Faleceu no dia 14 de maio de 2008 um grande músico brasileiro: Wander Taffo, um dos fundadores e diretor da EM&T ― Escola de Música e Tecnologia. Guitarrista competentíssimo inspirou muita gente nos anos 80 e começo dos anos 90 com o Rádio Táxi (a música "Eva", sucesso com a Banda Eva, é deles) e Banda Taffo; isso porque apresentava técnicas e abordagens do instrumento não muito conhecidas no Brasil, num momento em que a tecnologia era precária e Internet coisa de ficção científica, ou seja, o acesso a informação era difícil. Foi de uma geração que se formou em bailes e festas, tocando covers. Em São Paulo, eram conhecidos nos anos 70 os eventos no Círculo Militar, entre outros locais, onde tocavam bandas como o Memphis, de Taffo. Numa época em que raros shows internacionais ocorriam no Brasil, tais bandas é que matavam a fome e sede dos fãs de ver ao vivo músicas de Beatles, Led Zepellin e outros grandes nomes do rock. No final dos anos 80 fundou o primeiro IG&T (Instituto de Guitarra e Tecnologia), que não vingou, com proposta parecida da atual empreitada.
Taffo era daquelas pessoas que se aprende a respeitar por suas realizações e opiniões; quando tocava, eu parava para ouvir. E lia suas entrevistas com atenção: se expressava com clareza e inteligência. Sempre prestigiou e incentivou o estudo a sério da música. E gostava que seus alunos procurassem burilar sua identidade. Dizia preferir ouvir de um garoto um solo de três notas de própria autoria do que mil notas perfeitamente copiadas de músicas de algum instrumentista famoso. Para se ter uma idéia do respeito que os músicos tinham por ele, vai um pequeno "causo": certa vez, após um show num festival do qual Wander Taffo era um dos jurados, Herbert Vianna chamou-o no camarim e disse algo como: "Um guitarrista como você tem que ter uma Gibson Les Paul", e lhe deu de presente uma guitarra desse modelo, que era da coleção particular do líder dos Paralamas.
Ouça "Código Morse"
Em 1997 fundou novamente o IG&T, com apoio de empresários e grandes marcas de instrumentos musicais. Dessa vez a empreitada foi um sucesso e gerou a abertura de outros "institutos" (baixo, bateria etc.), que se tornaram a EM&T ― Escola de Música e Tecnologia, situada numa grande estrutura ao lado da estação de metrô Conceição. As matérias que saíram na época deixavam os garotos aspirantes a guitarristas com água na boca: boa estrutura, salas de apresentações, estudos, e vídeo; videoteca, estúdio, loja, instrumentos da melhor qualidade nas salas de aula, professores de nome. Me lembro até hoje da sensação de entrar, em 1998, naquele sobrado na Avenida Indianópolis, que era um paraíso guitarrístico; de conhecer a escola com aquele frio na barriga de que tudo que eu sonhava estava ali, de sentir o cheiro de coisa nova, de admirar o material didático, instalações e de pensar na chance de trombar casualmente com um ídolo.
Não tive um grande contato com Taffo para uma análise mais profunda de sua personalidade e caráter ― é possível achar depoimentos mais relevantes sobre isso. Mas sempre observei seu comportamento na escola, seja com alunos, professores ou fãs, sempre aberto a bate-papos, com humildade e atenção. Nem por isso deixava o rigor de lado: ouvi histórias de que na avaliação do último módulo do IG&T, ele não pegava leve com os futuros formandos, não: exigia qualidade. Recordo de dois momentos com ele, que, se banais numa visão macro, me marcaram muito e tomo como exemplos da dedicação e entusiasmo com que Taffo se portava na escola. Certa vez, perambulando pelo saguão, avistei-o. Meio nervoso, o abordei para fazer uma pergunta sobre amplificadores. Era uma questão meio simplória, retórica; ele, então, sorriu, disse algo como "não é bem assim" e me pediu para acompanhá-lo até a lanchonete, enquanto começava a falar. Chegando lá, foi simpático o suficiente para me oferecer um café; após minha recusa, calmamente finalizou a explicação, dando sugestões de compra. Para o garoto que eu era à época, parecia inimaginável que um mito como aquele poderia ser tão desprendido com apenas um entre tantos outros alunos da escola.
