Machado de Assis conseguiu aquilo que todo e qualquer escritor persegue desde a primeira linha: marcar a ferro quente seu tempo por meio da literatura. E não apenas porque foi um cronista excepcional ― na melhor acepção que o termo pode sugerir, pois soube, ainda que muitos digam o contrário, refletir sobre os acontecimentos de seu tempo ―, mas porque trouxe à literatura nacional inventividade e elegância nunca antes vistas. Da tão comentada ironia machadiana, até a conversa bem-humorada com o leitor, passando pelas sondagens psicológicas, Machado sempre soube surpreender. Isso, certamente, bastaria para lhe dar um lugar cativo no panteão dos nossos grandes escritores. Mas Machado fez mais. Com o fabuloso Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), uma narrativa repleta de digressões, idas e vindas e inovações que começam já no primeiro parágrafo, Machado de Assis se autodeclara gênio. Brás Cubas reúne praticamente todas as inovações que Machado trouxe à literatura ao longo de sua carreira como escritor ao contar uma história repleta de pessimismo e auto-ironia e que antecipa procedimentos utilizados pelas vanguardas do século XX.
Mas passados cem anos da morte de Machado de Assis, a qualidade da obra do Bruxo do Cosme Velho parece fora de questão, já que motivos e gente para enumerá-los não faltam. Há, claro, quem não aprecie. Como tudo na vida, na literatura o subjetivismo também dá o ar da graça. Dessa forma, a literatura de Machado de Assis suscita ódios com a mesma intensidade que gera paixões. Até aí, tudo bem. Afinal, escritores e livros estão sujeitos ao crivo popular como qualquer outro artista ou obra. Uns gostam, outros não. Ainda mais compreensível quando se trata de alguém considerado gênio e que detém o lugar mais alto no cânone das letras nacionais. Mas é interessante notar como há uma geração de leitores (ou seria não-leitores?), que vêem na figura de Machado um antídoto contra a literatura. Machado de Assis lidera ― talvez com uma cabeça à frente de Guimarães Rosa, e um corpo, quem sabe, de Clarice Lispector ―, o ranking dos escritores nacionais com maior índice de rejeição. Há um sem-número de pessoas que adquiriram verdadeira ojeriza de literatura a partir da leitura ― forçada e equivocada, em algum momento de sua vida escolar ― de algum dos clássicos de Machado, sempre presentes nas listas dos vestibulares mais concorridos do país. Não é difícil encontrar quem se diga não-leitor de ficção graças a Machado de Assis, Bentinho, Capitu, Quincas Borba ou Brás Cubas.
Mas a rejeição a Machado não pára por aí. Também não é raro ver leitores aficionados contestar a genialidade atribuída ao fundador da Academia Brasileira de Letras. E mais: não faltam escritores consagrados dispostos a minimizar a importância do Bruxo para as nossas letras. É cada vez mais raro também ver um jovem escritor citar de bate-pronto Machado como influência maior. Quem e quantos são os nossos escritores com menos de 30 anos que se dizem devedores da prosa e poesia do Bruxo? No Brasil, hoje, há toda uma geração de escritores que está muito mais para Jack Kerouac do que para Machado, ainda que a influência de Machado se dê por osmose nesta e em outras gerações (o tão falado diálogo empreendido por Machado não se equivaleria à troca de informações pretendida pelos blogueiros/escritores de hoje?).
Ainda assim, isso não quer dizer que Machado esteja esquecido. Basta ver a lista de eventos e novas publicações que este ano vão homenagear os cem anos da morte do escritor. A já tradicional Flip (Festa Literária Internacional de Parati), por exemplo, terá Machado como grande homenageado. Sem contar os diversos colóquios (USP), simpósios (Unesp) e ciclo de palestras (Casa de Rui Barbosa).
Mas o fato é que a idolatria em torno do nome de Machado de Assis por parte substancial da crítica especializada gerou um sentimento passional na massa de leitores. Para aqueles que não se sentem seduzidos pela obra do escritor, Machado virou símbolo de uma literatura meio anacrônica, que pouco ou nada revela sobre os tempos atuais. Em suma, um autor que foi engolido pelos novos tempos e ficou preso ao século XIX. Já para quem costuma defender a literatura do escritor, não gostar de Machado de Assis, ou ainda, não reconhecer a qualidade do escritor como artista, é mais ou menos como atestar a própria ignorância. Para o crítico britânico John Gledson, por exemplo, "há um velho preconceito que diz que Machado é monótono, que a gama de emoções e até de idéias e situações na sua ficção é limitada". Tal preconceito, segundo Gledson, "vai de mãos dadas com a incapacidade que muitas pessoas têm de entender a ironia machadiana". Em resumo, não há como passar incólume por Machado de Assis.
Em seu livro A Literatura na poltrona, José Castello, ao discutir o mito que se criou em torno da figura de Jorge Amado, diz que "Jorge Amado é um escritor aprisionado em seu nome ― seu próprio nome, que se tornou um mito, mas também um clichê. Se gostamos de Jorge Amado, somos vistos com suspeita, como vítimas da grande trapaça do exotismo, do sensualismo e da escrita prolixa que, para muitos, define sua literatura, mas é também o contrário do que a literatura deve ser. Se não gostamos, somos olhados com suspeita também: isso evidencia, provavelmente, nosso elitismo, nossa aversão às obras de sucesso, nossa arrogância. Não existe saída, amar ou não amar a literatura de Jorge Amado é sempre um problema". Com Machado de Assis o problema é bastante parecido. Mas em Machado é a crítica que parece estar, incondicionalmente, ao lado do escritor, sendo que a oposição vem, essencialmente, de leitores. Assim como Jorge Amado, Machado teve que carregar nas costas o ônus do mito que lhe atribuem há pelo menos um século.
Mas o fato é que em literatura não há fórmulas fechadas. Assim como uma obra de arte nunca é entendida sob o mesmo prisma, um livro nunca é lido da mesma forma. Gostar ou não de determinado escritor ou obra é uma questão particular, sempre será. Por mais festejado ou criticado que um autor possa ser, é o "filtro" pessoal de cada leitor que vai dizer se ele serve ou não. E com Machado não é diferente.
"Gênio", "milagre" ou escritor defasado, o certo é que este ano não faltará oportunidade para que detratores e adoradores do escritor façam valer seus argumentos.
Perfeito!!! Como poucos, o autor soube demonstrar os posicionamentos pró e contra a literatura machadiana, sem desmerecer Machado. Só me desagrada o fato de o próprio povo que o Mestre retrata (visto que sua obra continua atemporal) não entendê-lo e nem fazer o mínimo esforço para conseguir depreender a grandeza da escrita machadiana. Seria bom, para nós, brasileiros, observarmos o que portugueses pensam de Camões, o que os espanhóis pensam de Cervantes, e os ingleses de Shakespeare. Simplesmente, escritores à frente de seus tempos (e do nosso também).