COLUNAS
Quinta-feira,
27/3/2008
O melhor de Dalton Trevisan
Marcelo Spalding
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Muitos conhecem o vampiro de Curitiba por seus contos violentos, concisos e premiados, mas vários ouviram falar de Dalton Trevisan apenas pela personalidade misteriosa e controversa que o autor criou para si mesmo ― confundindo-se com suas personagens e suas histórias ― sem jamais ter se debruçado sobre sua obra. Pois para esses digo que acaba de ser lançada uma edição revista da obra que talvez melhor sintetize Trevisan: Dinorá (Record, 2007, 178 págs.).
Autor de pequenos folhetos com feitio de cordel que enviava para amigos e conhecidos, sem arriscar a publicação em volume, folhetos fora de circulação comercial e hoje desconsiderados pelo autor, Trevisan estréia de fato na literatura em 1959 com Novelas nada exemplares, chamando a atenção da crítica. Só para se ter uma idéia, já no começo dos anos setenta Trevisan é incluído na famosa antologia O conto brasileiro contemporâneo, organizada por Alfredo Bosi, ao lado de Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins, Clarice Lispector, Rubem Fonseca e outros treze autores. Bosi, na apresentação, chama a atenção para o fato de que nos contos de Trevisan a concisão é uma obsessão do essencial que parece beirar a crônica, "mas dela se afasta pelo tom pungente ou grotesco que preside à sucessão das frases, e faz de cada detalhe um índice do extremo desamparo e da extrema crueldade que rege os destinos do homem sem nome na cidade moderna". E se nos primeiros livros Trevisan já chama a atenção pela estética de feitio minimalista, com Ah, é? , de 1994, o autor leva o conto a uma espécie de limite e praticamente inaugura o miniconto contemporâneo brasileiro.
São esses três Trevisans, o poeta, o contista e o minicontista, além de um curioso Trevisan cronista e crítico literário, que se reúnem em Dinorá, também datado de 1994 mas publicado um ano depois de Ah, é?, tornando o volume extremamente interessante, verdadeiro ponto de partida para se compreender a obra do vampiro "iconoclasta ou alienado, que abomina o social e o político", como se define o próprio autor em "Quem tem medo de vampiro?".
O poeta, pouco conhecido, bebe do mesmo sangue que o prosador, exibindo seres violentos, velhinhos tarados e tipos pervertidos em versos secos e sem espaço para rimas ou outras gracinhas literárias. Em "Dinorá", por exemplo, texto que dá título ao livro, uma mulher revela ser espancada e maltratada por um homem que a "queima de cigarro e corta de faca". Em "Curitiba Revisitada", o pessoal dá lugar ao social, mas o tom pungente é mantido, criando uma espécie de ode ao avesso de sua cidade natal, "cidade irreal da propaganda/ ninguém não viu não sabe onde fica".
Mesmo sem grande variação de estilo, o contista é o que mais chama a atenção, sem dúvidas. Alternando contos mais longos, de até dez páginas, com contos de menos de uma página, Trevisan demonstra domínio técnico e segurança temática em textos como "O afogado" e "Iniciação", permitindo-se até um tom amoroso e sentimental em "Tiau, Topinho", quando narra em primeira pessoa a volta para a casa de um homem que precisou sacrificar seu cãozinho.
Entre a prosa e a poesia, numa espécie de hibridismo de ambas, surge também o minicontista, o mesmo que assinou sozinho Ah, é?, dono de um estilo em formação e então ainda chamado de "haicai", mas que preferimos chamar de narrativas mínimas, ou minicontos. Há três coleções deles no livro, "Dez haicais", "Nove haicais" e "Oito haicais", o que totalizam 27 mínis (em Ah, é? são 187, todos também sem títulos). E se alguns deles se parecem anedotas, como "Toda noiva goza duas vezes a lua-de-mel: uma, quando casa, e outra, ao ficar viúva.", outros preservam muitas características do conto, revelando história oculta, história aparente, conflito e tensão:
"Parentes e convidados rompem no parabéns pra você. De pé na cadeira, a aniversariante ergue os bracinhos:
― Pára. Pára. Pára.
Na mesa um feixe luminoso estraga o efeito das cinco velinhas:
― Mãe, apaga o sol."
Numa primeira leitura, o que temos aqui é a história de um aniversário de criança. Mas, indo um pouco além da superfície, veremos o sem-limite dos quereres de uma criança, possivelmente uma criança mimada da classe média, exigindo da mãe mais do que bolos, parabéns e velinhas, exigindo a alteração da natureza para satisfazer seus caprichos.
Mas o mais curioso Trevisan de Dinorá é o cronista/crítico literário. Tal qual um senhor sem papas na língua, escreve sobre Machado de Assis, sobre os críticos de má fé que questionam a traição de Capitu em Dom Casmurro, ironiza Borges e, em "Quem tem medo de vampiro?", brinca com sua própria produção:
"Há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João e a sua bendita Maria. Peru bêbado que, no círculo de giz, repete sem arte nem graça os passinhos iguais. Falta-lhe imaginação até para mudar o nome dos personagens".
Em "Cartinha a um Velho Poeta" e "Cartinha a um Velho Prosador", sobram conselhos e alfinetadas a pretensos escritores:
"Escrever bem é pensar bem, não uma questão de estilo. Os bons sabem de seus muitos erros, os medíocres não sabem coisa alguma. O que há de ser, para você já foi. Não se finge o talento ― falto de engenho, vento é vento e pó. As letras roubadas são falsas."
Não é leitura fácil, sem dúvidas: a colagem de textos tão diferentes pode confundir o leitor e dissolver o efeito obtido, tão caro ao conto. Mas o que se perde em unidade se ganha em originalidade e graça, graça que revela um Trevisan mais humano, sem tantos "passinhos iguais" e conhecedor profundo de teoria e história literárias. Que, se não tornam ninguém melhor escritor, estão por trás de toda bem-sucedida carreira literária.
Para ir além
Marcelo Spalding
Porto Alegre,
27/3/2008
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