O modernismo brasileiro não passou de um aborto. E Anita Malfatti, a menina prodígio que era a única manifestação real de arte moderna no nosso país, e que estava sendo gerada no útero do provincianismo paulista de início de século XX, foi destruída tão logo colocou suas primeiras asinhas avançadas de fora. Perdemos a única chance de realmente sermos modernistas. O que sobrou foi apenas a arte programática-ideológica-nacionalista, envernizada com um pseudomodernismo de artistas medianos, se não medíocres, como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Portinari.
A exposição de Anita Malfatti, realizada no final de 1917 (ano da Revolução Russa, registre-se de passagem), caiu sobre a cidade de São Paulo como uma bomba. Com cerca de 50 telas "expressionistas", de uma modernidade desconcertante para os padrões artísticos da época, a artista oferecia às nossas paragens o que havia de mais radical em termos de experiência plástica: uma pintura que se pretendia uma experiência da linguagem (da forma e da cor) e não mais uma narrativa mimética do mundo.
A pintura era para ela um problema que se resolvia sob os auspícios da autonomia do artista e da arte, livre de qualquer mediação que não fosse o próprio fato/fazer artístico em si mesmo. Neste sentido, e só neste, pode-se falar em modernidade da arte. Vindo de uma experiência internacional onde conheceu a arte fauve e o expressionismo alemão, além do modernismo nos Estados Unidos, Anita se identificou imediatamente com a força de uma pintura de caráter experimental, forjada numa prática em que a autonomia do fato plástico era o princípio criador.
Anita cumpria corajosamente com suas telas essa premissa básica da arte moderna. Deu a cara à tapa ao expor seus trabalhos num Brasil caipira... e foi violentamente estapeada. Inicialmente pelo conservadorismo de Monteiro Lobato, depois pelo agenciamento ideológico-nacionalista de artistas como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Oswald de Andrade, tão culpados quanto Lobato pela adesão da artista a uma arte mais convencional e programática.
Monteiro Lobato passou erradamente para a história como o único responsável pela decadência da obra de Anita, fruto do ataque que fez num artigo enfurecido chamando aquelas obras e todo o modernismo de "paranóia ou mistificação", apelando para uma crítica muito parecida com a dos nazistas que classificavam a arte expressionista de arte degenerada, de loucos, praticada por artistas que não passavam de doentes mentais. O resultado do artigo do autor de Idéias de Jeca Tatu foi a devolução de quadros já vendidos na exposição, a perda de alunos pela artista e seus constrangimento artístico-social.
Mas pior do que o ataque de Lobato, que a confrontava claramente, foi o contato da artista com os modernistas, que envolvendo-a numa suposta proteção a cooptaram para seus interesses ideológico-políticos de criar uma suposta arte verdadeiramente brasileira, menos radical, como veremos abaixo.
A exposição de 1917 foi visitada também por Mário de Andrade, que foi repreendido pela própria artista que o encontrou rindo de suas obras. Foi o primeiro encontro entre as duas personalidades que se tornariam grandes amigos depois. Para o parnasiano Mário de Andrade daquela época, a exposição de Anita era uma aberração. Sentindo-se culpado pelo acesso de riso incontido diante da artista e de suas obras, e sob o efeito da repreensão de Anita, Mário se desculpou enviando a ela um poema parnasiano. Como se pode ver, Mário nada entendeu da sofisticação e revolução artística de Malfatti.
Posteriormente, Mário iria defender a artista e agregá-la ao grupo modernista, inclusive convidando-a a expor suas obras na Semana de 22. Aliás, as únicas obras realmente modernistas da exposição. Essa amizade e apoio vão se converter numa espécie de constrangimento ideológico ao qual Anita se sentirá obrigada a se submeter diante do nacionalismo social do ambiente sob o qual nosso pseudomodernismo estava se desenvolvendo.
É sintomático, nesse sentido, uma carta de Mário endereçada a Anita no qual qualifica a obra de Tarsila como "as melhores pinturas modernistas que conheço", dizendo que a artista havia encontrado o caminho de uma arte genuinamente brasileira, "brasileira mas brasileira de verdade", "com tipos e santos nacionais" e com "um gosto forte de manacá e abacaxi". Realmente, essas pinturas de Tarsila não passam disso, verdadeiros abacaxis ideológicos. E esta carta de Mário tem como objetivo tentar indicar, indiretamente, um rumo para a pintura de Anita: tornar-se ela também esse abacaxi. Como podemos ver em quadros como Baianas e As bem-aventuranças, ou nos retratos que ela pintou posteriormente, por exemplo, o fato se deu.
Não resta dúvida de que Mário de Andrade tenha defendido Anita. Defesa esta que não pressupõe entendimento da arte de Malfatti como a responsável pela revolução que se iniciara na arte brasileira, mas como anotou Marta Rossetti Batista, a biógrafa de Anita, Mário "encontrava dificuldades para compreender a estranha e masculina liberdade com que Anita Malfatti jogava na tela, espontânea e violentamente, formas e cores". Mário de Andrade "nunca aceitaria completamente as deformações mais gritantes e os maiores exageros de proporções, portanto, os aspectos mais abstratizantes, interpretativos e desligados do 'real', dos trabalhos expressionistas de Anita Malfatti".
