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Quinta-feira, 21/8/2008
Nossa classe média é culturalmente pobre
Marcelo Spalding
+ de 18800 Acessos
+ 15 Comentário(s)

Celebremos a pesquisa divulgada pela FGV no começo de agosto: diminuiu o número de pobres e a classe média brasileira cresceu, representando mais da metade da população (51,89%). Os critérios são confusos e a faixa de renda dessa Classe C, elástica: famílias com renda domiciliar total entre R$ 1.064,00 e R$ 4.591,00. Mas fiquemos com a manchete: somos um país de classe média, não mais um país de miseráveis, e afora uma ou outra imprecisão estatística, é de se comemorar principalmente pela tendência a médio prazo.

Para os que lidam com a cultura, entretanto, uma pergunta se impõe: o que significa para a cultura esse aumento da classe média? E a constatação é aterradora: nossa classe média é pobre, culturalmente muito pobre. Não vai ao cinema, não compra nem lê livros, não freqüenta museus.

Para explicar um pouco melhor essa conclusão, irei comparar os resultados da pesquisa da FGV, amplamente divulgados pela mídia, com dados publicados pelo jornalista Carlos Scomazzon em sua coluna do portal Artistas Gaúchos, "Afinal, quem tem acesso à cultura no Brasil?".

Scomazzon destaca que, de acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE no ano passado, os 10% mais ricos do Brasil são responsáveis por cerca de 40% de todo o consumo cultural no país. Ainda segundo a mesma pesquisa, apenas 7,3% dos municípios possuem cinemas e 18,8% das cidades têm teatros ou casas de espetáculo, menos de 10% dos brasileiros vão pelo menos uma vez por ano ao cinema, e aqueles que freqüentam as salas com mais regularidade não chegam a totalizar 5%, sendo que 87% dos brasileiros nunca foram ao cinema ver um filme. Outro dado estarrecedor é que 90% dos municípios não têm equipamentos culturais, e 92% da população nunca entrou em um museu.

Já uma pesquisa de Gasto e Consumo das Famílias Brasileiras Contemporâneas, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que as dificuldades de acesso da população à cultura consta em primeiro lugar entre os fatores causadores de desigualdades entre os brasileiros, seguido pelo acesso à educação. As famílias com maior poder econômico, diz o estudo, gastam 30% a mais com educação do que as mais pobres e, desta forma, têm acesso mais fácil à cultura.

O jornalista ainda esmiúça os dados que se referem à leitura entre a população brasileira, a partir de pesquisa encomendada pelo Instituto Pró-Livro ao Ibope Inteligência. Segundo a pesquisa, o brasileiro lê, em média, 4,7 livros por ano, mas quando contabilizada apenas a leitura feita por pessoas que não estão mais na escola, a conta fica em 1,3 livro por ano. Já a média de livros comprados pelos brasileiros fica em 1,1 livro por ano.

Sei que os dados assim condensados e expostos podem cansar e confundir, mas vamos agora comparar os números trazidos pelo texto de Scomazzon com a pesquisa da FGV. Segundo esta pesquisa, as classes A e B representam 15,52% da população brasileira, a classe C representa 51,89% e as classes D e E 32,59%. Agora, se 87% dos brasileiros nunca foram ao cinema ver um filme e 92% da população nunca entrou em um museu, significa, a grosso modo, que o equivalente às classes C, D e E inteiras e parte da classe B nunca foram ao cinema ou ao museu!

Desculpe o ponto de exclamação e a matemática grosseira, mas esse número apenas representa e sintetiza o que fica do cruzamento das pesquisas, algo que percebemos no dia-a-dia: nossa classe média ainda é culturalmente muito pobre. Não por acaso a enorme audiência das novelas globais e dos BBBs (inclusive na TV a cabo), não por acaso o sucesso da música "Créu", não por acaso o clipe da "Dança do Quadrado" no YouTube tem mais de 10 milhões de views! Não venham me dizer que são os pobres os consumidores dessa chamada cultura de massa, de gosto duvidoso. De forma alguma, são pessoas com casa, computador, às vezes TV a cabo.

