Voz de um passado presente | Daniel Lopes | Digestivo Cultural

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Mais Recentes
>>> Pimp My Carroça realiza bazar de economia circular e mudança de Galpão
>>> Circuito Contemporâneo de Juliana Mônaco
>>> Tamanini | São Paulo, meu amor | Galeria Jacques Ardies
>>> Primeiro Palco-Revelando Talentos das Ruas, projeto levará artistas de rua a palco consagrado
>>> É gratuito: “Palco Futuro R&B” celebra os 44 anos do “Dia do Charme” em Madureira
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
>>> A Espada da Justiça, de Kleiton Ferreira
>>> Left Lovers, de Pedro Castilho: poesia-melancolia
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
Colunistas
Últimos Posts
>>> Lisboa, Mendes e Pessôa (2024)
>>> Michael Sandel sobre a vitória de Trump (2024)
>>> All-In sobre a vitória de Trump (2024)
>>> Henrique Meirelles conta sua história (2024)
>>> Mustafa Suleyman e Reid Hoffman sobre A.I. (2024)
>>> Masayoshi Son sobre inteligência artificial
>>> David Vélez, do Nubank (2024)
>>> Jordi Savall e a Sétima de Beethoven
>>> Alfredo Soares, do G4
>>> Horowitz na Casa Branca (1978)
Últimos Posts
>>> E-books para driblar a ansiedade e a solidão
>>> Livro mostra o poder e a beleza do Sagrado
>>> Conheça os mistérios que envolvem a arte tumular
>>> Ideias em Ação: guia impulsiona potencial criativo
>>> Arteterapia: livro inédito inspira autocuidado
>>> Conheça as principais teorias sociológicas
>>> "Fanzine: A Voz do Underground" chega na Amazon
>>> E-books trazem uso das IAs no teatro e na educação
>>> E-book: Inteligência Artificial nas Artes Cênicas
>>> Publicação aborda como driblar a ansiedade
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Hoje a festa é nossa
>>> A Bienal e a Linguagem Contemporânea
>>> Comum como uma tela perfeita
>>> Entrevista com Cardoso
>>> Ensino Inferior
>>> Daniel Mazini, country manager da Amazon no Brasil
>>> Samba da benção
>>> O novo GPT-4o
>>> Um olhar sobre Múcio Teixeira
>>> Entrevista com Guilherme Fiuza
Mais Recentes
>>> Grilling - Where Theres Smoke Theres Flavor de Eric Treuille pela Dorling Kindersley Ltd. (2000)
>>> Aprender Juntos Português - 4º Ano de Adson Vasconcelos pela Sm Didáticos (2016)
>>> Fruta no Ponto de Roseana Murray pela Ftd
>>> Rubáiyát of Omar Khayyam de Omar Khayyám Edward Fitzgerald Trad pela Fine (1957)
>>> Avanços Em Reprodução Humana Assistida de Roger Abdelmassih pela Atheneu (2007)
>>> Aqui Só Não Voa Quem Não Quer de Aurimar Pacheco pela Paulus
>>> Mineração e Meio Ambiente na Constituição Federal de Humberto Mariano de Almeida pela Ltr (1999)
>>> Statistical Process Control Methods de Gary K Griffith pela Asqc Quality
>>> Case Studies of Good Corporate Governance Practices - 2nd Edition de International Finance Corporation pela Ifc (2006)
>>> Una Aventura de Asterix El Combate de los Jefes de Grijalbo Dargaud pela Dargaud
>>> Conecte Gramática Reflexiva, Parte 1, 2, 3, Caderno de Revisão e Cad.. de William Cereja; Tereza Cochar pela Saraiva (2013)
>>> Geografia. 7º Ano - Coleção Geração Alpha de Fernando dos Sampos Sampaio pela Sm (2017)
>>> Conecte Sociologia, Parte 1, 2, 3, Caderno de Revisão e Caderno de Com de Nelson Dácio Tomaz pela Saraiva (2014)
>>> Una Aventura de Lucky Luke El Tesoro de los Dalton de Dargaud pela Dargaud
>>> America de Stephen Vincent Benet pela Farrar e Rinehart (1944)
>>> A Fuga de Simão e Babu de Zuleika de Almeida Prado pela Corte
>>> Die Schweiz de Doré Ogrizek pela West (1947)
>>> Olha Lá o Brasil e Finalmente Portugal nos Descobriu... de Julio Jose Chiavenatto pela Brasiliense
>>> Deus e o Alcance da Razao de Erik J. Wielenberg; Guilherme Rodrigues Neto pela Ideias e Letras (2010)
>>> A Través del Tiempo Caballeros y Castillos de Judy Hindley pela Plesa
>>> Principios de Administraçao Financeira de Stephen A. Ross; Randolph W. Westerfield pela Atlas (2001)
>>> Dias Alegres! de Todo Livro pela Todo Livro
>>> Coletâneas de Um Místico de Max Heindel pela Fraternidade Rosacruz
>>> Processo de Conhecimento Tomo I - 1 Edição de Humberto Theodoro Junior pela Forense (1978)
>>> Reta Final Oab Revisão Unificada de Marco Antonio Araujo pela Revista dos Tribunais
COLUNAS

