Certa vez, conheci Hanz, um repórter alemão, de passagem pelo Brasil. Minha amiga J., também repórter, fotógrafa de um dos jornais mineiros, estava namorando o sujeito. Se encontraram numa festa de jornalistas, no apartamento de um deles e Hanz estava lá, em pé num canto e "muito lindo" (putz), como J. me contara, com seus "olhos azuis tristes e uma pele queimada de sol" (putz 2), olhando umas fotos de Belo Horizonte que J. havia tirado e que o dono do apartamento, amigo dela, havia emoldurado e pendurado na parede.
J. se aproximou e houve aquele lance entre os dois e coisa e tal. Hanz falava o espanhol e, apesar de ser a primeira vez que vinha ao interior do Brasil, era bastante viajado pela América do Sul, principalmente Chile e Argentina, onde ele mantinha um apartamento.
J. se encantou com o sujeito e, afinal, acabei por conhecê-lo. Foi um encontro rápido e casual numa lanchonete do centro. Eu caminhava por ali e vi J. dentro da lanchonete. Fui lá dizer "oi" e havia esse cara com ela. Estavam terminando um café no balcão.
Hanz era um cara até simpático, mas tinha aquela segurança calada de europeu muito viajado; o que, nos meus verdes anos, eu poderia confundir com uma discreta mas incisiva espécie de arrogância. E eu confundi, claro.
Estávamos nos anos setenta, o clima era politicamente incorreto e os jovens podiam ser beligerantes ― são minhas desculpas esfarrapadas e as únicas que eu tenho, ainda hoje ―, de forma que, calculando por alto a idade de Hanz, que era mais velho, perguntei à queima roupa onde ele estava e o que ele fazia na Alemanha, no final da Segunda Guerra.
Hanz sorriu calmamente, como se já tivesse respondido essa pergunta uma centena de vezes. Eu poderia dizer que seus olhos relaxaram naquela frieza azul, mas acho meio... deixa pra lá. Eu já estava arrependido, mas ele me passou, tranqüilamente, sua única memória da guerra.
Disse que estava em Berlim, quando a guerra terminara, e tinha três ou quatro anos de idade. Ele e sua mãe estavam em casa, quando os aliados entraram na cidade. Disse que estava abraçado com sua mãe, na sala de sua casa, ouvindo alguns estampidos ao longe, quando a porta se abriu e entrou por ela um grande homem negro.
Hanz disse que na sua memória o homem parecia gigantesco. Era um soldado americano. Carregava um fuzil e ficou parado na porta um momento, contra a luz que vinha de fora, antes de entrar. Hanz disse que se lembrava como o soldado sorriu para ele, podia ver os dentes muito brancos, destacados na face escura. E lembrava-se como o soldado foi em sua direção e desfez o seu terror inicial, agachando-se na sua frente, procurando algo nos bolsos de sua jaqueta militar, tirando de lá um pequeno pacote e colocando nas suas mãos uma barra de chocolate. O soldado disse ainda algumas palavras incompreensíveis, deu um tapinha amigável em sua cabeça e se foi. Hanz disse que isso era tudo que podia se lembrar da guerra.
O namoro com J. não foi pra frente ― parece que durou exatamente o tempo de permanência de Hanz na cidade ― e eu nunca mais vi o sujeito ou soube qualquer coisa a seu respeito (apenas J. me falou dele ainda, depois que terminaram, mas passou).
No entanto, trinta anos depois, recordo sua pequena história como se fosse minha. Mais até do que muitas histórias minhas, pessoais, recordo a história do menino alemão e do soldado americano, no final da Segunda Grande Guerra. Essa história, que está arquivada, na cabeça, juntamente com outras, recolhidas aqui e ali, formam o painel da minha memória pessoal.
O insólito da coisa é que esse meu arquivo mnemônico ― uma antologia tipo "contos escolhidos" ― é formado não só por minhas experiências pessoais, mas por histórias como essa, e todas têm um peso semelhante. Todas são memórias "literárias". Mesmo que a história de Hanz tenha sido contada verbalmente, ela está junto com outras que foram tiradas de livros, no geral.
Dessa forma, me lembro claramente, por exemplo, do encontro de Alice, de Lewis Carroll, com o rato, na piscina de lágrimas, em Alice no País das Maravilhas ("Ó Rato, você sabe como sair dessa lagoa? Estou cansada de nadar aqui, ó Rato!"), estabelecendo, pra todo mundo e para sempre, a forma correta de se dirigir a um rato (forma que Alice tirou das flexões do latim: "Rato. De um rato. Para um rato. Um rato. Ó rato"). Posso também ouvir Sherlock Holmes e seu violino, que fariam inveja a um Paganini, enquanto o doutor Watson se preocupava a respeito da relação dele, Holmes, com a morfina. Ou é como se eu estivesse na sala do apartamento do pai de Seymor Glass, enquanto os dois conversavam e ouvisse de Seymor a afirmação de que ele não sabia se alguma vez tinha descido daquela bicicleta prateada... (está no livro de Salinger: Seymor, uma apresentação).
Os exemplos são muitos. Seria possível escrever livros inteiros com eles. Meio de propósito, escolhi esses exemplos porque vieram da literatura considerada como menor, em relação à literatura de autores consagrados como canônicos. Mas, falando nisso, Sherlock Holmes não perde para Hamlet como presença, na memória, e é infinitamente melhor para se recordar do que Gregor Samsa.
Uma pergunta que já tentei responder em salas de aula, em provas ou redações, foi: para quê serve a literatura? Bem, se a gente vive coisas e deve necessariamente lembrar-se delas depois (para saber que está vivo, ou que viveu essas coisas ― porque só os mortos não têm memórias), é lógico pensar que acumular recordações é uma forma de expandir a vida. Que algumas dessas memórias venham de livros, de coisas que você nem viveu, é uma forma de atestar a maneira, quase mágica, com que as pessoas podem trocar pedaços de vida entre si. O problema, claro, são as péssimas escolhas nessas trocas. Sempre acontecem muito. Mas, tirando isso, o resto é lucro, líquido e certo.
Guga, seu ensaio é fantástico! Realmente, ler um livro é vivê-lo sem ter vivido. Minha memória também está repleta de trechos de livros e também tento escrever a minha própria história pessoal como quem escreve um livro com final feliz.
Lembro-me de um livro infantil, que li na 5ª série, sobre um grupo de estudantes que ficava preso em uma caverna no Pico do Jaraguá. Como eu podia ver a montanha de onde eu morava, aos poucos minha memória foi distorcendo a história, construindo situações de perigo em que eu participava, aterrorizado. Tive até pesadelos. Até hoje minha memória distorce o enredo, muda seu começo, seu final; o que era um passeio de estudantes se transformou em um passeio de bicicleta com amigos, entre tantos que fiz por lá... Qualquer dia desses, volto lá para ver o final que vou dar a essa história...
Esse texto me fez pensar algo bem inquietante. Se nossa vida é o que nós lembramos dela, então não vivi realmente nem metade do que vivi fisicamente, pois a maior parte das coisas vividas perderam-se de minha memória. Ainda contando que boa parte da minha memória é composta dessas histórias ficcionais, não só da literatura como também de filmes e peças teatrais, de repente sou um ser mais fictício do que real. Melhor eu parar de pensar no assunto antes que eu comece a sumir como no "De volta para o futuro".
Guga, você faz parte da minha memória sempre. E ainda construo pedaços de suas histórias e vou juntando às minhas e vou tentando entender esse troço todo. O seu texto tá impecável e impagável. Muito bom, bom mesmo. Beijo.