A vida humana e cósmica é um enigma. Sempre foi e sempre será. Explicações para a razão de nossa existência sempre existiram. As mais absurdas são as de caráter religioso. A principal é a de que somos frutos da vontade divina, ou seja, um deus nos criou (sem explicar nem porque, nem para que) e estamos aqui à mercê de sua vontade. Não existe prova alguma disso. Apenas uma montanha de especulações bizarras. A maior parte das pessoas parece acreditar nas alucinadas explicações dadas pelas religiões para o sentido de sua vidinha passageira neste planeta.
Em nome da crença em um ser superior (supostamente criador disso que chamamos de vida) organizaram-se, desde tempos remotos, religiões diversas. Algumas dessas religiões, tomadas da infame crença de que eram portadoras exclusivas da "verdade", praticaram atos de extrema violência contra os seres humanos que pensavam e viviam segundo formas diferentes das suas doutrinas. Das torturas e assassinatos da inquisição católica aos atos terroristas em nome de Alá, essas religiões tornaram-se danosas à vida humana, ameaçando sua liberdade de expressão e de ação.
Contrários à crença religiosa, existe uma pequeníssima parcela da humanidade que se recusa a crer que somos produtos da ação de um ser superior, dono de nosso destino. São os Ateus (que escrevo com letra maiúscula) e/ou céticos. Particularmente, faço parte dessa turma.
Milênios de cultura, de ciência, de pensamento, não foram suficiente para explicar o sentido de nossa existência, muito menos para afastar de nossa mente infantil a crença em tanta fabulação mística. Chega a ser cômico ver como pensam, por exemplo, os católicos (em todas as suas vertentes, das mais comedidas às mais canhestras), com suas crendices que beiram o surreal. Seu céu perfeito, seu purgatório ameaçador e seu inferno assustador são construídos como imagens de um possível existir após a morte, que para o católico é tão real quanto sua própria vida na terra. Ou seja, não há droga capaz de provocar tanta alucinação quanto a religião católica. E as outras religiões também produzem sua dose de fantasias sem limites.
Explicar as razões para tal crença é um trabalho no qual a antropologia, aliada às outras ciências, deveria se deter, pois nada se compara às organizações religiosas e ao fanatismo advindo da reunião de pessoas em torno da crença em Deus.
Talvez a primeira razão para a crença em alguma coisa que sobreviva à morte seja o medo mesmo dessa morte. Saber que desapareceremos para sempre dessa vida e que jamais reencontraremos quem amamos, realmente chega a ser insuportável. E para tal desespero devemos inventar algum paliativo. Inventar uma espécie de papai do céu seria a razão também para um outro desespero: o de saber-se sozinho neste mundo, abandonados à incerteza do próprio sentido do existir.
Conviver com a idéia de que a vida é um absurdo, que a vida é uma coisa sem sentido, não é para muitos. Uma vez perguntei a um amigo meu se ele acreditava em deus ou na vida após a morte. Ele respondeu que não precisava de muletas para viver. Uma mente corajosa. No entanto, rara. Outra vez perguntei a um poeta se ele acreditava em deus, ele respondeu que deus é que não acreditava nele, pois jamais se sentira "ajudado" nos momentos de precisão por alguma força superior.
Não é fácil ser ateu. Saber que a vida não tem explicação ou um sentido definido é meio apavorante. Ver a morte nos tomar violentamente os amigos, os parentes queridos, uma criança que ainda nem viveu tudo o que poderia viver, e saber que nós não os veremos nunca mais é revoltante. Nos faz sentir tanta dor que pensamos que o melhor é nem termos nascido para assistir a tal fato. Saber também que com a morte nós mesmos vamos nos tornar apenas um pedaço de carne podre, comida por vermes ou incinerada em alta temperatura, e que disso não sobrará nada para contar nossa história, é medonho. Saber-se finito, eis o grande terror. E haja religião para sanar nosso desespero.