Terça-feira, 8/4/2008
Voz de um passado presente
Daniel Lopes
+ de 4700 Acessos
+ 2 Comentário(s)

"Diz que três ou quatro órfãs engravidavam na noite de devoção à Virgem."

Momentos assim de ironia são exceção em Órfãos do Eldorado (Companhia das Letras, 2008, 112 págs.). A bem da verdade, só consegui captar essa frase, que, coitada, quase tem de pedir desculpa por existir no meio de um livro de temática tão sombria.

Obra de um escritor sem pressa, Órfãos... é a quarta ficção do amazonense Milton Hatoum. De uma forma geral, vários dos temas levantados por essa novela já apareceram com mais intensidade em Cinzas do Norte, de 2005, seu melhor livro. Por exemplo: a decadência de uma família lado a lado com a decadência de uma era; a degradação da vida indígena e a indiferença que ela suscita em todos, de turistas a funcionários públicos; o filho arredio, fonte de frustração permanente para um pai que o sonhava continuador dos negócios da família.

No Cinzas..., esse menino rebelde responde por Mundo, de Raimundo. O pai, por Trajano Mattoso, um rico comerciante mancomunado com a Ditadura, ou pelo menos com o braço da Ditadura que pretendeu levar a civilização à Amazônia ― quer dizer, a civilização à brasileira sendo levada à brasileira. Em Órfãos..., é Arminto quem não corresponde às expectativas de seu pai Amando, que por sua vez é filho de Edílio. Essa é a base da família Cordovil, pequena e tradicional. Milton situa temporalmente esse novo enredo no que vai da ascensão à queda do período de expansão na Amazônia do negócio da borracha, durante a primeira metade do século passado.

Nesse universo sócio-econômico é que Edílio ― avô do narrador Arminto, famoso também por ter abusado de mulheres ― iniciara a ventura familiar ainda no século XIX, ao tornar-se senhor de terras e esmagar sem dó revoltas de índios e caboclos desarmados. Seu filho Amando pensou até em escrever uma obra sobre o pai, a se chamar "Façanhas de um civilizador", mas, com os dias sempre ocupados em exportar borracha para o primeiro mundo, nunca lhe sobrou tempo para tal empreitada.

Como ficamos sabendo apenas no finalzinho da obra, Arminto, já velho e miserável, conta (contou) sua história a algum visitante casual:

"Ninguém quis ouvir essa história. Por isso as pessoas pensam que ainda moro sozinho, eu e minha voz de doido. Aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apaga nossa dor?"

Daí a oralidade presente em cada linha da novela, como se as palavras estivessem no ar e não no papel. Li com a voracidade com que havia lido outras duas pequenas e geniais criações literárias, o Bartleby de Melville, e Amy Foster, do Conrad. Não podia ter sido de outro jeito.

Assim que pisam na capital do Amazonas, vindos da cidadezinha de Vila Bela, Amando manda o filho para uma pensão, longe de si e de Florita, agregada da família, exatamente como uma punição por ter surpreendido, certa noite, o filho na rede com Florita.

Poderia ter sido, a estadia de Arminto na pensão ― deveria ter sido, segundo o plano paterno ―, o caminho do arrependimento e da remissão, mas acabou sendo mesmo foi a porta de entrada do protagonista na vida boêmia, que divide sua atenção e suas energias de maneira muito desmesurada com a recém-iniciada vida acadêmica.

A energia dispersa em vários bares e cabarés concentra-se enfim quando aparece um alvo digno: Dinaura, moça de origem índia, órfã e interna do Sagrado Coração de Jesus. Essa menina de pouquíssimas palavras e gestos furtivos (ainda que tenha uma torrencial cena de amor com Arminto), guarda, claro, um grande segredo no passado. Segredo este que está diretamente ligado à morte de Amando, por ataque cardíaco, no meio de uma praça e nos braços do filho. A propósito, foi no velório do pai que Arminto viu Dinaura pela primeira vez, e se surpreendeu atraído por sua mirada: "Às vezes um olhar tem a força do desejo".

