Às vezes adiamos leituras simplesmente por achar que não vamos gostar. E, se não há prazer na leitura, ao menos de literatura, para quê ler? Para dizer que leu? Sou terminantemente contra isso. Se eu começar a ler, por exemplo, Moby Dick, e não gostar, paciência, coloco o livro de lado e parto para o próximo. Claro que vou chorar o dinheiro e o tempo perdido (mais o dinheiro que o tempo), mas paciência. Há sebos demais por aí e gente disposta a pagar algum por um livro recém-comprado. Mas é óbvio que isso não acontecerá comigo. Afinal, tenho um gosto refinado, e jamais diria que não gostei de Moby Dick. Tem como não gostar de Moby Dick?
Essa pequena e boba introdução serve apenas para dizer que adiei a leitura de um livro de Bernardo Carvalho o quanto pude. Sempre achei que não ia gostar dele ― do autor, no caso. E, caramba, não gostar de um autor contemporâneo é pior que dizer que não gosta de Machado. Vocês pensam que não, mas é verdade. Abram a boca para dizer que não gostam daquela jovem moça de São Paulo; ou daquela outra (já não tão jovem assim) de Porto Alegre; ou então daquele rapaz, revelação carioca. É uma espécie de suicídio literário-social: você diz isso e te viram as costas, chamam de maluco e sem noção, colocam seu nome em portas de banheiro acompanhado de palavras nada agradáveis e começam a comentar por trás "ele não bate bem do juízo...".
Então, se eu lesse algum livro de Bernardo, não gostasse e dissesse isso publicamente, fariam fogueiras com as páginas impressas da minha resenha ou post e é provável que eu precisasse sair do país e tudo. Mas, ainda bem, isso não vai acontecer. Até porque os leitores de Bernardo Carvalho não fazem parte do Movimento dos Literatos Revolucionários, cujos integrantes têm idade mental de uma criança de 11 anos e são fãs de autores com a mesma idade mental que eles. Além disso, li um livro de Bernardo Carvalho e gostei.
Foi O sol se põe em São Paulo (Companhia das Letras, 2007, 168 págs.), que havia comprado em 2007, por causa do título e da capa. Às vezes faço isso, compro livros por causa do título e da capa. Não faz muito tempo, conheci um livro chamado Concreto armado, eu te amo, das áreas de Engenharia Civil e Arquitetura. Tem coisa mais linda que um título assim? Concreto armado, eu te amo. É de um romantismo que não existe mais. Sei sobre engenharia civil o mesmo que aquele cara que construiu um monte de prédios misturando com farinha de trigo com cimento, mas juro que fiquei com a maior vontade de comprar o livro, só por causa do título. Ah, outra coisa que faço também é demorar de ler os livros que compro ou ganho. Mas, enfim, voltemos a O sol se põe em São Paulo, que é um romance muito bom.
O título faz uma quase alusão ou alusão às avessas ao Japão, país também conhecido como "terra do sol nascente". O Japão é presença forte do romance, o que me levou a fazer várias vezes a mesma pergunta, diante do espelho: "se em 2008 comemoramos os 100 anos de imigração japonesa no Brasil, por que diabos não adiaram a publicação do livro por 1 ano?" Pensei que, dessa forma, o livro teria mais chance ainda de aparecer na mídia. Mas, depois de receber do espelho o silêncio como resposta, desisti de saber e me resignei a apenas continuar lendo o dito cujo.
No romance, um escritor frustrado ― na verdade, um aspirante a escritor frustrado, o que é pior ainda, já que ele não tem nenhum livro publicado ― serve de ghost writer para Setsuko, a velha japonesa dona do restaurante japonês que ele freqüenta. Na verdade, não chega a ser um ghost writer, pois ela quer lhe contar sua história, mas quem a publicará ― ou não ― será ele, e não ela.
