COLUNAS
Terça-feira,
12/2/2008
O fantástico mundo de Roth
Daniel Lopes
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Quantos escritores que publicaram seu primeiro romance antes dos 30 anos já apareceram com uma obra de grosso calibre? Passando os olhos rapidamente pela minha estante, apenas O estrangeiro, de Albert Camus, vem me socorrer na resposta a essa pergunta. Há El túnel, mas Ernesto Sabato o publicou apenas aos 37, marcando sua estréia na literatura. Há Dusklands, de J. M. Coetzee, mas que foi publicado quando seu autor contava 34 anos.
Talvez, se me demorar mais na estante, eu encontre uma ou duas companhias para Camus, e se for pesquisar pela internet, aparecerão mais um punhado. Mas não vou. Porque a pergunta seguinte é: quantos escritores publicaram antes dos 30 um romance, não apenas de considerável qualidade, mas, somado a isso, de incrível fôlego e sofisticação? A obra primeva de Camus na ficção não deixa ninguém com dúvidas de que se trata de um ótimo livro, mas é um romance curtinho.
Philip Roth apareceu com Letting go em 1962, ou seja, quando o autor tinha 29 anos ― em cima da hora! É um livro de espantosa qualidade. Espantosa não em retrospectiva, pois hoje nós sabemos do que Roth aparentemente sempre foi capaz de fazer. Mas se colocarmos em contexto e atentarmos apenas ao fato nu e cru de que o livro foi a primeira incursão do escritor estadunidense pelo romance (depois do bem-sucedido livro de contos Adeus, Columbus), o susto é inevitável. Poucas vezes na história da literatura alguém demonstrou tanta habilidade e vontade, ânsia, fome, fôlego para contar uma história assim no início de carreira. E podem sair pesquisando pelo Google.
São 630 páginas na mais recente edição da Vintage. No romance (atualmente fora de catálogo no Brasil), estão intercalados capítulos em primeira pessoa, acompanhando as andanças de Gabe Wallach, com outros em terceira, cobrindo as vidas de outros personagens. Gabe é um jovem professor de Inglês na Universidade de Chicago, solteiro e com o pai viúvo morando em Nova York. Mesmo a contragosto, esse professor está sempre se intrometendo nas vidas de outras pessoas, pois é acometido de um irrecuperável espírito altruísta ― ou melhor, de um incontrolável impulso altruísta. Embora ele não tenha inteira consciência disso, nós leitores estamos por dentro graças a nada menos que a própria narrativa de Gabe. Ora, observem este incrível parágrafo, prova do impulso que faz o personagem gravitar em torno de outros seres, e da frustração quando ele em nada pode ajudar, quando é impossível ajudar:
"Quando cruzei a ponte e estava dobrando para pegar a rua Dubuque, tive de diminuir a velocidade por causa de um acidente mais à frente. Um carro de polícia, uma ambulância e meia dúzia de pessoas reunidas sob a luz da rua. Havia também um caminhão de reboque na cena, cujo motorista reconheci, e na pista congelada vi uma maca. Eu estava pronto para contornar o carro de polícia e tomar a próxima rua cruzada, quando vi que na maca havia um cobertor, e embaixo do cobertor, uma pessoa. Parei o carro, saí e caminhei rumo ao centro do círculo. Acho que os policiais devem ter pensado que eu era um amigo ou parente que havia sido chamado, porque os dois ficaram de lado e me deixaram passar. O que vi me surpreendeu. O rosto aparecendo por sobre o cobertor não era de ninguém que eu conhecia."
Essa passagem também deixa clara a habilidade de Philip Roth na lida com o texto. É bem verdade, e o atestam as mais de seiscentas páginas, que nessa ficção ambientada nos anos 50 às vezes há divagações em demasia entre uma fala e outra dos personagens, e muitos pontos do enredo se repetem à exaustão, numa tentativa clara de fazer o leitor perceber que aquilo sim é importante, e não pode de modo algum passar batido. Sem falar nas páginas e páginas em que os personagens pensam, pensam e pensam, e lembram, lembram e lembram. Mas, como sabemos, Roth irá apurar sua técnica nas décadas seguintes, perdendo às vezes em fôlego, mas ganhando em intensidade ― vide seu penúltimo romance, Everyman (no Brasil, Homem comum), denso em suas pouco mais de cento e cinqüenta páginas.
Alguns temas a que o escritor iria recorrer incessantemente nos anos por vir já estão bem presentes em Letting go. O sexo não é um deles. O judaísmo, sim. Ou melhor, os conflitos que ocorrem dentro de famílias judaicas. Como Roth é um ficcionista, e não um sociólogo ou historiador, ele está sempre à vontade para lançar mão ora da ironia e do sarcasmo, ora de críticas mais abertas (mas, nem por isso, menos ficcionalizadas), até o ponto de não ser bem visto por membros da comunidade judaica de seu país.
Nesse livro do início da década de 60, Gabe é de uma família judaica, mas de judeus não-ortodoxos. Assim, a seu velho pai pouco importaria que o filho optasse casar-se com uma mulher católica ou protestante. O mesmo não se dá em ralação a Paul Herz. Paul trabalha na mesma universidade que Gabe, e é casado com Libby, uma jovem de saúde frágil e temperamento explosivo. Paul é de uma família judaica ultra-conservadora. Por ter escolhido uma não-judia para esposa, fez os pais sofrerem profundamente (e o deserdarem). À míngua, ele e a também despossuída companheira vão viver uma vida extremamente difícil, pois as contas nunca fecham, apesar das economias. Como se não bastasse, para complicar tanto a situação financeira do casal quanto a saúde de Libby, esta ainda teve de se submeter a um aborto logo após o casamento. Se tivesse gerado a criança, provavelmente sua saúde não teria se deteriorado (o procedimento era ilegal, e portanto muito inseguro), mas, certo como dois e dois, o casal iria à bancarrota.