Na coluna de Carlos Scomazzon, sua preocupação maior é mostrar que a grande maioria da população não tem acesso à cultura, mas eu iria mais além: essa população não tem acesso à educação satisfatória e, em conseqüência, não tem acesso à cultura ou simplesmente não valoriza a cultura. Porque se é verdade que um show de Caetano, Djavan ou Gil mesmo com leis de incentivo têm preços proibitivos (acima de R$ 100,00, ou seja, quase 10% de toda renda familiar dessa "nova classe C"), também é verdade que diversas atividades são oferecidas gratuitamente: há livros à venda por preço de xerox nos sebos, músicos que disputam espaço nos restaurantes da cidade, exposições com visitação aberta na maioria das capitais, sites e programas de TV voltados à cultura e não apenas ao entretenimento. Mas esse público, a classe média pobre culturalmente, começa por não perceber valor na produção artística local, prefere uma vez por ano assistir o ator global no teatro do que 10 vezes ao longo do mesmo ano descobrir as melhores peças de seus conterrâneos, levar filhos, amigos.

Verdade que é mais fácil em cinco anos aumentar o salário de um trabalhador em R$ 500,00, o que o colocaria entre essa "nova classe C", do que fazê-lo deixar a novela da noite ou o futebol do domingo para ir a uma peça gratuita de teatro universitário ou a uma recém-inaugurada biblioteca. Mas espero que o país como um todo compreenda que uma coisa é tão importante quanto a outra.

Os Titãs já cantavam "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte". E ainda que se concorde que num primeiro momento o importante seja saciar a fome, a falta de moradia, de higiene, não se pode imaginar que um país será melhor simplesmente porque sua população ganha um pouco mais. Pierre Bourdieu, filósofo francês contemporâneo, tem um conceito muito interessante a esse respeito, o do capital simbólico.

Segundo Bourdieu, a posse do capital econômico confere, aos que o possuem, poder sobre os desprovidos, mas é pelo controle do capital simbólico que os dominantes impõem aos dominados seu arbitrário cultural, as hierarquias, as relações de dominação, fazendo-os percebê-las como legítimas. O capital cultural seria um desses capitais simbólicos, o que nos permite entender por que a mobilidade social a partir da classe C é tão mais difícil: ela não envolve apenas a capacidade de ganhar dinheiro, mas também o conhecimento de mundo que será fundamental para a consolidação das relações sociais.

Dessa forma, devemos comemorar, sim, a maioria "Classe C", mas como professores, jornalistas, escritores, artistas, precisamos criar nessa população o hábito de consumir uma cultura plural, de valorizar a produção artística mais genuína, e não ficar restrita à TV aberta, aos hits do YouTube ou aos blockbusters hollywoodianos. Se é verdade que o brasileiro, em média, compra apenas um livro por ano e vai uma vez por ano ao cinema, o grande desafio de cada escritor, músico, ator, cineasta não é superar outro escritor, músico, ator, cineasta, é aumentar essa média para um e meio, dois, três por ano.

Para terminar, deixo um pensamento de Daniel Pennac que sintetiza qual deve ser nosso papel já que não temos, individualmente, forças para mudar a cultura mass media de nossa sociedade: "o dever de educar consiste, no fundo, no ensinar as crianças a ler, iniciando-as na Literatura, fornecendo-lhes meios de julgar livremente se elas sentem ou não a 'necessidade de livros'. Porque, se podemos admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é intolerável que ele seja rejeitado por ela".


