Na volta ainda se encontra tudo em movimento. Estou à margem, em contemplação frente às eternas transformações de uma grande cidade que não pára. A prefeitura fecha os olhos para os grafites cobertos de cinza na 23 de Maio, o mercadinho Spah muda de nome, as obras do metrô avançam, a nova carteirinha da USP consegue ficar pior do que já era.
A FLAP! 2008 se aproxima, vejo um Guia da Folha de livros... Novidade na roda é o que não falta. A reforma da Avenida Paulista ainda continua, eu que esperava encontrá-la pronta, tudo a mil, mas as coisas nunca ficam prontas, se tudo é eterno movimento. Passo lá à meia-noite e encontro máquinas fumegantes, cada qual com uma função definida, espalhando, esquentando, amassando pedrinhas negras de futuro asfalto. Outro exemplar, estridente e pesadão, traça no chão um sulco que delimita algo invisível. Me sinto entupida em uma aorta em plena reparação. Os paulistanos já estão acostumados ao quebra-quebra e dali parece pulsar o coração de um mundo em construção.
A realidade se dissolve neste desfazer-se fazendo, como se fosse possível tirar uma casca velha e pedregosa e revesti-la com uma penugem leve. Alguém teve a idéia de colocar espelhos no tapume da obra no Santa Catarina para refletirem o rosto dos pedestres. Os novos prédios sustentam uma arquitetura espelhada e cansada. Reparo nas coisas com um interesse quase turístico, de quem logo vai dizer adeus e sabe da efemeridade das mudanças, embora queira um gosto do que persiste. O quarteirão do Conjunto Nacional e um ou outro edifício residencial resguardam numa faixa parte do ladrilho português, ainda que eu, precavida, houvesse guardado um parzinho daquela vida precária, por que não?
Lembro de um travesti desfilando pelos carros, glorioso e patético em sua maquiagem quase circense. Naquelas alamedas próximas ele pedia dinheiro para si ou para um grupo de teatro, não sei. Parecia uma lesminha de porcelana com uns olhinhos azuis vergados, um fio de boca cor-de-rosa. Mas quem estava na cristaleira éramos nós. Noutra vez o vi dormindo na calçada e imaginei a que ponto chegara, sem mesmo uma concha.
Ainda na Paulista, dois postes de metal com tímidas lâmpadas resplandecem como asas de besouro. Será que vão trocar todos os postes de concreto, me pergunto. As novas floreiras, quadradonas, impedem que os passantes sentem. Impediam, porque para tudo dá-se um jeito...
Há alguma coisa estranha no ar quando a máquina do estacionamento engole o tíquete e repete "O Shopping Pátio Paulista agradece sua visita". Se os shoppings mudam de nome e ganham um mega-gesso na fachada e colunas internas, é sinal de que mesmo o que parecia acabado encontra formas de refazer-se. A fachada dura e limpa, quase austera, moderna até, do antigo "Paulista" agora tem ferragens e vidraçaria à moda clássica européia... Só a casca mudou, ainda bem que o recheio continua gente como a gente.
E o passeio de reconhecimento de terreno não pára por aí. A famosa água de coco da saída do Museu do Ipiranga some numa operação de limpeza e contenção dos ambulantes sem licença... Funcionários da prefeitura metem num saco branco os cocos, não sem um medo de quebrar, um jeito de não é certo fazer isso com um compadre. Mas ordens são ordens e vamos embora mudos, não sem antes lançar um olhar atônito à cena.
Na volta pra casa, notícias assolam o bairro: Sabrina Sato é sua mais nova moradora, duas livrarias são inauguradas, construtoras continuam a arrancar o sol com os dentes. Pois é, a apresentadora complementa sua malhação no Parque da Água Branca, o mesmo cujas copas das árvores são moeda de troca. Há poucos parques em São Paulo, daí ser um privilégio para poucos ter uma vista esverdeada. E assim os telhadinhos vermelhos vão sumindo aos poucos do horizonte da Rua Turiaçu, dando lugar aos luxuosos quatro suítes. É ainda uma veia tranqüila com seu pequeno comércio. Talvez nem tudo tenha mudado - uma brisa fria de inverno vem acenar para quem se exibe na janela. Ainda bem.
O fim de tarde aos poucos passa do amarelo para o laranja, chegando ao rosa para depois enegrecer de vez. O vozerio vivo do bar em frente sobe audível. E pensando nessas coisas, mutantes como nós, recebo um telefonema. Um amigo, o Vinícius Rodrigues Vieira, vem espantar a solidão e me conta que escreveu um poema há alguns dias.
"Confrontar o velho com o novo
E perceber que, no novo,
Já estava o velho
É sentir dor de velho
Quando ainda se é novo
E ver-se de novo
Com cara de velho
Porque, se fosse velho,
Só poderia ter sido novo
Mas, como ainda é novo,
Pode imaginar-se velho,
Sem vida no novo,
Atuando como um velho,
Mesmo parecendo um novo
Com corcunda de velho,
Que perdoa o novo
Por perecer-se velho
Antes de ter sido novo"
Nessa contradição barroca me percebo como uma larva contorcida em dúvidas. Me deito em antiga relva sabendo que por todos os lados alguém acorda, alguém mergulha, alguém não te espera.
Daí, eu, assim triturada às nove da manhã pela britadeira que furava a calçada da minha casa, levantei e decidi encarar o dia.
É isso aí. Seres urbanos sentem-se alienígenas sem noção de tempo e espaço. Às 7 da noite, dentro de suas naves-aquários, encalacradas no trânsito, são abduzidos pelas luzes em volta, e transportados para ilhas paradisíacas.