A Virada Cultural deste ano foi especial para mim. Foi a primeira tendo eu como morador do centro. Estava perto de tudo, cercado de atrações musicais, teatrais e que tais por todos os lados. Mas não foi diferente apenas para mim. Este ano não houve confusão, briga durante show na praça da Sé, polícia batendo nas pessoas, intolerância de alguns, ignorância de tantos outros. Com um público recorde, cerca de quatro milhões de pessoas, segundo a Secretaria Municipal de Cultura, as mais de 24 horas de eventos na região central e em diversas outras praças de São Paulo tiveram um clima de calmaria e confraternização. Claro que o fluxo de pessoas foi tamanho que gerou algum desconforto, principalmente madrugada a dentro. Mas nada que estragasse a festa e a overdose gostosa de shows e apresentações artísticas das mais diversas.
Parti de casa por volta das 18h, já ouvindo o barulho do palco rock na praça da República, que fica a menos de 500 metros do edifício onde resido. Mas rumei sentido Pateo do Colégio, onde às 18h45 o Mundo Livre abriria os trabalhos no palco de bandas independentes. Show curto, intenso e que serviu para encontrar alguns amigos. Mas antes, no caminho, aconteciam várias outras coisas: estátuas vivas no Viaduto do Chá chamavam a atenção dos transeuntes, que aproveitavam para tirar muitas fotos e brincar com eles. Deu até pra ver, dali do viaduto, o início das apresentações de dança no Vale do Anhangabaú, além de uma bicicleta com dois homens que se equilibrava em cima de um cabo de aço, do alto do prédio da prefeitura até o antigo edifício da Light, hoje um shopping.
Na praça do Patriarca era exibido o Festival do Minuto. Era só sentar no chão e se deliciar com os filmetes, dos mais variados temas, a maioria premiados no referido festival, que ocorre tradicionalmente na capital paulista. Depois de um tempo ali, o celular toca e nos dirigimos até o Boulevard São João, para encontrar mais gente e acompanhar o palco do jazz. Encontra um, aparecem outros, nos despedimos e já partimos para outra atração: os velhos roqueiros da Casa das Máquinas no palco rock.
Há um detalhe que deve ser destacado à parte: eu prefiro escolher apenas algumas atrações e perambular pelos palcos, meio à deriva, parar quando vejo um espetáculo interessante. Pra poder ver a movimentação das pessoas nas ruas, me surpreender com algo que ocorre no caminho ver as pessoas, os espetáculos. Isso aconteceu diversas vezes na noite de sábado. Voltando do Boulevard São João, pude me entreter, por exemplo, no Largo do Paissandu, com uma roda de capoeira. Durante a madrugada, enquanto passava com outro grupo de amigos pelo Festival do Minuto, um grupo de maracatu circulou por ali batucando seus tambores, levando metade do público pelas vielas da Sé a pular e a cantar.
Outra coisa bem saborosa na Virada Cultural é a possibilidade de encontrar os amigos a cada lugar que você vai. Porque na semana que antecede a maratona, você liga pra meio mundo, manda e-mail, combina uma série de coisas. Faz lista de eventos que gostaria de assistir, manda para os mais chegados para ver se "batem" os gostos de um com o outro. Se sim, já deixa tudo acertado. Caso contrário, vê se outra pessoa topa ir junto. No mais: "A gente se vê lá na Virada. Eu te ligo quando estiver por lá". E tome celular ligando pra fulano, mensagem de texto pra sicrano. "Onde você tá?" "Não, eu tô na avenida São João pra ver o Zé Ramalho à meia-noite, vem pra cá." A resposta: "Tô indo, só acabar de ver o teatro na praça Roosevelt que eu já tô descendo praí". E assim vão os diálogos. E uma dificuldade pra encontrar alguém... "Meu, tô aqui no ponto de táxi da São João com a rua Aurora, não foi aqui que combinamos?" "Ah, eu me enganei, estou no ponto da rua Aurora." Ou: "Não consigo chegar aí, tem muita gente nas ruas, não dá pra andar".
E realmente estava difícil. Acompanhei o, na minha opinião, ponto alto da programação na madrugada: Zé Ramalho no palco dos grandes shows na avenida São João, ao lado da praça Júlio de Mesquita. Milhares de pessoas ocuparam o asfalto até a esquina com a avenida Ipiranga. Um mar de gente incalculável. O show foi muito bom, mas o excesso de público caminhando, empurrando, dificultou a possibilidade de curti-lo plenamente. Fora que, após a apresentação, parece que as linhas telefônicas entraram em colapso. Era quase impossível conseguir fazer uma ligação. Para ter sinal era preciso esticar o braço com o celular na mão. Um ato bizarro, de fato.
Depois de diversos desencontros, consegui achar outro grupo e passeamos por vários palcos, entre eles o de rock e blues, na rua Barão de Itapetininga, culminando com o piano na praça Dom José Gaspar às 5h da manhã, bem propício inclusive para começar a ninar o sono que chegava implacável. Fui dormir com um barulho ensurdecedor da banda Overdose no palco rock e acordei com o Bando do Velho Jack gritando por lá também. Foi engraçado porque só fui pra Virada à tarde pra ver a Orquestra Imperial e voltar pra casa, já que estava exausto da noite anterior. Mas, antes de sair, enquanto me arrumava e cozinhava em casa, conseguia ouvir Cachorro Grande ao vivo da praça. Um privilégio, né? E ainda fui dormir cedo ao som de Ultraje a Rigor, fechando o palco roqueiro na Virada.
O ambiente no centro, chamado de velho por todos, é formidável para abrigar um evento dessa magnitude. Tem um quê de antigo resistindo firme à onda "modernosa" que agride e tenta acabar com o pouco que restou do passado de São Paulo por ali. E a cada rua que você entra, cada praça que pára, cada espetáculo que assiste, uma sensação agradável toma conta de si, de que é possível ainda ter coisas positivas num centro costumeiramente abandonado, sujo, perdido, como seus moradores de rua, largados a nenhuma perspectiva de vida, como o centro antigo da cidade.