Do fundo desse medo acabamos construindo sistemas religiosos que se tornaram não apenas um remédio para nossa existência frágil e destrutível, mas se transformaram em sistemas de pensamento e de conduta que acabaram nos tornando medrosos e terminaram por destruir a possibilidade do livre-pensamento para todos. Em nome dessas crenças, a mais importante liberdade, a de pensamento, foi mutilada. E com ela, a liberdade de ação, o controle sobre o próprio destino, a possibilidade de escolher os rumos dos próprios pensamentos, dos próprios desejos e dos próprios sonhos. Em suma, perdemos a oportunidade de guiarmos nós mesmos as rédeas da História como um todo.
E na atual conjuntura, repleta de misticismos, que vão do baixo-escalão das igrejas evangélicas e dos folclorismos orientais até o sofisticado intelectualismo do atual papa (contrário ao aborto, ao uso de camisinha ― mesmo em regiões com alto índice de AIDS ― etc), uma sensação de regressão a tempos tenebrosos chega a nos assustar. Uma onda pesada de religiosidade vai se desenvolvendo sem controle (tomando canais de TV, rádios, jornais, congresso nacional, zonas periféricas das grandes cidades), financiada principalmente pelo capital de doadores ingênuos. Fazendo uso da ignorância dos desfavorecidos e do descaso social do Estado com os mesmos (baixo nível de renda e de escolaridade), igrejas têm colaborado para manter a ignorância e o pensamento no seu mais baixo nível. Como conseqüência, conquistas de direitos civis e de liberdade científica podem vir a serem ameaçadas.
É realmente necessário cair no buraco negro da religião para viver? Precisaríamos de páginas e mais páginas para falar do assunto. Tudo bem que a existência seja realmente algo misterioso, mas transformar nossa inquietação metafísica em instituições que exigem o mínimo de nossa mente é um descaso com a história do pensamento humano, descaso com nossas lutas pela compreensão desse mesmo mistério.
Não teríamos condições de controlar as pulsões assassinas dos humanos e sua busca desenfreada pelo poder tirânico sem a religião? A educação e o estado de direito não fariam isso de melhor maneira?
Sermos servos de doutrinas enunciadas por eunucos, que pouco conhecem da vida plena, que pouco respeitam a vida em sua diversidade de formas e movimentos (ao contrário, a excluem da própria espiritualidade) é realmente algo ainda válido?
O pensamento religioso não tem sentido algum, nunca teve, sempre foi apenas uma macaqueação dos poderosos que fizeram uso da religião para manter seu rebanho subserviente ou para manterem-se no poder graças ao direito divino, ou foi ainda uma macaqueação dos próprios fiéis que na verdade jamais seguiram os preceitos religiosos, pois eles são humanamente impossíveis de serem seguidos. Fiéis sempre foram infiéis aos preceitos religiosos.
A natureza é ainda a mais forte gerenciadora de nossa vida e por mais que queiramos fugir dela, sempre estaremos a seu serviço: comendo, bebendo, dormindo, trepando. Não há cultura que possa dominar essas pulsões. Somos seres naturalmente luxuriosos, pois a vida assim se faz, não só nos organismos humanos, mas em toda a natureza. E o prazer da existência orgânica só foi convertido em êxtase religioso quando foi reprimido de forma absolutamente castradora. A obra escultórica de Bernini O êxtase de Santa Tereza é a prova mais radical de que só existe um êxtase, o da convulsão física de todo o corpo.
É absurda a idéia de que todas as grandes conquistas do pensamento humano (arte, filosofia, ciência) sejam jogadas na lata de lixo por um bando de iletrados que, ao se organizarem nas suas seitas, abram mão do que nos torna diferente dos animais e que nos ensina que, apesar da cultura, ainda somos amimais: a inteligência.
Congratulações pelo artigo corajoso e caprichado. Você realmente conseguiu, num espaço breve, resumir as questões mais letais contra a crença infantil e mitômana dos fanáticos. Como dizia Nietzsche, são os que têm medo de ser humanos que se entregam a essa moral de escravos, ressentidos que estão com a felicidade (alheia) além do bem e do mal. Se cuidassem apenas da própria vida ainda seria muito bom. Pena é que estão criando um poder político cada vez maior, ameaçando nossas liberdades, a tanto custo conquistadas. Mais uma vez, meus parabéns!
