Velocidade é a bola da vez. Não sei bem se é isso, mas não tenho mais tempo para errar. Há alguns meses, numa mesa-redonda em Belo Horizonte, o professor Eugênio Trivinho (PUC-Santos) falava em "dromoaptidão". Nunca mais me esqueci. Ele fala difícil, a platéia de estudantes de graduação em Comunicação ainda não sabia o que fazer com aquelas palavras. Muita gente riu baixinho, pensou logo no dicionário. "Dromoaptidão" era um conceito que Trivinho desdobrava ali para aquela "galera". E era mais ou menos a aptidão que nós (e os próximos habitantes desta Terra) devemos ter para lidar com a velocidade.
Além do professor de Santos, capítulos de livro trazem pesquisas sobre o tal do "tempo real" e a perseguição de um intervalo cada vez menor entre os fatos, os fatos e as idéias, os fatos e os textos, os fatos e o jornalismo. Uma correria que aparece na vida de todo mundo das mais variadas formas. Gerações que se sucedem e ficam sem o que fazer cada vez mais cedo.
A geração dos meus professores universitários fazia doutorado aos 45-50 anos. A minha geração é de doutores antes dos 30 ou pouquíssimo depois. Inventou-se, para dar conta disso e manter a "linha de corte", o pós-doutorado. E deste se pode ter um, mas é pouco. Há jovens estudiosos com cartelas de dois, três ou quatro, antes dos 40 anos, uns dentro e outros fora do país.
Vou pelo mesmo caminho, mas não sem me perguntar: para quê estou correndo tanto? Onde vou parar? Para quem quero falar o que eu aprendo? Turmas cada vez menores? Poucos indivíduos que querem fazer carreira na ciência? Embora haja vasta comissão de ressentidos que vão mal na profissão ou que apenas repetem a crítica infundada àqueles que fazem da pesquisa a profissão (muitas vezes a vida), é nisso que este país se fia, com o pouco que ele é, para atravessar camadas e camadas de ignorância reverberada até por quem estuda.
Em todas as grandes universidades deste país (não estou falando de faculdades), há equipes grandes de pessoas de variado nível de formação questionando, examinando, estudando e propondo o que se faz do lado de fora daquelas cercas. Em qualquer região do Brasil, pessoas dedicadas ao conhecimento (e não apenas à informação replicada, muitas vezes mal replicada) fazem seminários para ver o que é possível para melhorar isto ou aquilo.
Fico observando aquelas equipes da Engenharia de Materiais. Eles têm de pensar em tudo, no presente e no futuro, e de fato alteram as perspectivas do que acontece dentro de nossas casas. Ou aquela turma de jaleco branco que acaba de passar por ali. São biólogos e vão almoçar. Um pouco mais cedo, estavam discutindo alguma coisa sobre meio ambiente. Os cientistas da Computação estão ali trancados resolvendo o que fazer com a pesquisa de um tal ex-aluno de doutorado que inventou algo muito importante para isto ou aquilo. E a turma da Faculdade de Educação entregou hoje cedo as matrizes que direcionarão o ensino de Matemática nos próximos anos, se os professores deixarem.
E para quê corro tanto? Para ver a banda passar. Para chegar na frente. Para que minha vida aconteça à minha revelia. Para que meu filho tenha um futuro bacana. Para ter grana. Para aprender coisas que pouca gente sabe. Para contribuir. Posso dizer tanta coisa para me justificar, mas prefiro ficar cansada. No final, estaremos todos vizinhos nas mesmas covas. Para quê correr?
Uma moça me contava, há duas semanas, a experiência de morar no exterior. Não em Londres ou em Nova York, mas em Moçambique. Antes disso, fez um estágio no interior da Amazônia e depois concorreu a uma vaga na África. Lá, não tinha quase onde morar. Pegou malária duas vezes. Depois de três anos, resolveu voltar para o Brasil porque ficou grávida. Não fosse isso e teria curtido mais a missão. Dizia ela: "Aprendi muito com esses povos. Lá você dizia ao cara para pensar no futuro, guardar a comida, conservar o peixe e ele dizia: para quê?". Quando ela argumentava: "Para você ter um dia melhor amanhã". O africano dizia: "Mas aí eu posso ter um dia melhor hoje". Caça, pesca, coleta. Isso mesmo, vida de quem está, não será. E se for, melhor.
