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Terça-feira,
29/4/2008
O Banquete
David Donato
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Tive uma professora de biologia ― na oitava série, se bem me lembro ― que disse uma vez que nós usamos as mesmas proteínas das coisas que comemos para construir nosso próprio corpo. Já que são exatamente as mesmas substâncias, a única coisa que nos impede de termos, por exemplo, um pedaço de peito de frango no lugar da nossa panturrilha é a ordem que nosso corpo monta essas proteínas. Claro que não é a melhor explicação do mundo (ela definitivamente não era a melhor professora do mundo), mas foi uma imagem que me marcou e, de certo modo, serve para muitas outras coisas na vida.
Acredito na velha máxima "você é o que você come". Cada experiência, cada viagem de ônibus, cada almoço no boteco sujo, cada livro lido e cada pé na bunda deixam para trás um eu menor e mais antigo, ou mais magrinho e desnutrido, para não fugir da metáfora. Isso é especialmente verdade quando se trata de artes. Claro que há refeições e refeições, esfihas do Habib's de experiência (a última refilmagem de terror japonês) e verdadeiros banquetes (pensou em Dostoiévski? Eu também.) Acho que eu, nesse sentido, já nasci com fome.
Uma das minhas primeiras memórias com as letras onde eu mesmo peguei o cardápio e escolhi sozinho a refeição foi em uma biblioteca infantil, onde conheci Ruth Rocha, Maria José Dupré e Ziraldo. Assim, me tornei um pouco Marcelo, Marmelo, Martelo, cachorrinho Samba, um pouco Maluquinho. Vivi muito tempo com Monteiro Lobato e toda sua obra infantil, que eu devorava deitado no tapete do quarto. Provei os clássicos juvenis, adaptações de Moby Dick, Frankenstein, Robin Hood e Sherlock Holmes; passei um bom tempo me deliciando com a obra de Jules Verne e a maioria dos livros da Coleção Vaga-Lume. Em poucos anos, tinha vivido séculos de experiências, viajado ao centro da Terra, passado semanas na fazenda e em mundos fantásticos, caçado obsessivamente baleias, explorado minas de ouro e resolvido mistérios insolúveis, sempre em doses não muito maiores que cem páginas. No fim do dia eu me sentia velho, saciado. Mas como toda saciedade se esgota no dia seguinte, lá estava eu procurando o que ler até na estante empoeirada de casa. E foi aí que as coisas começaram a mudar.
Aos treze anos achei um livrinho de capa dura, bastante sólido e bem conservado, apesar dos vinte e cinco anos de publicação. Minha mãe o tinha desde a adolescência, mas mal se lembrava. Na capa preta, em dourado, um desenho quase abstrato de um homem e um gato e a inscrição POE ― Histórias Extraordinárias. Esse livro de pouco mais de trezentas páginas me mostrou um outro mundo, denso, obscuro e extremamente bem construido. Os contos pioneiros de Edgar Allan Poe, quase todos em primeira pessoa, falavam para o adolescente em mim ainda mais que as músicas em primeira pessoa da Legião Urbana. Nunca me esqueço do arrepio que senti ao terminar "O poço e o pêndulo". Fui atingido por uma porção de pensamentos, e o último foi "como alguém consegue descrever sensações de forma tão poderosa sem ter passado pelo que seus personagens passaram?" O mundo aventureiro dos anos anteriores acabara de se tornar também subjetivo, reservado, misterioso.
No mesmo ano, a mesma mudança aconteceu com o cinema, quando, sem opção numa praia chuvosa, entrei numa sessão qualquer de um cinema qualquer. O mundo aventureiro de Jurassic Park e De volta para o futuro levou um soco no estômago de Seven, com aquela sequência de abertura incrível e história impactante demais para quaisquer treze anos de idade. Foi aí que percebi que eu realmente gostava de cinema. Aí minha fome aumentou de verdade. Fiquei um pouco mais cínico com Kubrick, mais virtuoso com Hitchcock, mais neurótico com Woody Allen.
Ainda assim, gordo, sem conseguir absorver tantos nutrientes em tão pouco tempo, me deixei levar pela gula e enfrentei sozinho Crime e Castigo. Era como se eu vivesse em restaurantes, mas nunca tivesse comido um grande e desafiador filé mignon. Cento e cinqüenta anos de proteína assim me transformaram em alguém mais complexo, mais incoerente, mais humano e com muita vontade de aprender russo e ter um amigo chamado Svidrigáliov. Meu mundo também era frio, pobre e sujo como a São Petesburgo de Raskólnikov.
As refeições que mudaram minha composição química vão além. Kafka me fez ver o mundo pelo avesso, Umberto Eco, de trás para frente. Borges, de todos os ângulos possíveis e ao mesmo tempo. Douglas Adams me fez rir de minha petulância e Arthur Clarke me fez temê-la. George Orwell e Art Spiegelman me fizeram ter cuidado com o mundo. Alan Moore e Paul Thomas Anderson me fizeram ter cuidado com os habitantes do mundo. Chuck Jones, Brad Bird, Michel Gondry, Winsor McCay e Tim Burton me mostraram como construir mundos particulares. Matt Groening e Tarantino, como desconstruir qualquer mundo. Os contistas brasileiros me mostraram quanta coisa interessante pode acontecer no meu quintal. Os Monty Python mostraram como isso pode ser ridículo.
Não incluo aqui os filósofos nem a religião pelo mesmo motivo que não incluo o quanto fui ensinado por meus pais: isso é o arroz e feijão. É a base, sem a qual ninguém dura muito tempo nessa vida. Quero me concentrar nas carnes, nas saladas, entradas e molhos, que, mesmo que consumidos com frequência, sempre dão um sabor especial ao prato. Também não incluo aqui a música nem as artes plásticas, mas isso é porque o texto ia ficar muito longo mesmo.
Mas de que adianta passar a vida no restaurante? A verdade é que comemos para viver, e não o contrário (nunca achei que esses sábios eremitas que vivem em cavernas fossem tão sábios assim. Afinal, acumular sabedoria mas nunca colocá-la em prática não me parece nada, digamos..., sábio). Queimar toda essa gordura secular não é fácil, principalmente num mundo onde se come tão mal e não se faz exercícios. Precisamos achar nossas pistas de corrida em conversas de boteco, nossas academias (inclusive no sentido literal do termo), nossas ciclovias em nossas próprias famílias e malhar até a exaustão. É a segunda melhor forma de agradecer aos que nos proporcionaram tanta boa comida. A melhor maneira é aprender a cozinhar.
David Donato
São Paulo,
29/4/2008
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