigas de suas mães.
O resgate e o registro dessas memórias foi o objetivo do trabalho da musicista Renata Mattar que há mais de dez anos percorre o Brasil visitando comunidades em que havia a cultura de cantar durante o trabalho. O resultado pode ser visto no CD Cantos de Trabalho, lançado pelo selo Sesc, do Sesc de São Paulo e que tem a participação das destaladeiras de fumo de Arapiraca, da Cia. Cabelo de Maria e da cantora Ceumar. O repertório foi apresentado no palco do Sesc Pompéia, no começo de dezembro. "Eu viajava e ia perguntando quem conhecia uma comunidade em que as pessoas cantavam na hora do trabalho. Vi que essa cultura estava se perdendo. Em alguns vilarejos, ficávamos horas, com muito jeito, tentando estimular as mulheres a lembrar das músicas", conta Renata. Mas quando uma puxava o canto, o fio das lembranças ia se desenrolando e as outras adicionavam as vozes.
Em 2003, com o apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Renata conseguiu viajar pelo país com mais estrutura para gravar os cantos de trabalho. Focou sua pesquisa nos cantos das mulheres, embora haja também aqueles entoados pelos homens, que ela pretende registrar no futuro. Conheceu 19 comunidades em vários estados do Nordeste, Sudeste e Sul do País. "No Sul, talvez por ser uma região onde a industrialização chegou mais cedo, a cultura dos cantos de trabalho já estava muito descaracterizada. No Nordeste encontramos material mais autêntico. Na Bahia ainda havia algumas casas de farinha muito artesanais, como em São Nicolau, onde encontramos um material fantástico", diz Renata.
Foi durante essas viagens que ela conheceu as mulheres destaladeiras de fumo de Arapiraca. Lá as cantigas estavam mais preservadas por obra do mestre Nelson Rosa, que aos 74 anos é "coordenador de grupos de canto, poeta popular e patrimônio vivo do estado", em suas próprias e justas palavras. Ele as incentiva a continuar cantando e se apresentando na região. Há décadas luta para preservar as tradições locais, como o coco de roda, cantado em outra ocasião em que o trabalho em mutirão se fazia necessário: para bater o chão das casas de taipa. Chegou a dar aulas de coco na escola da região. Uma das alunas, agora com seus 40 anos, apresentou-se com ele e as destaladeiras de fumo no palco do Sesc Pompéia.
Os cantos não têm como único papel amenizar o duro trabalho diário, conforme explica Renata. Unem as comunidades. "Em uma das comunidades que visitamos, um senhor me disse assim: aqui, se um passa fome, todos passam. Se um come, todos comem", diz Renata. Quando cantam, ninguém é mais do que ninguém. "Notei que nas comunidades que utilizam o canto no trabalho uma harmonia maior em relação a outras comunidades. Eles também têm seus problemas e picuinhas humanas, mas mostram uma união maior", diz Renata.
As letras das cantigas falam da lida, mas também têm como temas o amor, a saudade, o sofrer. Algumas são engraçadas. Umas são muito dançantes. Outras embalam como cantigas de roda ou de ninar, tanto que eram também cantadas pelas mães para suas crianças. A maior parte tem poucos versos e melodia curta, repetida muitas vezes, como um mantra.
As mudanças que houve na agropecuária nas últimas décadas, o aumento do uso da tecnologia e a industrialização, são processos inevitáveis, é verdade. Mas a dinâmica de trabalho das mulheres com seus cantos é ainda de uma vanguarda que nenhum grande produtor, empresa ou gestor de recursos humanos teve a capacidade de compreender. Se a cultura do trabalho de mutirão, a música e a espontaneidade estivessem mais presentes na lida contemporânea não seria necessário gastar tanto tempo, dinheiro e saliva com palestras e treinamentos sobre "motivação" e "trabalho em equipe". Repetir o velho e demagógico bordão "nossa empresa é como uma família" também seria dispensável.
Como diz o etnomusicólogo Paulo Dias no livreto do CD Cantos de Trabalho, "o sentido da palavra 'trabalho', nos dias de hoje, parece cada vez mais recuar às origens, à raiz etimológica: 'trabalhar', segundo o Aurélio, vem do latim 'tripaliare - martirizar com o tripaliu (instrumento de tortura)'. É como (...) realizar gestos mecânicos, os mesmos de ontem e anteontem, em ambientes onde a solidariedade entre as pessoas cede lugar à competição por produtividade, com intervalo para a marmita".
Os frutos do trabalho de Renata, por sua vez, têm sido bem mais doces e nutritivos do que o do martírio descrito por Dias. "O interesse de pessoas de fora pelos cantos das comunidades está fazendo com que as crianças e adolescentes valorizem mais sua cultura. Antes eles menosprezavam as senhoras que cantavam essas músicas, hoje já se interessam em aprender as canções", diz Renata, acrescentando que na pequena escola de Arapiraca, hoje os cantos de trabalho são ensinados em sala de aula. É um reconhecimento que, assim como os aplausos da platéia lotada no Sesc Pompéia, as destaladeiras de fumo não esperavam a essa altura da vida. Ao final da apresentação, vou cumprimentar dona Rosália Gomes dos Santos, 63 anos, que trabalhou na roça de fumo desde pequena e é, segundo Renata "um verdadeiro baú de músicas". Ela me abraça como se me conhecesse há muitos anos e não me visse há muito tempo. Enche-me de beijos maternais. "Eu antes olhava um avião passar no céu e dizia que nunca que ia entrar num bicho daqueles. Mas foi como se eu tivesse nascido num avião, não tive medo nenhum. É muito bom viajar e se apresentar", conta ela. Que bom tê-la conosco, para nos embalar com refrões centenários, mesmo já sendo crescidos e em pleno século XXI.
Para ir além Cantos de Trabalho
Adriana Carvalho
São Paulo,
10/1/2008
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