Falar sobre Machado de Assis é difícil; não há praticamente nenhuma novidade sobre o assunto desde que ele foi eleito ― isso foi quando? ― como modelo para jovens escritores e como tema recorrente para teses de mestrado. A literatura brasileira tem esses dois autores, sempre os preferidos para uma dissecação em aulas de anatomia literária: Machado e Guimarães Rosa. O segundo, pela evidente singularidade de sua obra, e o outro, pelo motivo praticamente oposto, ou seja, pela cristalização, pelo refinamento e pela síntese do lugar-comum.
Isso não chega a ser uma crítica muito válida, principalmente em literatura, que vive também de imensas doses de lugares-comuns. Em outras palavras, o lugar-comum tem seu lugar na literatura e, como se dizia nos tempos do Pasquim, o lugar-comum "é válido e inserido no contexto". Nada mais certo. E nada mais comum, é evidente.
É até desejável que os romances apresentem isso, esse grande mapa do pensamento, reconhecível à primeira vista, e que o bom senso narrativo seja mais uma norma do que uma exceção; que as profundidades sejam discretamente evitadas, que as pontes sejam habilmente fixadas na beira dos abismos e que os vôos não cometam a maluquice mitológica de um Ícaro ― o jovem aprendiz de passarinho ― que tentou se aproximar do sol e se deu mal.
A maioria dos leitores prefere uma paisagem não muito vasta, a linha do horizonte com contornos bem definidos, um clima suportável e, ainda, que a velocidade dos acontecimentos seja compatível com a velocidade de suas pernas, de forma que ele, leitor, possa acompanhar. Todo escritor que reforça esse quadro geral, uma espécie de entropia literária, tem grande chance de ser popular.
Machado de Assis é leve, pega leve. Tem uma delicadeza natural, que ele tempera com um ceticismo constante, calculado, mas que não chega a ameaçar. Irônico, mas não chega à ironia cortante, como se diz. Inteligente, mas sem surpreender nem causar susto. Uma originalidade comedida e bem dosada, um colorido em agradáveis tons pastel sobre uma parede, mas não uma inovação de derrubar os tijolos.
Morno, tépido, airoso, para usar uma palavra da época. Um dândi, com um humor discreto e uma filosofia melancólica de motorista de táxi na hora do rush. E, para usar uma expressão também antiga: até aí morreu o Neves. Ou o Brás Cubas. Porque nada disso constitui uma deficiência literária, propriamente falando. São características que podem, e até mesmo devem, ser consideradas como qualidades pessoais de um escritor, na medida em que esse escritor mostra desembaraço e se sente à vontade dentro delas. Isto é, desde que não sejam as limitações evidentes de um autor mas, sim, a fórmula pessoal para o exercício da arte.
Machado de Assis se mantém distante de seu próprio texto e quase nada há de pessoal ali ― um dos sinais reconhecidos da maturidade literária, de Shakespeare a Nabokov (outro dândi). De pessoal mesmo existe apenas a constante tentativa de cumplicidade com o leitor e, por falar em coisas pessoais, na minha opinião, essa é uma tentativa meio irritante. Machado não larga o ombro do leitor, onde ele pousa suavemente a mão, ajusta os óculos, pigarreia e faz questão de acompanhar a leitura.
E, se literatura é uma coisa extremamente pessoal, na medida em que o escritor escreve o que quer e do jeito que quer, sem ninguém que o oriente, aconselhe etc. (estou falando de escritores, não de alunos de oficinas literárias), é justo que a crítica seja também pessoal. Na verdade não vejo outra forma de falar sobre literatura a não ser, como leitor, respondendo ao incômodo ou prazer que ela proporciona a nível individual. De forma que não gosto de escritores que se fazem presentes durante a leitura de seus livros. Principalmente quando eles nem estão naquelas páginas, mas ficam por ali, espionando atrás do seu ombro.
Porque Shakespeare também é impessoal, ou seja, nenhuma criatura sua, nenhum personagem, é seu porta-voz e Shakespeare não defende causas. Mas ele deixa que o leitor se vire como puder. Machado é tão impessoal quanto ele (medidas as distâncias, claro) mas, praticamente, tenta virar as páginas para o leitor. É uma opinião extremamente subjetiva, essa minha. Mas absolutamente tudo em literatura é subjetivo.
Calculista, como um jogador de xadrez (que ele era), Machado mantém uma voz monocórdia, sem altos e baixos e um ritmo mais pra lento, uma marcha lenta constante. Não há muita vitalidade, ou dinamismo. Há quem goste. Harold Bloom, o crítico americano, cuja crítica é extremamente pessoal (como deveria ser mesmo), colocou Machado de Assis no panteão dos gênios literatos. Daniel Piza também gosta de Machado e escreveu uma biografia à altura (ou seja, a altura que ele, Daniel, enxerga em Machado de Assis). Outras vozes destoam. Millôr Fernandes, por exemplo, sem se empenhar muito, descarta a possibilidade do gênio e ainda goza o triângulo amoroso mal resolvido entre Bentinho, Capitu e Escobar, em Dom Casmurro. Há controvérsias, pois.