Alguns artigos falam em trabalhos que sinalizam na direção de que pessoas que alimentam algum tipo de fé são, no geral, mais felizes e reagem melhor a doenças como o câncer. Gosto de acalentar a idéia de que prossigo, de alguma forma, após a morte do corpo. Mas o radicalismo, o desenvolvimento de sistemas de condutas e valores, advindos dos fanáticos (politicamente, históricamente bem ou mal intencionados) anula qualquer bem que "ter fé" possa trazer ao ser humano. Gosto da idéia da fé, mas ao apreciar a forma como o ser humano transformou uma boa idéia para a angústia da finitude, é preferível ser Ateu. Jardel, seu texto é uma síntese muito bem elaborada, parabéns.
Seu texto sintetiza o meu pensamento a respeito de deus e religião. Porém, há um viés que precisa ser explorado: existem aqueles que buscam na Providência a sustentação existencial. A propósito disso, lembro-me de uma entrevista da escritora Zélia Gattai em que lamentava profundamente ser atéia. Dizia a mulher de Jorge Amado que nas horas de absoluto desespero só lhe restavam as lágrimas solitárias, o sinônimo da mais nefasta miserabilidade humana. Os crentes, nesses momentos, não estavam tão sós.
Lembro-me quando aluno de ginásio no Salesiano de Recife, numa aula de religião, levantei inúmeras dessas questões... E quando meu professor, um padre, não tinha mais argumentos para me convencer, dizia apenas: "paramos por aqui, pois é 'dogma' e dogma não se discute"... Se Deus tivesse metade dos poderes que se atribuí a Ele, não haveria guerras, fome, doenças ou quaisquer outros males que nos aflingem!
Realmente não é fácil ser ateu. Acreditar que todo tipo de religiosidade (que diga-se de passagem existe em todas as socidades de alguma forma) é um devaneio da espécie humana e atribui-la a um projeto de poder e dominação de uns poucos me parece pouco razoável. E sobre as conquistas do pensamento humano, não podemos negar as contribuições e influencia das religiões nesse sentido.
"não há uma explicação para se fazer uma determinada coisa,mas é o que sempre faço, é o que eu sempre fiz": faço destas palavras de uma amiga minhas palavras para se falar sobre o mistério do homem.
Deus com minúscula e ateu com maiúscula! O que o texto tem de correto dilui-se com essa fanfarrice. Religiões são fenômenos humanos e, como tais, falhos e imperfeitos. Nada provam (nem contra nem a favor) de Algo que nos transcende.
Caro Jardel, com a sua devida licença, faço minhas as tuas palavras - para mim, todas escritas em letras maiúsculas. Não admito discutir deus ou diabo, fé, ateísmo, agnosticismo. Não acredito em deuses, duendes, elfos ou ninfas. Para mim, tudo instrumento de dominação e manipulação da ignorância e fraqueza do ser humano.
Caro Jardel, como você, também sou uma Cavalcanti, e, ainda como você, sou atéia. Mas tenho medo de assumir, pois o preconceito é tão grande que até posso perder ou deixar de conseguir um emprego por isso (já aconteceu comigo). Sofremos preconceito por ter uma visão realista e diferente da maioria, enganada por essas religiões que deveriam servir de suporte, não para explorar a fé das pessoas. Tudo que você escreveu no seu emocionado artigo eram coisas que eu tentava dizer no meu, publicado hoje, se puder ler... Gostaria de aproveitar e parabenizar o Digestivo Cultural por abrir este espaço democrático para discutir e publicar artigos com opiniões diversas. Viva a verdadeira democracia, não essa falsa e moralista que está vigorando hj em dia, em que na verdade, é a Ditadura da Religião, que se mete em TUDO, e não nos permite livre pensamento.