Marcelo Spalding
Porto Alegre, 21/8/2008

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* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
21/8/2008
17h52min
Essa pesquisa da FGV e do economista são, como disse uma senhora na Folha de São Paulo, uma balela. Como uma mulher que ganha 1.200 reais por mês, trabalha o dia inteiro e não tem tempo para o lazer pode ser classe média? Classe média sem lazer não é classe média. Concordo com ela. Abraços!
[Leia outros Comentários de Mauro Gorenstein]
21/8/2008
18h34min
Sim, as estatísticas estão aí, dizem que não mentem, contudo amparadas certamente em caquéticos conceitos sociológicos e/ou da antropologia social. Penso que numa sociedade de massas de exclusão acelerada, o tema possa somente adquirir visibilidade por meio de uma reflexão a partir da paisagem de, por exemplo, uma região metropolitana, local onde aliás resido. O que vejo? Inúmeros condomínios residenciais e apartamentos luxuosos nos quais uma classe média (?!) se esconde. Os antigos bairros transformados em centros comerciais; o centro da cidade ocupado por desempregados e miseráveis, e o resto da população (Classe C?) ocupando os bairros periféricos. Quanto aos ricos: a eles pertencem latifúndios, praias particulares; residem em Paris etc. Ah!: eu e inúmeros amigos somos professores universitários (classe média? detemos o poder simbólico?): estamos todos desempregados!!! Fomos excluídos até mesmo dos quadros estatísticos?!
[Leia outros Comentários de Sílvio Medeiros]
21/8/2008
20h31min
Sabe como é. As pesquisas às vezes são um bocado imprecisas para determinar a qual extrato social pertence o cidadão. Mas tem uma definição precisa para a gente não ficar na dúvida: a classe média é aquela que está um pouco acima da classe baixa e muito abaixo da classe alta. Agora, segundo as novas pesquisas, podemos dar uma definição ainda mais rigorosa. A classe média é aquela que tem cultura um pouco acima da classe baixa e muitíssimo abaixo da classe culta.
[Leia outros Comentários de mauro judice]
22/8/2008
07h41min
Parabéns. Vou indicar este texto. Quanto aos comentários, a maioria acima já apontou boa parte do que eu diria. Como crente convicta na "conspiração da mediocridade", só acrescentaria que essa confusão entre poder aquisitivo e classe "média" é deveras cômoda. Não é perigoso se você ganha um pouco mais, ao contrário, serve para calar a boca; perigoso é desenvolver capacidade de reflexão - coisa que o acesso à cultura (cultura mesmo, não a dança do créu, ou BBB) pode proporcionar...
[Leia outros Comentários de Claire]
22/8/2008
13h56min
Penso que não são 500,00 a mais no mês que fariam a diferença e sim a vontade de conhecer e vivenciar uma cultura. Quinhentas pilas a mais são 10 bons livros, mas também dá pra queimar tudo em CDs de funk, shows e afins... E a vontade é uma coisa que depende tão somente de cada um, embora seja influenciada pelo meio.
[Leia outros Comentários de Kelly]
26/8/2008
09h35min
A questão é que cada classe social brasileira imita as aspirações da classe inferior norte-americana. Por exemplo, a classe média alta assiste corrida de carro, que na América do Norte é coisa de operário. E sonha com férias na Disneylândia. Então não sobra quase ninguém para ler literatura. A teoria do Bourdieu pode valer nas Europas, mas para as Américas ela é falsa. Falar um português castiço, ou um inglês perfeito, não dá poder nenhum aqui no Novo Mundo. Nem econômico, nem cultural.
[Leia outros Comentários de Felipe Pait]
27/8/2008
22h15min
Concordo inteiramente com o que disse o Mauro. Como uma pessoa que ganha 1.200/1.500 reais por mês, trabalha o dia inteiro e não tem tempo para o lazer pode ser classe média? Isso é ridículo! Um grande abraço e parabéns pelo texto!
[Leia outros Comentários de Janethe Fontes]
29/8/2008
16h22min
Meu Deus!!! Ainda estamos naquela de que matar a fome basta! Então, agora, os que ganham mais de R$ 1.000,00 foram para a classe C?! Ora, não adianta subir na pirâmide social se a pobreza de arte, cultura, leitura e educação continua a mesma!!!
[Leia outros Comentários de edi kersting ]
11/9/2008
08h08min
Enquanto os teatros e cinemas forem transformados em agências para a venda de terrenos no céu, e suas maiores estrelas, aquelas que atraem multidôes, forem os "salvadores" de almas e espíritos, a possibilidade de se ter algum desenvolvimento cultural é bem remota. Livros normais vendem pouco. Livros "religiosos" vendem aos montes. A porcaria produzida pelos "ministros" e "reverendos" não encalha. São espetáculos, CDs, DVDs, revistas, jornais, livros, panfletos, etc. E não é, apenas, o pessoal de verba curta que compra essa "produção cultural" de padrecos e pastores. O público está com medo do inferno e vai tentando se garantir, financiando a vigarice. Esta praga é que, juntamente, com o lixo funkeiro, pagodeiro, e outras denominações, alem da "vanguarda de araque", afasta o cidadão normal dos livros, museus e exposições. Mas verba oficial não falta! O Ministerio da Cultura segue distribuindo um bocado de dinheiro para oferecer "cultura ao povo"...