Machado de Assis é (quase) essa unanimidade, que não chega a ser burra, como diria Nelson Rodrigues, apenas meio equivocada, na questão dele ser ou não um gênio das letras. O nosso gênio das letras. O problema ― digamos que exista um problema ― não é com ele, o escritor, mas com seus leitores e, por extensão, seus seguidores, que sofrem de uma sensibilidade exagerada e levemente superficial. Por falar nisso, a mesma sensibilidade típica do século XIX, presente nos romances da época e, sem dúvida, presente nos livros do próprio Machado.
Machado de Assis não é, nem de longe, meu escritor preferido, dá pra perceber. Mas minha opinião não é grande coisa e nem pretendo que seja. No entanto, exerço o mesmo direito que ele, Machado, teve ao escrever seus livros e ao se expressar livremente neles. Todo escritor corre riscos. Um deles é alcançar a posteridade e o outro é sofrer críticas diversas, na medida em que ele incomoda certas pessoas, pessoas certas ou erradas, distantes ou não no espaço e no tempo. Alas. Mas Machado não me incomoda tanto como alguns professores me incomodaram, me obrigando a ler Machado de Assis, uma ou outra ocasião. Poderia dedicar a ele um aforismo, como se costumava fazer no século XIX, entre pessoas razoavelmente letradas: "Sê como o sândalo, que perfuma o Machado (sic) que o fere". Se ao menos eu fosse ferido por sua obra. Ou mesmo arranhado. Mas nem isso.
Achei engraçado, logo no início, quando você diz que Machado é modelo para escritores. Alguém consegue imitá-lo? Ou escrever próximo da maneira como ele usava os segredos humanos? Guimarães Rosa muito menos. E sim, concordo com você, ele é leve. A ironia não corta, não ataca, ela está ali para nos fazer dar um riso de canto. E talvez ele tenha sido exatamente o primeiro escritor brasileiro que se sentia confortável nessa posição, que não pretendia fazer mais do que isso na vida. Ele também não é meu autor preferido, mas "Dom Casmurro" é um livro querido, Capitu é uma personagem que sempre lembro. Acho que ele conseguiu o que queria comigo, acho-o um bom escritor.
Os ingleses têm Shakespeare; os franceses, Montaigne; os alemães, Nietzsche; os italianos, Leopardi. O que temos? Machado? O foco não é gostar ou não gostar. É ter! Como fazê-lo ícone máximo da literatura nacional? Será ele realmente nosso? Vide "Influências Inglesas em Machado de Assis" de Eugênio Gomes, livro de 1939. Influência estrangeira não coloca em xeque seu estilo como produto nacional para deleite dos ufanistas? Resta perguntar: suas idéias estão estritamente ligadas à língua portuguesa, ou seja, vale como critério sua habilidade na exploração do vocábulo? Nesse ponto está tão aquém de Guimarães Rosa que cessa toda tentativa de comparação.
Machado serviu, como você bem sabe, para estabelecer uma referência, quer na forma, quer no conteúdo com que construiu seu universo e seus entes. Conheço uma quantidade enorme de pessoas que citam Capitu e tantos outros personagens sem jamais terem lido Machado; e, no círculo acadêmico, existem pessoas que escolheram o foco da aceitação ou rejeição para transitar na seara machadiana. Minhas leituras me fazem crer na dificuldade de fazer um julgamento ético de determinada obra, considerando estilo, originalidade e a densidade necessária para sustentar o interesse do leitor; vem dessas considerações a dificuldade de contextualizar toda uma produção, toda uma obra de um autor que já está além do seu tempo. As boas intenções da série se perdem diante da exumação de um cânone que não viveu para sê-lo. Hoje quando leio Dalton Trevisan ou então o belíssimo Raduan Nassar, percebo com uma certa satisfação uma derivação da fluência Machadiana, que virou verbete, que virou história...
Eu gosto do Machado e reconheço como o maior escritor brasileiro. Admiro o escritor não só pela obra que criou; admiro também a trajetória de sua vida. Mulato em uma sociedade escravocrata, autodidata galgou o maior posto que sua carreira podia oferecer, e de quebra, ainda vivo, foi considerado o maior escritor do Brasil. Convenhamos que isso não é pouco. Se Machado fosse americano teríamos uma infinidades de filmes contando a sua vida e todas elogiosas.
Abrs
Enquanto escritor, Machado de Assis é indubitavelmente o maior. Suas obras foram de extrema relevância no contexto literário mundial. Mas, nas questões relativas ao avanço ideológico do preconceito social e racial, era criticado por outro renomado, Lima Barreto, segundo o qual o mesmo - Machado - era omisso. No seu centenário, não há como deixar de lado essa nuance.