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COLUNAS

Quinta-feira, 21/2/2008
Anarquia brasileira
Luiz Rebinski Junior
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+ 2 Comentário(s)

Desde 2005, quando o primeiro show dos Sex Pistols, realizado na St. Martins Art School, em Londres, em 1975, fez 30 anos, uma série de comemorações tem servido para lembrar e discutir o legado do movimento punk. No ano passado, 2007, a bola da vez foi Never Mind the Bollocks, Here's the Sex Pistols, álbum de estréia do grupo que também completou o 30º aniversário.

De origem despretensiosa, o punk ganhou contornos de movimento social depois que Malcolm McLaren, um empresário canastrão, resolveu juntar alguns desocupados que perambulavam pela loja de sua mulher, a estilista Vivienne Westwood, e formar uma banda de rock. Vestidos como mendigos e desprovidos de qualquer habilidade musical, os quatro pupilos de McLaren ― Johnny "Rotten" Lydon (vocal), Steve Jones (guitarra), Paul Cook (bateria) e Glen Matlock (baixo), mais tarde Sid Vicious ― desencadearam uma grande agitação juvenil ao mesclar música tosca, tocada em ritmo veloz, com discurso anarquista.

Incitados pela descrença geral no capitalismo e pelas reformas da primeira-ministra Margaret Thatcher, que à época reduziu os serviços sociais prestados pelo Estado à classe trabalhadora, o barulho provocado pelos três acordes mal tocados dos Pistols ganhou características políticas e ecoou além das fronteiras da Europa.

Com alguns anos de atraso, música e ideologia punk aportaram no Brasil, sendo assimilados por jovens de classe baixa sedentos por algo que lhes pudesse dar voz política em um país imerso em uma ditadura e ao mesmo tempo servisse como uma forma de entretenimento. Botinada ― A origem do punk no Brasil, documentário dirigido por Gastão Moreira, tenta mostrar o surgimento da aglutinação de jovens brasileiros, no começo da década de 1980, em torno da até então pouco conhecida "filosofia" punk.

Aos primeiros minutos do filme fica evidente o caráter pouco expansivo do punk no Brasil, com maior concentração em São Paulo/ABC paulista e iniciativas isoladas em Estados como Rio Grande do Sul (Replicantes), Bahia (Camisa de Vênus) e no Distrito Federal (Plebe Rude e Aborto Elétrico). Por isso parece pouco natural dizer que houve um "movimento punk" por aqui, se considerarmos o tamanho do país e a pouca abrangência que as idéias punks alcançaram em uma época em que não existiam as facilidades de comunicação de hoje ― ainda estávamos há pelo menos uma década e meia da internet, as informações chegavam com dificuldade e eram restritas aos grandes centros urbanos. O que aconteceu no Brasil, em São Paulo mais especificamente, teve muito mais um caráter de "turma" ou "gangue" do que algo que possa lembrar uma cena organizada. "Tem gente que leva o punk muito a sério, como se fosse um movimento político de transformação. Não é isso", diz Clemente, do grupo Inocentes, em uma das passagens do filme.

Ideologia
A contestação de ordem política e social, como mostra Gastão, restringia-se a um ou outro jovem mais informado e politizado. A maioria dos punks se revezava entre brigas com gangues rivais ― a rivalidade entre São Paulo e ABC era a mais acirrada ― e festas para ouvir punk rock.

Em comum aos punks ingleses, que em geral eram filhos de operários vindos dos subúrbios de Londres e com pouca voz ativa na sociedade, os similares brasileiros tinham o desemprego e a falta de liberdade de expressão como mote para suas aglutinações cheias de som e fúria. Mas assim como seus precursores, os punks brasileiros se notabilizaram pela falta de clareza e consistência de sua ideologia e reivindicações. O punk, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, chocou muito mais pela estética radical e agressiva ― que logo foi vista como reflexo de uma postura genuinamente adolescente ― do que por sua teoria anarquista, que até hoje, diga-se de passagem, não se sabe o que quer dizer; nada além do vago "destruir para refazer".

Do ponto de vista social o punk foi totalmente assimilado pela indústria cultural, que ao longo dos anos incorporou todo o aparato ideológico punk, transformando-o em mais um subproduto do capitalismo ― dando origem a expressões como "punk de boutique". Com relação aos três acordes não foi muito diferente, já que hoje é comum ver bandas ditas punks em programas de auditório e até rádios AM.

O que ficou ― e isso parece ter sido algo que se desenvolveu à revelia dos punks ― e se alastrou com intensidade e força foi a idéia de livre iniciativa que hoje, em tempos de web 2.0, blogs e myspace, está mais forte do que nunca. Muito além dos visuais fetichistas criados por Vivienne Westwood, que foram incorporados rapidamente pela moda mainstream, o do-it-yourself fez do rock algo bem mais palpável e descomplicado ao se opor ao virtuosismo da onda progressiva que dominava os anos 1970. O lema "faça-você-mesmo" se alastrou mundo afora e encontrou abrigo em outras formas de arte, influenciando escritores, artistas plásticos e cineastas. É aí que reside o grande legado do punk enquanto movimento de contracultura. Ao reforçar a idéia de que tudo está ao alcance de todos, bastando apenas certa dose de talento e persistência, o punk democratizou o acesso à arte ― ainda que coisas bizarras tenham aflorado a partir do encorajamento punk. A cena que hoje se conhece como indie no Brasil, deve muito aos jovens dos anos 1980 mostrados em Botina. De certa forma, aqueles rapazes podem ser considerados os desbravadores do modelo empreendido hoje para se fazer e consumir música ― ainda que, na época, fosse pouco provável que soubessem disso, nada que lhes tire o mérito.

O próprio filme de Gastão Moreira é emblemático da postura de enfrentamento revelada pelo punk, já que é visivelmente uma obra de baixo orçamento e que tem em sua essência o espírito punk. Além de trazer depoimentos de figuras seminais da cultura punk ― Kid Vinil, João Gordo, Ariel, Clemente ―, o documentário resgata cenas raras que ajudam a entender a efervescência da época em torno dos três acordes. Gastão também traz à tona gente ligada à história do punk brasileiro, como Antonio Bivar, autor do clássico O que é punk, e Silvio Essinger, escritor de Punk, anarquia planetária e a cena brasileira, que aparecem como representantes da parca bibliografia nacional sobre o tema. Apesar de não se aprofundar em questões pontuais como o legado e a influência do punk na sociedade hoje, e ser excessivamente pedagógico e pouco crítico em alguns momentos, o filme de Gastão Moreira tem o mérito de resgatar parte da história recente do país que há tempos merecia ser retratada. Mas pelo que se propôs a fazer (contar a origem do punk brasileiro), Botinada certamente já pode ser considerado uma referência sobre o assunto.


Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 21/2/2008

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
23/2/2008
11h16min
Esse documentário omite seus antecessores históricos: "Garotos de suburbio" do Márcio Meirelles, de 1983 - e "Punk molotov" de João Carlos Rodrigues, de 1984/5. Este último é a prova de que o movimento existiu também no Rio de Janeiro, e teve boa repercussão na época e passou em vários festivais. "Punk molotov" e creio que também "Garotos de subúrbio" existem nos arquivos Videobrasil em SP e podem ser vistos pelos interessados.
[Leia outros Comentários de João Carlos Rodrigue]
27/2/2008
16h11min
Legal, Luis, deu vontade de ver o filme. A coisa mais sedutora, mais interessante do punk [para mim] era dizer que qualquer um, por mais pé rapado e ignorante que fosse, devia pegar um instrumento musical e começar a fazer música; não para o bem geral da nação ou da Arte, mas para o bem dele mesmo e no máximo dos seus dez amigos mais próximos. As bandas punks "profissionais" obviamente são as que a gente mais conhece, mas de certa forma acho que elas são uma contradição em termos, um paradoxo. O melhor do punk era o seu pior, o mais caseiro, mal-ajambrado, esculhambado - aquelas coisas tão ruins que nem a indústria de consumo [pelo menos naquela época] dava conta. E pouca gente percebe que é preciso uma coragem quase heróica para ser verdadeiramente péssimo, que é uma outra forma de ir além da mediocridade.
[Leia outros Comentários de Paulo Moreira]
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