[Leia outros Comentários de Raul Almeida]
11/9/2008
11h33min
Um país que privilegia o "se dar bem na vida" a qualquer custo, em vez da criação de um "projeto de vida pessoal", baseado na constância da leitura e no estudo; onde o mau exemplo vem da maioria dos pais, que mentem, enganam e são dissimulados para com os filhos; um país que culturalmente incentiva a polarização dos seus cidadãos entre "espertos" e "manés"; que não protege seu meio ambiente; que produz um eleitor que não sabe em quem votou nas últimas eleições; elege governantes desqualificados, que têm o interesse em perpetuar o status quo vigente degradado, que o geriu, mantém e privilegia. Esse país nos leva a sucumbir e merecer o que temos, embora não aceitemos. E ainda nos deixa a todos culpados pela falta de atitude. Talvez só as novas gerações (que temos a incumbência de educar) possam salvar nosso país. Ainda assim, é preciso que saibamos como educar. Educação começa no exemplo e na ação. A reflexão que você propõe é um bom exemplo de educação. Somos aprendizes de ensinar.
[Leia outros Comentários de Guto Maia]
11/9/2008
12h32min
"Segundo Bourdieu, a posse do capital econômico confere, aos que o possuem, poder sobre os desprovidos, mas é pelo controle do capital simbólico que os dominantes impõem aos dominados seu arbitrário cultural, as hierarquias...". Bem, em se tratando do Brasil, isto é meia-verdade. Vejamos: o Abílio Diniz gasta horas em uma academia fazendo ginástica (classe dominante), os netos e filhos da alta burguesia freqüentam escolas onde o livro e a formação humanística não representam valor: os intelectuais ou próximos disso não são a elite econômica do Brasil, porque fora todo o refugo produzido pela TV, artistas e escritores estão à mercê, então o que nos resta? O filódofo francês está falando de uma sociedade européia e não uma sociedade tupiniquim. Não dá para comparar e tentar transpor ao pé da letra. Não temos problemas de falta de dinheiro para comprar livros, o que não temos é o apetite para lê-los. Porque está determinado pela cultura grosseira de massa que não é preciso estudar.
[Leia outros Comentários de Júlia Silveira]
11/9/2008
19h35min
Primeiro: descobriram que a Terra é redonda. Segundo: duvido que alguém, passando por uma loja de celulares agora mesmo, não vá encontrar a mesma abarrotada de gente. Pra porcaria o brasileiro tem grana. Só não gasta com livro porque não quer.
[Leia outros Comentários de Barbara Pollac]
12/9/2008
02h28min
Infelizmente, o que fez "crescer" nossa classe média foi seu rebaixamento. Classe média até certo tempo atrás não significava equilibrar-se precariamente à beira da pobreza. No entanto, a nossa sociedade em termos culturais até que é solidária; pois a "elite" cultural do país também não é lá essas coisas. Pelo menos, enquanto estrato social, pessoas cultas e consumidoras de cultura, que realmente frequentam museus, teatros e lêem e quantidade e qualidade, representam um traço estatístico - honrosas exceções. E, surpreendentemente, estes casos nem sempre são determinados por sua classe sócio-econômica. Triste, triste. Pois se nossos desafios econômicos e sociais são imensos, é desalentador reconhecer que, cada vez mais, nos falta uma elite visionária e realizadora - ou uma classe média ambiciosa e questionadora. Parecemos presos a um circulo vicioso de mediocridade, autocomplacência e acomodação.
[Leia outros Comentários de Werner]
6/2/2009
03h27min
Concordo com seu ótimo texto. Dou aulas para alunos de graduação de primeiro semestre em uma universidade americana. Eles leem em média oitenta paginas por semana, só para minha aula. Quando dava aulas em um dos melhores cursos de letras de uma universidade pública no Brasil, os alunos não liam nem cinco. Isso pode mudar, mas muito gradualmente. Conversando ano passado com um casal de amigos de classe média percebi que eles lamentavam que o filho adolescente não era capaz de ler sequer um conto curto para a escola. São pessoas que exercem atividades culturais [fotografia e música], são pessoas inteligentes e interessantes, mas nenhum dos dois lê muito. No Brasil, o arquiteto, o engenheiro, o médico, o administrador [gente de classe média alta] acham que "não precisam" ler, às vezes nem para seus oficios!
[Leia outros Comentários de Paulo Moreira]
2/7/2009
14h04min
Isso realmente me assusta, não sei se é porque moro em uma grande capital (SP) ou porque gosto muito de ler e gosto muito de consumir cultura. Há muita peça de graça, museu, exposição. Acho que as pessoas não têm informação ou é acomodação. Ficar sentado na frente da TV é mais fácil. Lamentável. Mesmo assim, é necessário incentivar.
[Leia outros Comentários de Silvia Caroline ]
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