A madre superiora do orfanato, que levara as moças ao velório de Amando em consideração às doações que este fizera à instituição, permite a Dinaura sair para encontrar-se com Arminto aos sábados à tarde. E só. A disciplina, os horários, são rígidos. Assim, por muito tempo o único dia que valia mesmo a pena ser vivido para Arminto era o sábado, verdadeiro dia sagrado: "Esperava com ânsia o sábado seguinte", ouvimos à sombra do jatobá, "e me rendia ao olhar de um rosto calado".

Com a cabeça mergulhada no corpo e nos enigmas de Dinaura, Arminto negligencia cada vez mais suas responsabilidades para com a empresa de exportação herdada. Nem mesmo abre os telegramas que lhe chegam da gerência em Manaus, rasgando-os tão logo os tem em mãos, impaciente, inábil com o lado prático da vida.

Mas após entregar-se ao namorado numa noite chuvosa, de forma súbita a órfã Dinaura recolhe-se para um mês do mais completo isolamento, por decisão própria. E um mês é o que basta para Arminto embarcar para Manaus e tentar resolver graves problemas financeiros que apareceram por decorrência do naufrágio de uma embarcação de carga, lotada na ocasião. O acidente o obriga a vender vários dos bens da empresa, além de objetos de valor pessoal ― piano, porcelanas, anéis que pertenceram à mãe.

Acontece que naquelas alturas, mesmo sem um acidente grave no meio do caminho, de uma forma ou de outra a empresa que Arminto fora forçado a administrar iria fechar as portas. O Eldorado amazônico de extração e exportação estava com os dias contados. "Uns anos antes da morte do meu pai", relembra Arminto, "as pessoas só falavam em crescimento. Manaus, a exportação de borracha, o emprego, o comércio, o turismo, tudo crescia. Até a prostituição". E então, anos depois, numa tour pelas ruas de Manaus, a constatação de que o progresso cobrara seu preço:

"Andei de bonde pela cidade, vi palafitas e casebres no subúrbio e na beira dos igarapés do centro, e acampamentos onde dormiam ex-seringueiros; vi crianças ser enxotadas quando tentavam catar comida ou esmolar na calçada do botequim Alegre, da Fábrica de Alimentos Italiana e dos restaurantes. A cadeia de Sete de Setembro estava lotada, vários sobrados e lojas à venda."

E esse retrato do sistema prisional:

"Quando entrei na cadeia púbica, desisti de qualquer justiça. O edifício, uma pocilga; e os carcereiros, uns miseráveis: pareciam mais condenados que os detentos."

Decadência alavancada pela Guerra Mundial nociva ao comércio da borracha, bem como pelo novo plantio de seringueiras no continente asiático, séria ameaça à soberania brasileira no ramo. Decadência no meio da qual pais índios vendem suas filhas crianças por míseros trocados; vendem mesmo, sem espaço para metáfora, é beijo e adeus. E os turistas com isso? Em busca do exótico na miséria, nunca o contrário, eles não "queriam conversar, e sim fotografar".

A figura de Arminto é uma das mais interessantes da literatura brasileira recente, e rivaliza até com o Mundo de Cinzas do Norte. Através dele e dos personagens-satélites temos noção ― sem qualquer discurso vazio, porque o que os olhos registram dizem o suficiente ― não apenas da incrível infelicidade de muitos que resultou da felicidade de poucos, mas também de um caráter aparentemente perpétuo do Norte-Nordeste brasileiro: os mitos. Órfãos do Eldorado, vale a pena informar, faz parte de uma coleção chamada... "Mitos". Nada das tintas exageradas do meramente folclórico, usado aqui em seu pior sentido, de manifestação pitoresca, estereotipada. Entre os homens e mulheres em volta de Arminto, a vida não precisa dar lugar às lendas, porque elas já compõem parte fundamental da vida. Evocar cidades sob rios, habitadas por almas, por exemplo, é tão natural quanto respirar. Muitas vezes, é lamentavelmente a única maneira de imaginar um mundo Bom em tudo averso ao vale de lágrimas do calvário amazônico de proporções amazônicas.

