Na época do lançamento da graphic novelMulher diaba no rastro de Lampião, um jornalista especializado da Folha de São Paulo entrevistou o desenhista Flávio Colin e perguntou se ele havia pesquisado literatura de cordel para escrever a história. O entrevistador ignorou completamente que a história havia sido escrita pelo roteirista Ataíde Brás, que pesquisou profundamente o cordel e fez nesse trabalho o que seria sua obra-prima.
O caso mostra bem a forma como os roteiristas têm sido vistos no Brasil por jornalistas, editores e fãs. Em Macapá existe um rapaz que dá aula de quadrinhos nas quais ensina que, para escrever uma HQ, não é necessário ter qualquer tipo de preparo intelectual... basta saber desenhar. Suas opiniões não são uma anomalia, mas, ao contrário, expressam uma opinião dominante.
Quando a Tiazinha começou a fazer sucesso e surgiu a proposta de fazer um programa de TV exclusivo para ela, alguém teve a idéia de colocar no programa elementos dos gibis. Para que isso acontecesse, chamaram para fazer o roteiro... um desenhista de quadrinhos. O resultado vergonhoso todos nós vimos: uma história sem pé nem cabeça que fez os fãs terem saudades da época em que a Tiazinha apenas desfilava com lingiere e depilava a perna de marmanjos.
A importância dos roteiristas, em outros países, é mais do que provada. Alguns roteiristas, como Goscinny, Stan Lee e Alan Moore tornaram-se estrelas, de modo que seus nomes na capa conseguem, por si só, garantir as vendas de uma revista. Neil Gaiman mostrou, em Sandman, que uma revista podia vender muito bem mesmo sem ter desenhistas talentosos. Os primeiros ilustradores de Sandman eram, no máximo, competentes, mas mesmo assim a revista chegou a vender tanto quanto a do Superman.
O lançamento de obras desses roteiristas costumam ser acompanhadas, no Brasil, de grande divulgação. É comum dar mais destaque ao roteirista que ao desenhista. Mas esses mesmos editores e jornalistas têm uma visão diferente quando se trata do roteirista nacional. Um editor me confidenciou, certa vez, que, se pudesse, publicaria apenas histórias sem texto, apenas com desenhos, pois o roteiro, para ele, era irrelevante.
Isso acaba se refletindo até mesmo nos créditos. Quando a graphic gótica A hora do crepúsculo foi lançada, o texto da capa dizia: Texto e desenhos de Bené Nascimento. No miolo, todas as histórias tinham roteiro meu. Quando a história "Siren" foi lançada na coletânea Brazilian Heavy Metal, os editores simplesmente esqueceram de me creditar como roteirista.
Recentemente foi lançado um álbum com histórias minhas. O material promocional citava apenas o nome do desenhista e nenhum dos jornalistas que resenhou a obra percebeu que várias das histórias publicadas não tinham sido escritas por ele.
À falta de reconhecimento alia-se os problemas com desenhistas. Todo roteirista tem uma quantidade enorme de roteiros escritos e nunca aproveitados porque os desenhistas simplesmente abandonaram o barco. A situação é pior quando os personagens foram criados pelo desenhista, o que torna impossível apresentá-los a outro artista. Tenho mais de mil páginas escritas e que nunca serão aproveitadas. O tempo gasto na produção desses roteiros dava para fazer uns três romances.
O sistema das editoras brasileiras, de aceitar apenas projetos prontos, privilegia os desenhistas-escritores e torna quase impossível para o roteirista apresentar projetos. Em países nos quais a editora compra o roteiro e contrata um desenhista para ilustrá-lo, isso permitiu o surgimento de ótimos roteiristas.
Em todos os países do mundo em que os quadrinhos apresentaram um grande desenvolvimento, há a figura central de roteiristas. Na Argentina, os quadrinhos se estruturaram a partir do roterista Héctor Germán Oesterheld, ganhando não só reconhecimento popular, como os aplausos da crítica. Na França, Goscinny (Asterix) e Charlier (Blueberry) elevaram os quadrinhos ao mesmo nível da literatura. Nos EUA, Stan Lee criou o fenômeno Marvel, com personagens como Homem-Aranha e X-Men, que hoje rendem fortunas para Hollywood. Lá, a reclamação é exatamente oposta: os desenhistas, como Jack Kirby e Steve Ditko, reclamam que seus nomes não tiveram tanto destaque quanto o de Stan Lee. Na Itália, os Bonelli (pai e filho, ambos ótimos roteiristas) transformaram o fumetti em um fenômeno cultural.
No Brasil, nenhum roteirista jamais se destacou. Seria por falta de qualidade? O escritor Júlio Emílio Braz, após deixar os quadrinhos, dedicou-se apenas à literatura juvenil, ganhou o prêmio Jabuti e hoje é um dos escritores de paradidáticos mais requisitados do país. Outros foram para a publicidade, para o jornalismo, e se destacaram nessas áreas.
Mais cedo ou mais tarde, os roteiristas vão abandonando o gênero e se dedicando a outras áreas. Eles o fazem após constatar uma verdade triste: fazer quadrinhos no Brasil é coisa de quem sabe desenhar. E só. Não há espaço para roteiristas.
Até que enfim uma pessoa que fez um texto sobre quadrinhos e citou os Bonelli. Sempre se fala apenas nas porcarias de gibis americanos: exagerados, com violência gratuita e nem um pouco inteligente. Sandman? Heavy Metal? Que tal: Dylan Dog, Nathan Never, Martyn Mystere, Dampyr... Gibis que infelizmente nunca conseguem pegar aqui no Brasil... Abaixo o livo americano!!!
Me formei em jornalismo no ano passado e agora estou design gráfico. Porém, minhas noites em claro são investidas em algo que não pousa nem no primeiro nem no segundo. Passo minhas horas livres escrevendo roteiros de quadrinhos.
Por mais que não tenha nada publicado e pouco tempo no "mercado" (já que o tal mercado ainda é uma incógnita pra mim), tive roteiros empacados por desenhistas que desistem. Até meu analista sugere: "desenhe!". Será que esse é o caminho? Escrever o roteiro é fantástico e muitas das histórias seriam perfeitas em HQ, mas o desenho não é meu dom.
Terei eu que desafiar o criador e pedir um novo dom? Talvez trocar algum sub-utilizado por algum outro?
Abraços, Danton, obrigado pelo ótimo texto que mostra a falta de respeito aos roteiristas. Ainda me espelho em Gaiman, e creio que uma nova era quadrinística chegará.