Duas qualidades são desejáveis nas inúmeras profissões que o ser humano inventou, inventa e exerce, ao longo da sua conturbada história:
1. que sejam úteis para quem nelas trabalha e
2. que sejam úteis para o ser humano em geral.
As profissões mais nobres, no sentido estrito do termo, costumam preencher esses dois requisitos. Um médico é extremamente útil para outras pessoas, para a sociedade em que vive, para o ser humano em geral e, não vamos esquecer, a profissão de médico é altamente auspiciosa para o próprio. Ou poderia ser, caso os médicos fossem realmente bons de serviço. Mas a maioria não é. Um erro médico é um erro humano. Errar é humano etc.
Claro que os médicos reclamam muito de salários mirrados, pagos pelo estado; reclamam da penúria dos hospitais públicos, da inadimplência dos pacientes, do assédio telefônico e da dificuldade em lidar com agendas lotadas. Médicos reclamam bastante. Tudo bem, quem não reclama? Mas são eles que passam vestidos de branco pelos corredores do INSS, aureolados com uma glória de anjos do Senhor, ignorando (momentaneamente, eu disse momentaneamente!) aqueles pobres diabos cheios de dores, que estão lá desde manhã cedo, passando muito mal.
Só de ficar horas sentado ali já é o suficiente para qualquer um ficar doente e começar a sentir dores estranhas, mesmo que o sujeito tenha ido lá para uma simples consulta. E só de passar por ali, vestido de branco e olhando pra frente, levando a esperança de dezenas de olhares aflitos que o acompanham pelo corredor, deve dar um complexo de jesuscristo no sujeito, é ou não é? Valeu a faculdade ou não?
Então, temos um ser humano que carrega consigo a promessa de mitigar o sofrimento alheio. Isso não tem preço. Ou tem? Quanto um médico ganha, em média, no Brasil, e quanto deveria ganhar? Não sei. Os médicos geralmente são pálidos, distantes e insondáveis como a Esfinge no trato com os mortais. Todos os homens são mortais, é evidente. Mas alguns são mais mortais que os outros. Principalmente quando estão doentes. Ou na presença de um médico.
E há o outro lado da moeda, profissões que não atendem a nenhum desses requisitos de utilidade pública e particular. A profissão de kamikaze, por exemplo. No Japão, durante a segunda guerra, havia filas de pessoas se inscrevendo para se tornar um deles. Um emprego altamente cotado. Ainda que fosse considerado útil para a sociedade em que foi criado, o kamikaze não era útil para si mesmo e, muito menos, para outros seres humanos, que ele pretendia meramente explodir. Sem contar que um emprego desses era, literalmente, final de carreira. Ainda por cima sem salário, ou uma mixaria. E o japonês entupia os postos de alistamento. Benzodeus. Ou melhor, banzai!
No amplo leque dos sub-empregos vemos a alegria contagiante dos lixeiros, que costumam formar times de futebol imbatíveis nos campeonatos que a prefeitura promove com seus empregados e a resignação carrancuda dos caixas de todos os supermercados. O ar desatento dos catadores de papel, no Parque Municipal de BH, é idêntico ao ar distraído dos grandes catadores de dinheiro, tipo Paulo Maluf. Mas nenhum deles perde de vista qualquer papelzinho, levado ou não pelo vento da tarde, ou pelo vento das variações do mercado de valores. Peritos, todos.
Experiência e tarimba são altamente valorizados e o mercado absorve pouco da enxurrada de jovens aspirantes recém-saídos das faculdades e dos cursos técnicos. Há cursos e palestras sobre empreendedorismo e quase todo mundo conhece, pelo menos de ouvir falar, as premissas básicas para o sucesso: dedicação, empenho e perseverança. Pitadas de ousadia e iniciativa. Pinceladas de idealismo. Controle de hábitos e tendências negativas. Conhecimento de causa, para não ficar de calças na mão nos momentos decisivos e por aí em diante. São desse tipo uma centena de fatores visíveis, porque são claramente compreendidos e comprovadamente muito eficazes, que podem determinar o sucesso pessoal em qualquer área.