Ela dizia isso e sugeria a alunos de Letras que concorressem a vagas oferecidas por agências nacionais de fomento para viagens ao exterior. Não para Milão ou para Lisboa, mas para Moçambique ou para qualquer outro canto do mundo onde não haja uma vida, no fundo, muito parecida com esta. Ela dizia isso e refletia: correr para quê?
Não quero viver da coleta. Não sou caçadora e nem estou preparada para o "carpe diem" dos filmes americanos ou dos poemas árcades, mas bem que eu queria um descanso. Não este descanso falso dos finais de semana que começam no sábado à noite. Não a pseudoparada dos que dormem de dia. Ou a noite exausta de quem trabalha sem parar. É isso o que se tem feito. Eu queria o descanso de viver este dia do moçambicano sertanejo. De quem não conhece, simplesmente não sabe o que é, o celular, a televisão, a caixa de e-mails ou a luz elétrica. Impossível.
Faz tempo que a velocidade vem mudando de jeito. Não por conta da internet, que esta é apenas a etapa que nos soa mais fresquinha. Desde o telégrafo, o trem a vapor, o telefone. Desde que a distância pareceu ser relativa. Desde que os burricos que atravessavam montanhas pararam de trabalhar. O tempo vem sendo manipulado. As pessoas vêm delegando suas reflexões e seus desejos a outras. Se gostam ou não, se querem ou não, se são ou não, tanto faz. Terá sido tudo uma imensa onda de práticas meio espontâneas.
Sem ler sobre o assunto, mesmo sem freqüentar aulas de "Análise do Discurso", seja de que linha for, é possível parar para ouvir os ecos de tudo o que se diz. Aqui, neste Digestivo, é possível ler uns textos que ecoam outros; tantos que expressam bonitamente a conversa do boteco, com mais elaboração, é claro; outros tantos que conversam entre si e nem sabem. O que importa é saber o quanto estamos presos a uma rede invisível de sentidos que já vêm meio prontos. Uma teia de relações que já chegam feitas. Uma onda transparente de significados que carrega os ditos e os não-ditos. Sem ter como escapar. Os dizeres estão sempre presos a outros, mesmo que não se saiba se alguém já disse aquilo antes. E principalmente por isso.
Pensar deveria ser a coisa mais importante de tudo. Da vida em família, da escola, da convivência. Saber pensar deveria ser a habilidade mais almejada de todas. Antes de saber envergar roupinha de marca ou saber inglês, antes de conhecer música ou ler Machado de Assis. Antes de ser "do contra" ou de apoiar a "situação". Pensar deveria ser obrigatório. Não sei pensar. Não aprendi direito. Antes que eu consiga (porque eu até tento, há quem nem isso...), vêm logo essas redes de sentidos me carregando. Que antídoto há para isso? Pensar de novo, ler mais, conhecer os textos (falados, inclusive) que já rolaram nesta correnteza e tentar ao menos me localizar. Saber que ecos tem minha voz. Pensar de novo e assistir aos efeitos do que eu disser.
Em 2002 eu tinha um blog. Ele era até conhecido. Fazia resenhas e entrevistas com escritores. Depois me cansei dele. Hoje tenho preguiça dos blogs, assim como de outras coisas e pessoas. Lá no meu blog era assim: eu mal pensava e já havia escrito. Muitas vezes funcionava. Mas isso não tem a menor importância para mim mais. No blog, no site, na mesa de bar, a velocidade eclipsa uma série de coisas mais importantes. Muito do que se escreve é de uma irresponsabilidade exemplar. O Digestivo já foi texto de prova de vestibular várias vezes. Imagine-se o que isso ecoa nas práticas de muitos lugares? Parece bobagem? Não é. Muito do que se toma como verdade é irrefletido, bobo, superficial, reelaborado, tolo, restrito, mas se quem escreve só faz escrever sem pensar, imagine-se o que fazem os que apenas lêem, e lêem mal?
A velocidade com que as coisas podem ser feitas e ditas tem trazido à luz o que deveria ficar guardado em tonéis de carvalho. Há produtos da cultura que jamais, esteja a tecnologia como estiver, sairão dos barris antes do tempo. Ainda bem.
