COLUNAS
Quarta-feira,
6/8/2008
O verdadeiro legado de 68
Luiz Rebinski Junior
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Algumas efemérides chegam com tamanha carga de nostalgia que muitas vezes o lado festivo da data se sobrepõe ao debate. O Maio de 1968 sofre desse mal. Talvez por ter sido um evento amplo, não apenas político, e que atingiu proporções gigantescas, os acontecimentos dos anos 60 são retratados com uma reverência que, às vezes, extrapola a História.
A visão mítica de um período de plena revolução e de um mundo em chamas domina as publicações que pipocam por conta dos quarenta anos do levante de Paris. A simbologia que tomou conta da data se refere, sempre, a palavras como rebeldia, utopia, direitos civis, igualdade etc. O inventário dos calorosos anos sucumbe sempre à irresistível vontade de mitificar o período. Isso vale para quase tudo que se refere a 68, da música à literatura, passando, claro, pela política.
Se não vai contra essa lógica, O poder das barricadas ― Uma autobiografia dos anos 60 (Boitempo Editorial, 2008, 408 págs.) pelo menos oferece uma visão mais intimista e menos rasa dos acontecimentos, ainda que esteja impregnado de militância esquerdista de seu autor, o paquistanês Tariq Ali. E não poderia ser de outra forma, a começar pelo sugestivo título do livro. Ativo militante de esquerda, Ali oferece o seu 68, em uma prosa que vale muito mais pelo caráter memorialista do que jornalístico. As melhores passagens da obra se concentram em capítulos que reproduzem os diários de Ali durante uma visita ao Vietnã em 1967, em plena guerra contra os Estados Unidos. Há ali trechos comoventes, que denunciam a barbárie da guerra e que são bem mais interessantes do que as brigas entre correntes socialistas da Inglaterra descritas pelo autor e que povoam grande parte do livro. A posição privilegiada de Ali, que esteve ― como militante e jornalista ― sempre no epicentro dos principais acontecimentos da década de 60, dá ao relato um caráter documental importante. Ali mostra os detalhes de cada acontecimento sob um ângulo privilegiado, que ajuda a entender por que tudo ocorreu, deixando momentaneamente a mística em segundo plano, destacando os fatos. São esses os trechos em que o livro ganha importância, como relato jornalístico de qualidade.
Tariq Ali reconstrói os fatos que deram início a toda a agitação em Paris, com o colapso do sistema universitário, que enfrentava à época problemas de ordem estrutural, com alojamentos e instalações sofríveis. Somados a isso, é claro, a situação econômica da França, que sucumbira aos dez anos do gaullismo. Tal descontentamento afloraria nos campi de Nanterre e Sorbonne, que teriam como líderes Daniel Cohn-Bendit e Daniel Bensaïd. Dois rapazes carismáticos que, merecidamente ou não, se tornariam símbolo de todo o culto que envolve o Maio de 68. Os desdobramentos de tudo isso, com a conseqüente adesão da classe operária ao movimento e a grande greve geral que tomou conta do país, são narrados com o esmero que se espera de um militante que vê seus pares chegarem ao topo. Mas e depois? Talvez essa seja a indagação mais importante hoje sobre o que ocorreu nos anos 1960. O papel mais importante da História certamente é o de iluminar o caminho futuro. Assim, se considerarmos que O poder das barricadas foi lançado pela primeira vez na Inglaterra em 1987, após 20 anos dos acontecimentos de Paris, e demorou outras duas décadas para chegar aos leitores brasileiros, o que se lê sobre o legado do Maio de 68 parece insuficiente. É claro que há de se respeitar as duas décadas de atraso com que o livro chegou aos brasileiros, o que poderia ser corrigido no longo prefácio da edição brasileira em que Ali prefere discorrer sobre os conflitos bélicos e sociais de agora, relacionando-os indiretamente com os anos de luta.
É verdade que os acontecimentos de 1968 forçaram o governo francês a empreender reformas nas universidades, multiplicando o número de vagas aos estudantes, por exemplo, sem, no entanto, conseguir uma ampliação mais consistente na infra-estrutura acadêmica. Daí é possível afirmar que as conseqüências mais duradouras e consistentes dos anos 1960 sejam indiretas, muito mais de ordem cultural do que estrutural. E essa talvez seja a chave para se explicar a aura mítica que o período ganhou com o passar dos anos e décadas. Afinal, o objetivo maior dos grupos maoístas ― tomar o poder em parceria com camponeses e operários ― que lideravam os levantes não foi alcançado. Cohn-Bendit é hoje um respeitado deputado europeu do Partido Verde, mas que pouco lembra o rebelde incendiário de tempos idos. Com exceção do Nepal, não se vê hoje maoístas nem mesmo na China. Régis Debray, como escreve o próprio Ali no fim do livro, que foi um dos militantes mais ativos do período, tornou-se "um funcionário pomposo e astuto do Estado francês" no governo Mitterrand, naquele que para muitos foi o fim do Maio de 68 e não o começo e de uma revolução socialista, como se poderia crer. Portanto, politicamente o Maio de 68 foi uma fagulha que logo se apagou. Che Guevara fora morto na Bolívia, a Tchecoslováquia esmagada por tropas de Moscou e a América Latina tomada por coronéis da extrema direita. Então veio a ressaca, amarga e dolorida. Tão amarga que o próprio Ali escreve que "a política dos anos 1960 parece estar muito mais distante do que a meras duas décadas [ele escrevia antes da derrocada da União Soviética] e, em várias cidades européias, podemos encontrar escombros de indivíduos ou de organizações políticas que preferiram fingir que nada mudou. O período pós-1975 foi uma das pausas forçadas da história, prevista para nos fazer pensar e refletir antes da onda seguinte, cujo padrão é tão imprevisível quanto o momento em que virá".
Daí que os ganhos do Maio de 68 hoje passam ao largo da política (haja vista os presidentes "socialistas" que dominam a América Latina) e se concentram muito mais em questões como o respeito às minorias, feminismo, liberdade sexual e a progressiva preocupação com o meio ambiente. O resto, literalmente, virou história.
Para ir além
Luiz Rebinski Junior
Curitiba,
6/8/2008
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