Esses fatores estão nos primeiros degraus da escada que leva para o alto. São acessíveis a qualquer um, facilmente estudados e identificados. Por isso mesmo existe uma profusão de livros que os explicam e pretendem até ensiná-los aos mais pernetas (estamos falando de uma escada).
Nos degraus mais acima, existe um outro fator, ainda visível, mas que não é tão claramente compreendido como os outros. É identificável, mas não muito mensurável. É a dor de cabeça das mentalidades burocráticas e racionalistas. Se chama talento. O talento existe, é esquivo e não pode ser ensinado. Nem pelos que o possuem. Mantém uma relação amigável, uma troca de influências, com os outros fatores. E pode ser determinante para o sucesso pessoal. Mas ele ainda não fecha o quadro.
Existe um outro fator, mais acima. Este é realmente invisível, não pressentido, mas descaradamente atuante, quando presente. Aparentemente, não tem relação nenhuma com os demais. Também não tem nome definido. Eu o chamo de fator estrela.
O fator estrela permite, digamos, que um sujeito saia de uma cidadezinha qualquer no interior da Bahia, vá para São Paulo e já apareça, algumas poucas vezes, na televisão, e se transforme, muito rapidamente, num ídolo da música do Brasil. Grandes doses de talento pessoal estão envolvidas nessa história, claro. Mas eu, por exemplo, conheço pessoalmente pelo menos dois enormes talentos que estão cantando em barzinhos de segunda categoria.
O fator estrela faz com que, de dois gênios legítimos do futebol, um seja lembrado como o Rei, e o outro como um genial pobre coitado. Faz com que um jovem alemão seja simplesmente sete vezes campeão mundial de Fórmula 1, uma marca assombrosa, se considerarmos que ele é um piloto excepcional, mas não é o melhor piloto que já existiu. É simplesmente, pela influência desse fator, o maior. Também permite que um operário, relativamente rude, mas esperto como o demo, se torne nada menos que o presidente desta nação.
O fator estrela possui gradações de intensidade variável e todo mundo possui alguma coisa dele. Níveis perigosamente baixos tornam as pessoas, inversamente, notáveis, pelas dificuldades que encontram no caminho. Pé frio é pouco para definir certos graus de azar inexplicáveis.
De qualquer maneira a própria vida é derivação direta desse fator, na medida em que milhões de células sexuais (ou seja, um monte de gente) são descartadas para a confecção de um único indivíduo. Podemos nos considerar extremamente sortudos por estar vivos. Ou não. Mas isso é outra conversa.
Evidentemente o fator estrela é, muitas vezes, decisivo para o ingresso no mercado de trabalho. Encare assim: aquilo é um mar e você está na praia, com seu colete salva-vidas, ou sua prancha de surfe. Já passou o protetor solar e está com seu curso de natação em dia, completo e bem assimilado. Algum engraçadinho colocou uma placa, fincada na areia, em frente ao mar, com os dizeres: "Não há vagas". Ou você olha as ondas, aquelas vagas contínuas, que vêm uma após a outra, ou fica olhando para a placa. Deixe o seu fator estrela assumir, ele vai escolher a vaga. Mesmo porque ele não sabe ler.
Mais uma vez, excelente! O fator estrela é aquele que diz(!): "vai, amigo, ser bancário para o resto da vida, ou venha comigo, meu brother, fazer algo de mais interessante e receber a recompensa que lhe compete: ser um astro, talvez"!
Podemos também dizer, então, que não foi Aquiles quem escolheu não ficar na Larissa/Thessália (Grécia), para criar sua família e morrer tardiamente. Foi seu fator estrela que decidiu: "vá, super homem (rs!), à Tróia, vença, morra cedo, mas deixe seu nome na história, para o resto da História"!
Parabéns, Guga!
Há, há, há!! Fator estrela. Que delícia de texto. A primeira parte que aborda a questão dos médicos retrata muito bem esses caras. Os semideuses. Depois as outras profissões, num encadeamento muito original. Só que as vagas vêm e vão e para muitos não há mais vagas nesse turbilhão da vida, nesse maremoto louco que é a vida. Não há mais estrelas, nem lua, nem nada. Ótimo texto, Guga. Beijo.