Ana, és "fantástica" (precisaria dizer isso? Sim, porque palavras como essas deveriam - ou devem - permanecer guardadas em tonéis de carvalho, conforme sugeres). De início, chamou-me atenção, em teu texto, o questionamento sobre o correr tanto, seguido de "Para ver a banda passar". Para bom entendedor, só isso basta. Mas ficou-me a inquietação, até que consegui: quem pára para ver a banda passar não cansa, porque para vê-la passar é preciso parar. Daí o descanso. Outra de tuas preciosidades: "Hoje, tenho preguiça dos blogs, assim como de outras coisas e pessoas". Ana, a permanceres assim, faltarão tonéis de carvalho para guardar tanta coisa boa. Parabéns. Sou teu admirador.
O interessante é que, quando se lê um texto bom de um autor, comentamos, com nós mesmos, "eu escreveria assim se quisesse", mas vem a preguiça e não colocamos nada no papel. Ou melhor: com as facilidades que temos, digitamos e apagamos centenas de vezes, e não temos coragem de escrever o que pensamos. Gostaria de ter essa mesma coragem de, pelo menos, começar. Parabéns, um dia chego lá...
Imagine uma montanha cujo pico está sob uma neblina densa. Analogicamente, os textos de rápida compreensão, fáceis, estão na base da montanha, e outros, como o seu, Ana, estão no pico. Reli o texto. O coloquei na base da montanha, porém não foi um texto de rápida compreensão, para mim. E pensei (o que mais faço ultimamente). Para obter a dromoaptidão é necessário pensar, pensar e controlar está velocidade, nas suas mais variadas vertentes, equilibrar o tempo real que nos é dado. Logo, só falta a concepção da pergunta: Pra quê correr?
Estou de acordo com seu excelente artigo, Ana Elisa, porque de fato há um desgaste nas palavras, no raciocínio intelectivo e pragmático. Mas ainda assim a inteligência abstrata reage e procura salvação nas efemérides do mundo, na velocidade entorpecente do conhecimento fugaz, até quando a mente se encontra completamente batida, e o intelectual se queda na lona. Nessa hora, nada o pode socorrer, suas concepções arrogantes não o tiram da dor da falta de sentidos, pois não logram de novo o efeito letárgico do pensamento caleidoscópico.
Parabéns, estou correndo, para variar e nem pude terminar de ler tudo. Correndo, sem pensar. Mas os que menos pensam, Ana, são justamente os que mais deveriam pensar. Já os que poucas chances tiveram, por incrível que pareça, pensam mais e mais inteligentemente do que aqueles que poderiam estar ajudando.
A maioria de nós prefere fugir a enfrentar uma forma de raciocínio capaz de dinamizar a nossa vida, de estabelecer o nosso sonho além da universidade. O mundo em que estamos respirando chama-se Terra; temos que construi-lo coletivamente, e pronto.
Parabéns pelo texto, Ana Elisa. Que conteúdo pertinente aos dias de hoje e quantas idéias excelentes para serem comentadas! Algumas delas "ecoam" exatamente o que eu penso. Estamos perdendo o prazer da descoberta, da novidade, com tanta coisa "interconectada", com as distâncias encurtadas com tamanha tecnologia e velocidade. E fica a sensação de que o tempo passa depressa demais. Eu também quero um descanso para ao menos ter a ilusão de estar "alongando" esse mesmo tempo.
Acabo de escrever um texto sobre você em meu blog. Escrevi rápido, após ler sua entrevista, portanto talvez você diga que eu me encaixo nestes que escrevem sem pensar. Mas já pensei muito tempo, sem escrever. Hoje ainda penso, mas a possibilidade de ser lida, de fazer alguma diferença para alguém, de repassar algo de bom, algo de útil, me é tão cara, tão preciosa, que não me arrependo de às vezes escrever na pressa, sem um conhecimento aprofundado do assunto. As notícias ruins já chegam muito depressa até nós. Notícias boas - como foi para mim a sua entrevista - às vezes também precisam correr na velocidade do vento.
Escaneando por aqui, resolvi sorver-te. Acredito, Ana, infelizmente, que esse é o mal do novo século. O escaneamento rápido e a deglutição dolorosamente veloz da informação que o nosso cérebro tem de fazer. Hoje na nossa sociedade consumista - não só no sentido econômico - cada vez mais tudo resume sua imfomação em símbolos. Texto-símbolo, marcas-símbolo, idéia-símbolo; quase tudo é baseado em pré-conceitos. Vale o seu manifesto. Mas, que destino nós, Digestores emancipados, teremos? Não tarda a nossa comunicação - e/ou toda a informação - será deduzida novamente a símbolos, como num pesadelo Orwelliano?