Os vários capítulos que investigam esses dramáticos anos do casal Paul e Libby Herz são os de maior intensidade em Letting go, e em si já com carga suficiente para se construir uma ótima novela. Não apenas pela perturbação mental que o aborto deixou nos dois, mas também pelas sucessivas e fracassadas tentativas de Libby de se fazer aceitar pelos pais do amado. Ela passou pelos complexos processos de conversão ao judaísmo, tendo inclusive desistido dos estudos para uma maior dedicação ao futuro marido, mas nem por isso deixou de ser, aos olhos da família de Paul, uma mera "gentia". Para agradar aos pais e a si mesmo, Paul queria que a união fosse consagrada por um rabino, mas este, ao tomar conhecimento da situação religiosa de Libby, rudemente declarou:
"Cale a boca! Você é um secular, então seja secular! Não venha aqui até minha sinagoga com seus pés lamacentos por conta de razões sentimentais! Eu não casaria vocês mesmo se fossem dois judeus! Agora saia! Você é estúpido, uma praga e um covarde! Saia!"
A união dos dois acaba sendo feita modestamente por um Juiz de Paz.
Ao ficar por dentro dessa história (desse histórico), Gabe não se furta a oferecer sempre que pode ajuda ao casal. Seja ao colocar seu carro à disposição quando Paul é obrigado a vender o próprio, seja ao assumir a função de "intermediário" num complicado processo de adoção, sonho de Paul e Libby; esta, com a saúde que tem, foi alertada pelos médicos de que qualquer gravidez apresentaria grave risco de morte.
Gabe sente-se também com remorsos pelo fato de estar diante daquele jovem casal renegado pelos pais, carentes do amor e cuidado, enquanto ele próprio tem um pai que sempre lhe liga de Nova York, e do qual, estranhamente, sempre tenta fugir. Aqui encontramos outra característica que também estará em toda a ficção posterior de Roth: a complexidade e a ambigüidade dos personagens. Gabe por si mesmo: "Estava começando a parecer que, em direção àqueles por quem eu não sentia fortes sentimentos, eu gravitava; onde existia sentimento, eu fugia".
Só espero não estar dando a impressão, e estou, de que esse character Gabe Wallach é o astro central do sistema Letting go. A verdade é que, mesmo enquanto lemos seu relato em primeira pessoa, não há como deixar de perceber que são as mulheres que têm papel central no enredo. Há, além de Libby, Martha Reganhart, uma jovem divorciada e mãe de duas crianças, entre elas a arguta Cynthia (em contraste com seu irmãozinho lento de raciocínio); Theresa, jovem engravidada por um sujeito que ao que parece não irá assumir o filho, que deverá ser adotado por Libby/Paul; e outras mais secundárias, como Pat Spigliano, esposa do chefe de departamento de Gabe, que, surfando na crista da onda do racismo da época, vê as relações inter-raciais de forma tão perniciosa como o incesto (explica à sua pequena filha que "ela não poderia beijar crianças de cor pelo mesmo motivo que não poderia casar com seu irmão").
Como constatará quem ler o romance, as mulheres de Philip Roth não são perfeitas ou qualquer tipo de projetos de deusas. Pelo contrário, são seres à beira da loucura (Libby), que não se decidem sobre o que querem (Martha), com sintomas de idiotia (Theresa). Mas, ao mesmo tempo, enérgicas, com grande capacidade de se adaptar a situações-limite, com paixão de viver. Mulheres reais, enfim, pintadas com tintas fortes. O que não é de se estranhar, vindo de um admirador de Nathaniel Hawthorne.
E já que falei da esposa do chefe de departamento de Gabe, vale a pena acrescentar que o mundo acadêmico é outro dos alvos preferenciais de Roth. Sempre que pode, ele volta-se, com elegância, contra o pseudo-intelectualismo de professores e estudantes, contra a idéia da universidade como habitat do supra-sumo da espécie humana. Vejamos essas duas passagens bem próximas uma da outra, impressões captadas pelo narrador-professor Gabe Wallach:
"Nós [professores] vivíamos sempre à beira de um profundo abismo: havia a chance de que um de nós desse A para um ensaio a que outro tivesse dado um B.
(...)
Sam McDougall [um professor] havia escrito uma longa obra sobre a história da pontuação, e (...) era uma das mais importantes autoridades em ponto-e-vírgula e travessão. Um ano atrás ele desenterrou dois erros no uso de vírgulas em um artigo meu em American Studies, e desde então optou por sentar-se próximo a mim nas reuniões de professores para me mostrar a luz."
Captaram a fatuidade da academia, ou pelo menos de parte dela? E o humor? Eis aí outro traço inseparável da produção de Philip Roth. Dos momentos mais soturnos e depressivos ele é capaz tirar da cartola o coelho da graça; sem imperícia, diga-se de passagem, o que é fundamental. E é assim, já trazendo o embrião de vários conflitos e do estilo que Roth iria aprofundar e aperfeiçoar no futuro, que Letting go se faz uma leitura convidativa, feita por alguém que ainda teria muitas histórias para contar.
Para ir além
Daniel Lopes
Teresina,
12/2/2008
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