"Eles não sabem o que fazem, mas o fazem como deuses."
(Paul Valéry, em A alma e a dança)
Não há quem não admire os jogos olímpicos. Eles são, sem dúvida, mais do que um simples evento esportivo, um fato estético. Mostram a beleza não só dos corpos perfeitos, devidamente treinados para exercerem a força e a agilidade, mas também que somos mais do que a natureza, que podemos ser mais do que organismos presos aos limites de suas necessidades básicas, de sua vegetabilidade.
Há uma transcendência não metafísica, mas corporal, nos ágeis movimentos dos atletas. Eles nos dizem que mais do que simples força motora, cada movimento do corpo é também pura plasticidade e expressão do ser no espaço. Eis aí, talvez, o sucesso das olimpíadas. Fazer-nos crer que podemos transcender a força da gravidade, os limites do humano, numa forma e força que o treinamento físico pode propiciar. Tal como super-homens voadores, ou o malabarista das teias de aranha que vemos nos filmes, os atletas das olimpíadas são a possibilidade da ficção habitar o mundo real. E, ainda, elevar este fato ao seu mais raro prazer: o do gozo estético do espectador.
Paul Valéry nos ensinou sobre a sabedoria do corpo em movimento no seu livro A alma e a dança: "Um corpo, graças a sua simples força, e por seu ato, é poderoso o bastante para alterar mais profundamente a natureza das coisas do que jamais conseguiu o espírito em suas especulações e sonhos!" Não podemos deixar de pensar poeticamente nos gestos dos atletas como gestos de um bailarino que "repousa no centro de seu próprio movimento. Isolado, isolado, semelhante ao eixo do mundo".
Sonhamos com uma sabedoria e uma beleza que não derive unicamente do intelecto, mas da força viva do organismo e que esta seja traduzida numa forma. E esta forma não é outra coisa que o movimento.
Não creio que haja, portanto, outra explicação para o sucesso das olimpíadas se não esta: a de que em cada gesto, força, habilidade e plasticidade há uma transcendência da natureza humana em si mesma e uma constituição de um outro espaço do pensar para além de nossos próprios limites naturais. Sonhamos com a nossa própria transcendência ao olharmos para os atletas superando os limites de sua natureza.
Neste ano de 2008, esta celebração ocupou um espaço geográfico específico: a China. O Oriente sempre nos deslumbrou, não só como espaço do exotismo, mas como possibilidade de contraposição à nossa própria cultura greco-racionalista ou moralista judaico-cristã. No século XIX, foi motivo para a renovação do olhar europeu para as artes plásticas, recuperada sua magia com o apelo dos românticos pelo oriente exótico e irracional, colorido e sensual. No século XX, surge como contraposição à cultura alimentar-urbano-industrial cancerígena ou à velocidade estressante das vidas vazias dos grandes centros urbanos. Inventamos nosso oriente à maneira de nossas necessidades básicas de sobrevivência: seja espiritual ou física. Contrapomos a medicina oriental não-invasiva ao nosso sistema médico bisturilesco e alopático. Meditamos à luz da idéia oriental da morte do ego, nos massageamos, fazemos ioga ou tai chi chuan buscando um suposto equilíbrio entre mente e corpo como contraponto ao desequilíbrio da nossa insana vida na sociedade industrial capitalista.
Mas uma nova imagem desse oriente nos espreita, agora, no início do século XXI. A China ocupa um espaço político-econômico que desperta a atenção do mundo todo. De um mundo fechado num socialismo totalitário e misterioso tornou-se aos nossos olhos a mais potente e competitiva economia do mundo, a mais moderna e destruidora fonte dos recursos naturais, a próxima fonte de poder econômico e militar do planeta. Um possível novo império político-econômico do mundo.
Escolas de língua chinesa estão em ampla atividade. Quem dominar esta língua terá chances num mercado em crescente e rápido desenvolvimento. Livros sobre a cultura e o pensamento chinês sendo traduzidos por todas as editoras do mundo. Cursos de história e arte chinesas estão aparecendo por todos os lados do planeta. A metodologia educacional chinesa sendo estudada para ser depois copiada. Resultado de uma constatação óbvia: o futuro se chama China.
E a festa olímpica foi para a China o momento de divulgação maior de suas atividades industriais e culturais. Momento também aproveitado para lavar um pouco de sua imagem suja, desumana e totalitária como foi sempre entendida desde que o socialismo se tornou o regime de força no país.
E o esporte, como festa popular, tal qual a religião em outros tempos, ocupa um lugar privilegiado para a constituição de imagens ideológicas propícias para se vender gato como lebre, ou, como dizia o velho Lênin, para vender falsos slogans de liberdade e igualdade. Não há dúvida que também abrirá para a própria China um amplo universo de informações sobre outras culturas, mas isso talvez interesse menos a eles do que sua vontade de vender o próprio peixe (ou, melhor dizendo, suas próprias bugigangas).
O fato é que há nisso tudo uma contradição de termos. De um lado, a força viva da arte dos corpos em movimento e de outro o uso ideológico que se faz das atividades esportivas. Tal como a fé, manipulada pelo poder religioso, aqui o corpo é o instrumento moderno dos espaços da representação do poder e do capital. A beleza a serviço do encontro entre nações que serão, em futuro muito breve, os possíveis consumidores dos artefatos industriais produzidos por mão-de-obra mal-paga, num regime de trabalho semelhante ao escravista e numa modernidade irresponsável e predatória da natureza.
Há a festa e a beleza. Há também o corpo íntegro, mas há também um cheiro de suor que exala uma possível possibilidade de degradação: a morte e a desesperança num mundo futuro, repleto de bugigangas.
Uma notícia divulgada dias depois do início das olimpíadas na China dizia que a menina que cantou na abertura apenas dublou seu canto, enganando a todos que acreditavam no espetáculo, e as pegadas virtuais que sobrevoaram a cidade em direção à abertura das olimpíadas já estavam pré-gravadas, fazendo crer ao mundo que aconteciam de fato no momento de sua aparição: sinal do tamanho do simulacro que está por vir.
Perfeito, Jardel! E, além disso tudo, apagaram da festa de abertura a história mais recente da China! Revelaram-se autênticos assassinos da memória! E quanto aos "mortos insepultos"?! Jogaram fora a sangrenta água do banho com a criança dentro! Abraços do Sílvio.