Recentemente o fotógrafo Marcelo Rudini e o jornalista Dimitri do Valle, que trabalham para a Folha de S. Paulo em Curitiba, armaram campana em frente à Livraria do Chain, na capital do Paraná, em busca de um furo jornalístico há muito perseguido por repórteres de todo o Brasil: fotografar e entrevistar Dalton Trevisan. O local escolhido não foi por acaso. O Chain, como é conhecida a livraria em questão, é um dos pontos da cidade em que o "vampiro" costuma dar o ar da graça, sempre em surdina. Além da amizade com o dono, Aramis Chain, o local é propício à privacidade que Dalton Trevisan tanto preza. A livraria, diferentemente dos grandes magazines de shopping, só vende livros. Nada de CDs, DVDs e parafernálias eletrônicas. É um lugar antigo que, por conta da proximidade com a Reitoria da Universidade Federal do Paraná, atrai um público bastante seleto: professores e alunos universitários, em sua maioria. Uma livraria à moda antiga que, com algum exagero, ainda guarda um ar das antigas casas editoriais do começo do século XX. Além disso, a livraria fica próxima da casa do escritor, no bairro Alto da XV, a poucos minutos de caminhada ― a título de curiosidade, na mesma rua mora outro grande escritor de Curitiba, Cristovão Tezza.
Dimitri não conseguiu a tão sonhada entrevista com Dalton Trevisan, mas revelou detalhes da rotina do escritor desconhecidos do público, como a adesão à internet e a preferência por um cardápio sem carne vermelha, incomum para um escritor conhecido como "vampiro". Da empreitada, Rudini conseguiu uma foto inédita do escritor saindo da livraria com uma sacola de livros, publicada na "Ilustrada".
A reclusão de Dalton Trevisan é bastante conhecida. Mas em Curitiba o anedotário sobre os hábitos do contista já faz parte do DNA da cidade e só aumenta com o passar dos anos. Talvez porque Dalton virou ele mesmo um personagem da cidade, ainda que suas atitudes discretas visem o anonimato. Não há quem nunca tenha ouvido uma história envolvendo a rotina do escritor, suas preferências e manias. Nas universidades, cafés e bibliotecas o contista é motivo de discussões com argumentos que, com a mesma intensidade, criticam e louvam suas atitudes. Assim como na literatura, as histórias que circulam sobre o escritor parecem ter um pé na ficção e outro na realidade, sem que, no entanto, nunca fique muito claro onde começa uma e termina a outra. Histórias sobre fãs que batem à porta do escritor, deixam flores e recados com pedidos de autógrafos e encontros são bastante comuns. Também é conhecido o espírito vingativo do contista, que, dizem, promete a si mesmo não olhar mais na cara daquele amigo ou conhecido que revelar, principalmente a jornalistas, detalhes de sua rotina.
Morador de um bairro de classe média de Curitiba, a poucas quadras do estádio Couto Pereira, não precisa gastar muita sola de sapato para chegar ao centro da cidade. É lá que se imagina que o escritor, sempre bem discreto, percorre pontos como o Passeio Público, conhecido reduto de prostitutas decadentes, em busca de tipos para a sua literatura. Pode ser. É bem provável que sim. Mas quando se trata de Dalton Trevisan, nunca se tem certeza sobre a veracidade das informações. As histórias sobre ele se parecem muito com as histórias dele. Não que haja fortes indícios de que o escritor seja alter ego de seus personagens, que encarne os Joões traídos por esposas que passam a vida reprimidas e, de uma hora para outra, se rebelam contra a moralidade excessiva a que são impostas. Não necessariamente. É que os causos sobre Dalton Trevisan são como sua ficção, sucintos e sempre com um final em aberto, para que cada um tire suas próprias conclusões e faça o julgamento moral do que ouviu. Os causos são também banais, assim como são banais as razões dos assassinatos que permeiam as páginas de seus livros desde sempre. Afinal, para que saber aonde o escritor vai ou deixa de ir? É uma atitude prosaica, típica de uma cidade que ainda guarda fortes resquícios de provincianismo. Exatamente como a Curitiba que Dalton criou e parece ― apenas parece ― não existir mais. Mas é pura ilusão de ótica. Por trás da cidade bem planejada, há pessoas que ainda se referem ao local de moradia como vila. Nada mais provinciano, nada mais Dalton Trevisan.
Colecionador de tabus que não existem mais, Dalton incorpora em suas atitudes o típico morador da terra das Araucárias, do passado e do presente. De mãos dadas com o clichê que se repete sobre a cidade e seus habitantes, que associa o característico frio curitibano ao recolhimento e introversão de seus moradores, o escritor reforça ainda mais aquilo que muitos encaram como mito. Pode parecer lugar-comum. É lugar-comum. Mas mesmo assim, é também algo que não sai do imaginário popular, que sempre vem à tona por mais que se negue. Dalton é o curitibano que encontra o amigo na rua, convida-o para um café em sua casa, mas esquece de dar o endereço. Mas isso é mero detalhe, que acaba ganhando importância só porque Dalton Trevisan é Dalton Trevisan. O que realmente importa é sua literatura que, desde as primeiras linhas na mitológica revista Joaquim, continua surpreendente. Ainda que muitos vejam em seu fascínio pelas elipses um indício de esgotamento criativo. Bobagem, o centro de Curitiba o realimenta de forma saudável, dando-lhe vigor para entender os novos tempos, à sua maneira, é claro. Basta dar uma olhadela no novo rebento do escritor, chamado O maníaco do olho verde (Record, 2008, 128 págs.). Logo de cara, em "Tem um craquinho aí", Dalton se revela um atento observador do presente, das novas formas de degradação física e moral do homem. Sai a bebida, que tantos contos lhe rendeu, entra o crack, bem menos glamoroso e bem mais devastador. Com a precisão de um experiente viciado, o escritor traz à tona a impiedosa relação traficante/usuário, mas de uma forma bastante própria, quase engraçada, sem discursos morais e repressores. A linguagem das ruas, coloquial, se funde à técnica que o escritor domina plenamente, dando vida a novos cafajestes, delinqüentes, drogados, bêbados, prostitutas e pedófilos. Fauna bem conhecida de seus leitores. Personagens que insistem em não sair da margem, sempre à procura de algo que possa lhes salvar, se é que há redenção na literatura do escritor. "Foi em legítima defesa. Minha e de minha noiva Marta. Ele era pessoa viciada sempre ali na espera. O Buba mais o irmão Tonho. E roubava todo mundo na vida", diz um dos personagens, que aceita matar para saldar uma dívida com o tráfico em "Por cinco paus".
Assim, Dalton não só registra as desventuras de gente sem sorte, mas imprime em seus contos um compêndio de crendices e moralidades populares. Coincidência ou não, são os mesmos sentimentos comezinhos que regem seus leitores/ admiradores quando o assunto é Dalton Trevisan.
Muito interessante e revelador seu texto sobre esse grande escritor. São aspectos que indicam uma certa comunhão entre o autor e sua obra, embora se aconselhe que não se misturem as duas coisas. Essa faceta misteriosa nos encanta e atiça nossa imaginação. Parabéns.
Achei uma apoteose límpida, para dizer um pouco sobre as verdades puras, nas ficções (às vezes, impuras) do Dalton. Nada cria, nada inventa, mas sua forma de traduzir tais 'causos' só a ele pertencem! E surge Cristovão Tezza mostrando o que Curitiba tem de bom na área literária... Que os céus protejam os escritores Curitibanos de todos os vampiros reais!