Infelizmente aparecemos neste mundo sem saber o porquê, sem saber donde viemos ou para onde vamos. Os ateus não revelam nada de novo, apenas confirmam aquilo que muitos temem: a caducidade da vida humana e a falta de sentido da existência. Pelo menos os crentes mitigam o seu sofrimento, na doce ilusão de que têm um Pai celestial que os protege e salva. Não fosse este paliativo, vos garanto que as salas de espera dos psiquiatras estariam muito mais cheias....
Conhecedores do bem ou possuidores do mal?
Caro Jardel,
Eis-me aqui confusa nos meus pensamentos, nem ateu, nem condenada pelas idéias de um sistema religioso. Uma valiosa frase de Edgar Morin aqui se encaixa perfeitamente. "As pessoas não podem mais ser brinquedos inconscientes de suas próprias mentiras". Fica realmente difícil acreditar cegamente num Deus que nos quer o bem, mas que ao mesmo tempo aceita pessoas morrendo de fome, de frio e de doenças alarmantes.
Talvez o erro esteja numa religião que usa o nome de Deus para amedrontar as pessoas e aprisionar seus pensamentos, "mutilando", como você mesmo disse, a mais importante liberdade do ser humano, a liberdade do pensamento.
Essas religiões conseguem implantar na mente das pessoas crenças e mitos, para Edgar Morin "Os humanos possuídos são capazes de morrer ou matar por um Deus, por uma idéia" como é o caso, dentre outros, do homem bomba.
E entao, conhecedores do bem ou possuidores do mal?
Um dia perguntaram a Salvador Dali se ele acreditava em deus. Ele respondeu: "está matematicamente comprovado que deus existe, mas eu não acredito nisso, nem em deus".
Meu Deus! (ops, ato falho). Hoje em dia é banal evocar ciência, racionalidade etc, para contrapor à crença em Deus, até pq os exemplos de "religiosidade" são pobres "de espírito": bispas Sônias, Universais, Ratzingers estão se digladiando pela propriedade da crença de fiéis ignorantes. Ateus do mundo, não vamos nos dispersar! É hora de fazer algumas ponderações. É o terceiro artigo que leio, com lugares-comuns sobre ateísmo vs. misticismo. Ninguém (exceto alguns poucos) se lembrou de citar a mensagem original revolucionária do cristianismo, sob a qual muitos dos senhores éticos que estão todo dia neste site foram criados, (obrigado a seus pais e professores) educados, formados e letrados. Colegas de (não) crença: vamos perder tempo "chutando cachorro" de crendices e misticismo ou nos preocupar em "separar o joio do trigo"? Sejam razoáveis. Não há ignorância maior que colocar "tudo no mesmo pote" da explicação da Criação.
Acho que você tem razão em várias abordagens... Mas acredito que também ser ateu implica em querer provar algo impossível de ser provado... A interpretação junguiana a respeito dos fenômenos religiosos é bem interessante. Li "O Homem e Seus Símbolos", um livro para leigos, do Jung, e fiquei bem impressionado. Recomendo. Parabéns pelo texto!
Ser ateu (e eu escrevo com letra minúscula) implica num elevado nível de fé. O bacana de ser cético é que muitos se esquecem que o ceticismo está estabelecido sobre o principio da verificabilidade empírica, que em si mesmo não é verdadeiro por definição, nem pode ser verificado empiricamente. Logo, o cético não é cético quanto ao ceticismo. Voltando ao ateísmo, trata-se da resultante de muitos fatores tais como humanismo, ceticismo, iluminismo e, o melhor de todos, o quarto elemento, o darwinismo. O ateísmo é uma doutrina religiosa relativamente nova, o termo ateísmo apenas revela que eu não acredito em Deus (que escrevo com letra maiúscula), ou que me oponho ao teísmo. Deus é o ponto de partida para o teísmo e curiosamente Deus também é o ponto de partida para o ateísmo. Não compreendo a fé como diametralmente oposta à razão, pois fé e razão não são excludentes. Toda essa dicotomia é uma evidencia do quanto estamos confusos...