"então ele aceitou o convite para virar palavra como se todo mundo não fosse como ele um monte de palavras dos pés aos fios de cabelo lembro de um dia em que andava pela rua lendo as placas de obras ltda lia na infância como se fosse uma palavra inteira não uma abreviatura de limitada ele não sabia e não fazia falta saber ltda existia e existir era o seu sentido muitos anos depois foi descobrir fazendo análise que as palavras são mesmo um labirinto que começa não se sabe onde e termina num lugar totalmente diferente de onde se partiu como se fosse possível"
STOP
Esse não é um bom jeito de começar um texto sobre a estréia de Ricardo Silvestrin no universo contístico. Play (Record, 2008, 176 págs.) reúne 16 narrativas curtas e arremata com "Play", um fluxo de consciência de quase 40 páginas em que Silvestrin exibe todo o seu domínio com a palavra, criando cenas, imagens e costurando aos poucos uma narrativa sem usar pontuação alguma, divisão de parágrafo alguma e letra maiúscula apenas nos nomes próprios. Mas deixar-se levar pelo experimentalismo desse texto e resumir o livro de Silvestrin nele seria deixar para trás as demais 16 narrativas que revelam um contista, e não um poeta que faz contos.
Na orelha do livro, o mestre Luiz Antonio de Assis Brasil chama a atenção para essa transição, digamos assim, do poema ao conto: depois de ressaltar que todas as virtudes do poeta estão presentes, como a essencialidade e a palavra certa, afirma que "sabendo por onde pisava, ele não caiu nas armadilhas dessa transição, e a mais perigosa é a de sobrecarregar a narrativa com imagens e metáforas".
Não espere, portanto, poemas em prosa, prosas poéticas ou qualquer excesso de experimentalismo formal, com exceção de "Play". O que temos são contos construídos de forma objetiva, com narradores muito bem escolhidos e marcados pelo que podemos chamar de ousadia temática, misturando motivos do cotidiano com situações fantásticas e conflitos universais.
"O filme", por exemplo, conto de abertura do livro, narra a história de um jovem que vivia num morro e jamais saíra dele por não saber por qual lado da estrada seguir, até o dia em que uma equipe de filmagem resolve fazer um filme sobre a localidade e ele é escolhido o protagonista. Envolve-se com a produção, nesse primeiro contato com o mundo de fora do morro, e um dia descobre que o filme ia embora com eles para os dois lados da estrada. Nesta história, temos por um lado um motivo bem contemporâneo e social, o menino de um morro alienado em seu espaço. Por outro, um conflito universal: a apatia e resignação diante de dois caminhos a seguir. E costurando há uma pitada do fantástico, com um menino que NUNCA havia saído do morro, como em outros contos haverá um homem que viveu sozinho por dias numa cidade devastada por um maremoto, uma estrada em que jamais se pode voltar atrás, um rei que joga todos os suspeitos na cova dos leões. Incursões ao fantástico que não tiram a verossimilhança dos textos, tão cara a qualquer narrativa, e sim o potencializam.
Nem sempre esses três elementos estão presentes no mesmo texto: há alguns em que a crítica social é mais evidente ("O atraque"), outros em que predomina o retrato do cotidiano ("Circular") ou o fantástico ("A estrada"), sem abrir mão de conflitos universais (medo, amor, ciúme, interesse...), como manda o bom manual do conto moderno. Conflitos que estão todos, aliás, num conto muito interessante chamado "Três motivos para matar o doutor Arnaldo".
O mote do conto é propositadamente clichê: três pessoas ― a amante, a mulher e o sócio ― são suspeitas de matar o tal doutor Arnaldo. A divisão em três partes, cada uma com um foco narrativo, também não é lá muito original. Mas a construção dos textos leva ao limite o que Bakhtin chamou de polifonia, e as vozes dos suspeitos cruzam-se com a do policial, retomam elementos uma da outra e de forma circular terminamos o conto não apenas sem saber que matou o doutor Arnaldo, como desejando mesmo que ele tivesse morrido, porque afloram, ao longo da narrativa, motivos universais para se querer ver morta qualquer pessoa ― ciúme, interesse, revolta, trapaça ―, e o motivo universal para jamais se ter matado alguém: medo.
Bem, agora que já passamos pelos 16 contos podemos avançar um pouco e apertar o play de novo. Segure-se:
"Haroldo era um civilizador na área da poesia traduziu tudo como ninguém traduzira traduziu a tessitura criativa revelou mostrou olha o que aquele poeta fazia na sua língua era semelhante a isso que fazemos na nossa ou se fosse na nossa seria mais ou menos assim mais criou poemas entendeu a poesia foi buscar tudo o que a civilização realizou na área e tudo que recebe em sua homenagem são resenhas que mais parecem dissertações de vestibular aquela praga das redações de prós e contras um parágrafo inicial apontando os pontos positivos e negativos um parágrafo desenvolvendo os aspectos positivos um desenvolvendo os negativos e um final com uma conclusão que deixa tudo mais ou menos coisa de quem não ama quem ama sabe que tudo é imperfeito quem ama ama o imperfeito porque sabe que o positivo é maior é ele que vale"
Marcelo, algumas de tuas afirmações são típicas de "oficinas" promovidas por escritor para escritores. Oficina aponta para conserto e/ou aprendizagem, substituição de peças e por aí vai. Há muito escritor, hoje, querendo ensinar escritor a escrever. Acabam caindo nessa de propor fórmulas, experimenta daqui, dali, testa isso, aquilo, para ver se dá certo, sempre no intuito de conformar o texto literário a algo estabelecido por eles. Importante papel exerce a crítica, separando o bom do ruim, sem, contudo, impedir a liberdadde criativa do escritor. Não creio que enquadrar o conto em um manual seja bom ensino.