Outro momento ocorreu uns dois anos antes. Meu professor resolveu que os alunos gravariam, cada um, um solo sobre uma base pré-gravada, numa espécie de estúdio caseiro que havia ao lado da administração, ainda no IG&T da Indianópolis. Fomos todos, felizes, levando uma guitarra apenas média que havíamos escolhido em consenso. Taffo estava no tal estúdio, e acabou ficando para nos ver gravar. Não satisfeito, disse "gravem com essa guitarra aqui". E puxou um case imponente, abrindo-o e mostrando uma maravilhosa Gibson Les Paul preta. Eu, um admirador desse modelo, mal podia me controlar ao gravar ― ao tocar! ― com uma delas. E à época grande fã dos Paralamas do Sucesso, quase não me contive ao descobrir que a guitarra com a qual acabara de tocar era a tal Les Paul presente de Herbert Vianna, da história de alguns parágrafos. Taffo ainda foi simpático e incentivou a todos.
Essas simples histórias mostram que o tratamento que Wander Taffo dava a quem estudava na EM&T não se restringia ao "negócio", ao "serviço". Transbordava isso com uma preocupação genuína de quem quer ver a evolução dos aspirantes a músicos, procurando mostrar que a música não se restringia a um ou outro estilo e que o esforço do aprendizado era recompensado com a excelência. E que a busca a ela deve ser permanente. Wander se vai, mas não só deixa sua marca na música, como também uma gigantesca herança no ensino e divulgação de música: a EM&T, que vale, aos amantes da música, pelo menos uma visita. Então fica aqui: obrigado, Wander Taffo. Por suas realizações e inspirações. Sei que há milhares de músicos por aí que também desejariam te dizer isso.
Rafael, fiquei muito feliz ao ler sua homenagem ao Taffo. Mais ainda quando li que ele incentivava seus alunos a criar composições próprias (ainda que fossem poucas e desconexas notas combinadas). A refundação do IG&T foi importante para mostrar como ele era um entusiasta e acreditava no projeto, mas são esses pequenos gestos que descrevem como ele tinha verdadeira paixão pelo que fazia. Afinal, tocar guitarra não é só plugar e sair arranhando. Quem quiser ir longe tem que estudar, se dedicar - mas sem esquecer de buscar uma linguagem própria. Onde muitos se acomodariam em ensinar a reproduzir solos famosos, ele mostrou que sua visão ia muito além.
Rafael, muito justa a sua homenagem! Acho que não foram tantas quanto o Taffo merecia, excelente guitarrista que era. Acredito que ele ainda merecerá muitos textos relevantes como o seu. Senti-me estimulado a este comentário por uma triste coincidência: eu chegara no dia 14/05, às 18h30, na EM&T, para um Workshop com o Conrado Paulino, e a secretária deu-me a notícia: "O workshop foi cancelado, assim como todas as aulas, por motivo de luto! O Wander morreu hoje de manhã, ligamos pra você mas não tinha ninguém em casa". Fiquei confuso: o Wander Taffo? Sim. Morreu do coração... Foi um choque, pois faria 54 anos no sábado seguinte! É uma pena quando alguém de tanto talento, referência como músico no seu instrumento (como era o Wander), nos deixa prematuramente. Não o conhecia pessoalmente, e esse workshop na EM&T, a escola de ponta que ele ajudou a criar, seria uma possibilidade para isso. Uma infeliz coincidência, justamente naquele dia! Um grande músico a menos no Brasil e no mundo.