Dessa maneira, quando Arminto volta de Manaus para Vila Bela com a esperança de rever Dinaura, e descobre que esta sumiu do Sagrado Coração de Jesus, da cidade, talvez do mundo, começam a surgir hipóteses fantásticas sobre seu paradeiro:

"Uns diziam que Dinaura havia me abandonado por um sapo, um peixe grande, um boto ou uma cobra sucuri; outros sussurravam que ela aparecia à meia-noite num barco iluminado e dizia aos pescadores que não suportava viver na solidão do fundo do rio."

Porque o rio aqui, meus amigos, é o rio Amazonas. E o rio Amazonas é um mar de rio. Não é por acaso que no Norte há fantásticas histórias do "fundo do rio", como na Europa um dia houve (e em alguns pontos ainda há) os mistérios do "fundo do mar".

Sempre digo a amigos que considero Milton Hatoum altamente indicado e, mais que isso, obrigatório. Altamente indicado porque, além de ser sempre garantia de um excelente texto, é porta-voz (ou apenas a voz, se preferirem) de uma parte do Brasil que não se reduz às lendas, mas que não seria a mesma sem elas. E obrigatório, sim. Como não? Afinal de contas, as duas maiores tragédias do sul brasileiro são 1) não saber nada do restante do país e 2) pensar que sabe alguma coisa do restante do país. Não duvido que alguém consiga se informar mais sobre as coisas do Brasil profundo assistindo a BBC do que lendo uma revista de circulação nacional. É triste, mas é.

Para ir além






Daniel Lopes
Teresina, 8/4/2008

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Quem vem lá? de Renato Alessandro dos Santos
02. O abalo sísmico de Luiz Vilela de Cassionei Niches Petry
03. Simpatia pelo Demônio, de Bernardo Carvalho de Jardel Dias Cavalcanti
04. Dheepan, uma busca por uma nova vida de Guilherme Carvalhal
05. Literatura engajada de Marta Barcellos


Mais Daniel Lopes
Mais Acessadas de Daniel Lopes em 2008
01. Não gostar de Machado - 3/6/2008
02. Chris Hedges não acredita nos ateus - 1/7/2008
03. Neruda, oportunista fantasiado de santo - 18/3/2008
04. 20 anos de Trapo - 25/9/2008
05. Cenas de um país machista - 17/6/2008


* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

ENVIAR POR E-MAIL
E-mail:
Observações:
COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
8/4/2008
15h26min
Texto excelente, Daniel. É sempre bom valorizar os nossos escritores, principalmente para leitores como eu - acostumado aos extrangeiros - conhecê-los.
[Leia outros Comentários de Lucas R. Bispo]
9/4/2008
13h06min
A dica foi preciosa... principalmente por valorizar a NOSSA literatura, um alívio... afinal... escutei certo dia que Câmara Cascudo tinha nascido em SP... e a minha Natal ficou como símbolo de Papai Noel...! rsss
[Leia outros Comentários de Geórgia Lorena ]
COMENTE ESTE TEXTO
Nome:
E-mail:
Blog/Twitter:
* o Digestivo Cultural se reserva o direito de ignorar Comentários que se utilizem de linguagem chula, difamatória ou ilegal;

** mensagens com tamanho superior a 1000 toques, sem identificação ou postadas por e-mails inválidos serão igualmente descartadas;

*** tampouco serão admitidos os 10 tipos de Comentador de Forum.




Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




a lógia condenada
Julio Cabreira
hucitec
(1987)



Drogas & Alcolismo: Como Previnir. Como Vencer!
Edson Ferrarini
Do Autor
(2018)



A Soul Of Ash And Blood
Jennifer L. Armentrout
Blue Box Press
(2022)



Sou Nós a Imagem de Deus Em Nós
Douglas Gonçalves
Thomas Nelson
(2019)



A Dama das Camelias
Dumas Filho Alexandre
Circulo do Livro
(1989)



Cumbres Y LLanuras Los Amigos de Jhasua - Espanhol - Esoterico
Hilarion de Monte Nebo F.F e J.R. Luque Alvarez
Kier
(1961)



Representações de Ciência e Tecnologia no Modernismo Conservador Brasileiro
Gilson Leandro Queluz
Paco
(2016)



A Utopia No Cinema Brasileiro: Matrizes, Nostalgia, Distopias
Lúcia Nagib
Cosac Y Naify
(2006)



Ação das Pequenas Unidades Alemãs - na Campanha da Rússia
Coronel Celso dos Santos (trad)
Biblioteca do Exército
(1987)



O Futuro Chegou: Instituicoes E Desenvolvimento No Brasil
Mailson Da Nobrega
Globo
(2005)





busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês