Acabo de ler Istambul (Companhia das Letras, 2007, 408 págs.), de Orhan Pamuk. Ávida para tomar lugar nessa leitura que tem encontrado aceitação elogiosa em nosso meio, surpreendi-me com a demora para gostar do livro. As primeiras 70 páginas foram-me custosas. São pouco atraentes; não é uma história no sentido usual, com começo, meio e fim, um romance. Tampouco se mostra como uma autobiografia tradicional. O próprio autor parece ter dificuldade para definir seu objeto, que fica, de início, embaralhado, escondido.
Para complicar ainda mais o começo, sem que tenhamos intimidade com o personagem, aos nossos olhos ainda apenas um sério senhor agraciado pelo prêmio da Academia sueca em 2006, somos colocados diante de revelações desconcertantes, íntimas, que parecem fora de lugar ― o contexto ainda não se fez.
Mas transposta a estranheza inicial, fui captada lenta e progressivamente; ambientei-me na Istambul do autor e caminhei com ele, curiosa, intrigada, interessada, até seu final. Aliás, e que final! O livro cresce colossalmente em seus últimos capítulos.
O autor entremeia suas memórias ― da infância ao início da vida adulta ― com considerações, explicações, questionamentos e narrativas sobre Istambul, sua cidade natal.
Não há um rigor lógico ou cronológico a presidir a narrativa; o livro foi escrito acompanhando o "tempo da memória". A questão principal a ordenar a escrita é saber quem é Istambul, definir seus contornos. Para a empreitada o autor vale-se de fotos, gravuras e desenhos, todos a tentar compor Istambul, a grande personagem que nomeia a obra.
Se procurarmos nos mapas e nos livros, veremos que Istambul está quase na Europa, onde, no entanto, já é Ásia; que já foi Constantinopla e Bizâncio. Que foi sede de um grande Império até 1923. Que na ânsia de se "modernizar", de fortalecer uma "identidade nacional republicana", foi palco de atos violentos contra gregos, judeus e armênios em 1955 ― conflitos abordados pelo autor.
Mas para Pamuk essas bordas são esfumaçadas, flutuantes, insuficientes. Sabe que a demarcar sua vida de escritor em um país do chamado Oriente, na periferia do mundo cultural, há o Bósforo, o Chifre de Ouro e a Ponte Gálata; a Hagia Sofia e seus minaretes; as yalis de madeira e o que sobrou delas. Mas não se sente seguro. É preciso demarcá-la com nitidez. Lança-se corajosamente na tarefa.
Como se formou a imagem que "o mundo" tem de Istambul?
Ao contar uma história absolutamente pessoal, e de maneira também radicalmente intimista, Pamuk acaba por propor questão universal, a formação do indivíduo e de seu sentimento de pertencimento a um povo, a uma cultura.
Um dos caminhos eleitos pelo autor para tentar explicar Istambul é discorrer sobre escritores e pintores antigos, suas influências, estilos, obras, recepção que tiveram. É recurso poético, pois recupera e homenageia a tradição. Ao autor interessa perguntar como a escrita e a pintura desses artistas moldaram a visão que os Istanbullus construíram de si mesmos ao longo dos anos. O rosto da cidade teria nascido do olhar dos artistas, que ao devolverem aos moradores imagens da cidade contaminadas por olhares de fora, por clichês estrangeiros sobre o exotismo oriental, acabaram por influenciá-los. São pistas que apontam para o duplo: é pelo olhar do outro que nos fazemos. Uma teia composta de ponto e contraponto, fios atravessados de uma margem a outra do Bósforo, de tal modo que o autor não sabe mais onde começa e onde termina seu "orientalismo".
A bela imagem das salas de visita ocidentalizadas a conferirem ar de museu às casas de Istambul da infância do escritor ― uma das poucas imagens inteiras que sobrevivem em meio às ruínas das primeiras 70 páginas ― ilustra bem a questão. A Istambul percebida pelo autor quer se ocidentalizar, parecer mais "civilizada" (e aqui nos reconhecemos, nós, brasileiros, sempre em busca de uma definição de nossa identidade a partir de paradigmas estrangeiros) mas teme perder suas raízes, seus traços distintivos, ficar "comum".
Outra ferramenta em que se apóia é a análise exaustiva da cidade. São páginas e mais páginas preenchidas com descrições impressionistas das ruas de Istambul e suas casas, da alma de Istambul. Pamuk tenta reconstituir o percurso discursivo que teria levado à identificação da imagem da cidade com a melancolia, a hüzün pela qual se sente assinalado.
Qual o papel de nossas origens em tudo o que nos tornamos?
Enquanto busca definir Istambul e apresentá-la ao leitor, Pamuk busca também entender em que momento teria se tornado escritor, conhecido sua verdadeira vocação. E em que medida Istambul teria contribuído para a formação dessa vocação.
Logo no início do livro há algumas linhas altamente reveladoras: "Era uma vez um tempo em que eu pintava. Ouvi dizer que nasci em Istambul, e sei que fui uma criança um tanto curiosa. E então, quando cheguei aos vinte e dois anos, parece que comecei a escrever romances sem saber por quê".
Saber por que. Eis a linha a conduzi-lo pela Istambul do passado. Pamuk caminha pela Istambul da sua memória para tentar entender em que momento deu-se o encontro com sua vocação. Crê que o encontro deu-se nas ruas da Istambul, quando vagava desesperado pela dor da perda da amada e da pintura. É curiosa essa coincidência que ele crê ter havido: quando perdeu a amada, perdeu também o interesse pela pintura. As duas tristezas se embaralham em suas recordações. E de tão grandes perdas só restou Istambul. Passou a vagar a esmo por suas ruas, a observar suas casas, e dessas andanças surgiu o amor por sua terra, por sua gente e por sua vocação. Sob o seu ponto de vista, estar em Istambul constituiu o escritor em que se tornou: "E aqui chegamos ao cerne da questão: nunca deixei Istambul, nunca deixei as casas, as ruas e os bairros da minha infância".
No início era o caos, que foi ordenado pela travessia, pelo caminhar lento, pelo conhecer-se e reconhecer-se.
O autor abre o livro contando que desde criança foi alimentado pela fantasia de que em algum lugar de Istambul havia outro Orhan, um gêmeo fantasmagórico, pelo qual ele nutria forte curiosidade. Ao final da leitura entendemos que sim, sempre houve outro Orhan. Um Orhan que dormitava dentro de si mesmo, que esperava ver definido seu caminho especial para acordar e tomá-lo. Um Orhan que se pôs de pé nas ruas de Istambul, quando se percebeu escritor.
Entendemos, por fim, que Istambul, a grande amada a acompanhá-lo vida afora, proporcionou-lhe autoconhecimento. Conhecendo-a, conheceu-se. Daí para falar de si mesmo e de sua vida, falar tanto de Istambul. Os caminhos se fizeram nas ruas de Istambul.
É sobre as marcas que nos formam que nos fala esse grande livro.
Cara Roberta Resende, sua crítica acerca dessa obra de Pamuk ficou formidável! Sem dúvida que se trata de um livro denso e inicialmente difícil, uma vez que não há uma linha a se seguir.
Mas, dando continuidade à leitura, somos absorvidos pela genialidade do escritor, que nos revela sua alma em palavras. Difícil não nos identificarmos com os "istambullus" - aos poucos perdemos nossa identidade para uma outra cultura e somos levados a sentir uma melancolia parecida com o "huzun": vivendo entre realidades tão díspares, não há como ser diferente.
Acabo de ler este livro. comecei a lê-lo recém chegada de Istambul. Gostei desde a primeira página; fui sendo cativada linha a linha; não queria chegar à última página.
O texto de Roberta Resende resume o livro e os sentimentos que ele despertou em mim; inclusive o hüzün que Istambul nutre.