Descendente de japoneses, o escritor quer distância do Japão. Ao menos é o que ele diz. Mas, se realmente tivesse ojeriza à terra do sol nascente, por que iria regularmente a um restaurante japonês? E por que aceitaria dar forma justamente à história de uma japonesa?
Respostas são necessárias, mas nem sempre são fáceis de encontrar. Mulher direta e sem meias palavras, Setsuko é, também, paradoxalmente, repleta de mistérios e silêncios, muitas vezes deixando lacunas em seus relatos. Sua história é quase inacreditável, e o escritor quase sempre fica perplexo com algumas das revelações que a velha japonesa lhe faz.
Em determinado ponto do romance, ela, Setsuko, desaparece. Vende o restaurante e vai embora, não se sabe para onde, sem terminar de contar sua história. Para o escritor, deixa o pagamento referente ao livro que ele deve terminar de escrever e um pedaço de papel com um endereço no interior de São Paulo, para onde ele se encaminha. É nesse ponto que os mistérios de Setsuko começam a ser revelados, e é também quando o escritor dá início à experiência mais importante de sua vida, que definirá seu rumo dali para diante.
Contra a própria vontade, vai ao Japão. O país que o recebe nada tem de caloroso ou acolhedor. Muito pelo contrário. As pessoas não lhe dão atenção e são atravessados, desconfiados, os olhares que lhe dirigem. Sua irmã mora na terra do sol nascente há alguns anos, mas não o deixa conhecer sua casa e as condições nas quais vive (ou sobrevive). Depois de anos sem se ver, os irmãos passam apenas algumas horas juntos, pois ela não pode se ausentar sequer um dia do trabalho. Quando ele precisa de alguma ajuda, sempre a recebe de um estrangeiro, não de um japonês. O Japão de Bernardo Carvalho não é aquele Japão que costumamos ver na tevê, onde pessoas vão para ganhar bem, juntar dinheiro e voltar para o país de origem. É um país como qualquer outro, sem fantasias ou ilusões. É nessa terra estranha e fria que o escritor terá de buscar as origens de Setsuko e sua verdadeira história. Uma missão difícil para alguém que sente o fracasso impregnado na alma. Mas talvez a única chance de redenção para alguém que não fez nada de valoroso em toda a vida.
O sol se põe em São Paulo é literatura e, além disso, é sobre literatura. Sempre que têm oportunidade, a velha japonesa e o escritor fazem comentários sobre o assunto. E assim como Setsuko não é quem o escritor pensava, uma obra literária muitas vezes não é o que parece ser. Assim como uma pessoa tem diversas facetas, as tem também um poema, um conto, um romance. Pessoas são como livros, e vice-versa. Dessa forma, a literatura é vida, e deve ser escrita/lida/vivida da melhor maneira possível. Tanto vida quanto literatura precisam valer a pena. E O sol se põe em São Paulo vale.
Termino de escrever esta resenha com o sol nascendo lá fora. Talvez isso signifique alguma coisa. Talvez não signifique nada. Vai saber...
Há livros que lemos e gostamos, já outros, não. Sabemos daqueles que não lemos e odiamos assim mesmo. Sugiro, inclusive, uma boa definição para "clássicos" (como "Moby Dick"): são os que adoramos sem ter lido. Quanto a mim, estou com Wendy Cope que considerava "escrever para entreter" uma sugestão apavorante. Escrevia, segundo ele, para fazer as pessoas ansiosas e miseráveis; para piorar sua indigestão. Se não me sinto perturbado por uma leitura, olho desconfiado para o livro.
É, Bernardo Carvalho entrou na minha fila, logo atrás de Alexandre Plosk e Tatiana Salem Levy. E Moby Dick não seria MOBY DICK sem os capítulos "técnicos". Muito menos sem os capítulos "viajantes", como The Whiteness of the Whale (A Brancura do Cachalote), The Battering-Ram (O Aríete), The Fountain, etc. Acabei de reler. É cada vez mais impressionante.