Outro fato importante na regressão de Anita foi seu contato com o professor de pintura de Tarsila e amigo de Lobato, o acadêmico Pedro Alexandrino, que representava a negação de tudo o que Anita "aprendera, acreditara e produzira". Eis o conselho que Lobato dava aos jovens artistas e que Anita acabou acatando: "freqüentai Pedro Alexandrino, tomai como norma de vida mental seu ódio a tudo o que é falso, charlatanesco, burlesco, idiota, cúbico ou futurístico".
A amizade com Tarsila, dentro do grupo modernista, também garantiu aspectos conservadores à obra de Anita, que no fim da vida parecia estar copiando os péssimos trabalhos da viajada caipira do interior paulista. Tarsila nunca foi moderna, desde o início de sua carreira abominou as novidades da arte européia de vanguarda e mesmo odiou e desqualificou o poema modernista "Paulicéia desvairada", de seu amigo Mário de Andrade, quando ele o lera para ela no seu atelier.
Tarsila disse que naquela época voltou de Paris num navio de luxo "trazendo uma caixa de pintura com muitas tintas bonitas, muitos vestidos elegantes e pouca informação artística". Isso é notório em sua obra. Por isso passou a vida a pintar seu Brasil interiorano e rural, com procissões religiosas, árvores, bichos e pedras numa adesão à crença num Brasil exótico ou pintando as chaminés, viadutos e trilhos de uma São Paulo em processo de industrialização, mas que em suas melancólicas telas não lembram minimamente a potência do futurismo europeu.
Quando Tarsila mete-se a artista social, pinta o programático, simplório e insuportável quadro Os operários, em 1933, dando ouvido aos clamores de Di Cavalcanti que proclamava que "o artista é um proletário, deve, portanto, compreender o proletariado, aderir a seus objetivos sociais e políticos e a realidade social impõe à visão artística um maior conhecimento do país e de seu povo".
Quanto ao suposto modernismo de Portinari, deixo a palavra com Tadeu Chiarelli: "tanto quanto Almeida Jr. e Di Cavalcanti, Candido Portinari foi um artista preocupado em representar a realidade exterior de seu universo circundante, fiel à etnia de seus personagens, sua condição social, enfim, à realidade física e humana do país. Um artista de extração fundamentalmente naturalista/realista, apesar de certas distorções expressivas presentes em seu trabalho". Ou seja, outro conservador... envernizado de modernista.
É basicamente dentro desse quadro de referências artístico-ideológicas marcadas pelo desejo de construir uma arte de temática social, preocupada com a afirmação de uma certa particularidade nacional, buscando a superação de um estado colonial, que redundaria num projeto de envernizamento modernista (disfarçado de antropofagia), que Anita tentará manter-se como artista. Mas as pressões do ambiente são tão grandes que respirar por conta própria torna-se um problema.
Quem sobreviveria com um projeto artístico autônomo, preocupado com questões de interesse apenas estéticos, num ambiente tão ideológico como esse da primeira metade do século XX brasileiro? Não seria Anita a sobreviver. E com ela naufragou a possibilidade de se criar no Brasil uma arte realmente modernista como a que existiu na Europa, nas formas revolucionárias do expressionismo, dadaísmo, surrealismo, futurismo, cubismo, suprematismo e construtivismo.
Somente um artista do peso de Lasar Segall, vindo da Rússia e passando pela Alemanha, naturalizando-se depois brasileiro, conseguiu manter-se no seu próprio rumo, mesmo em certo momento sendo contaminado pelos colegas modernistas, chegando a tingir de verde suas telas, retratando bananeiras e desqualificados sociais, mas retomando em seguida sua pintura universal e preocupada com os destroços da alma humana de uma forma nada provinciana.
Apesar de Oswald de Andrade ter voltado da Europa com o Manifesto Futurista debaixo do braço, não tivemos modernismo no Brasil e aqueles a que chamamos modernistas foram os principais culpados pela destruição da obra de Anita, a pequena, mas maravilhosa estrela cadente moderna que incendiou num rápido lampejo o ambiente artístico da recém-industrializada e culturalmente caipira cidade de São Paulo.
O legado modernista ao Brasil foi uma faca de dois gumes. Como disse Jorge Coli, "os modernistas nos deixaram óculos nacionais". Ao casar arte e ideologia nacionalista, acabou por nos forçar a ter uma tradição que não consegue pensar a arte por si mesma, descuidando de seu aspecto principal em nome de uma participação política e de um entendimento da nossa realidade nacional. O resultado pode ser visto, por exemplo, no Cinema Novo, rico em idéias e pobre em estética, e toda a nossa sucessão de fracassos artísticos, vangloriados aqui por serem produtos internos (brutos), mas indiferentes ao resto do mundo.
O brado de Schiller, de que "na verdadeira obra de arte a forma mata o conteúdo", não se ouviu por aqui. Ou se ouviu, e se criticou tanto, no Concretismo, única arte brasileira que atingiu um caráter universal. Mas isso é assunto para um próximo papo, entre você e eu, caro leitor. Por enquanto, choremos sobre as cinzas brilhantes de Anita Malfatti.
Para ir além
― Anita Malfatti no tempo e no espaço, de Marta Rosseti Batista.
― Um jeca nos vernissages, de Tadeu Chiarelli.
― A querela do Brasil, de Carlos Zilio.
― Modernidade e modernismo no Brasil, de Annateresa Fabris.
― "Ficou antigo ser moderno?", por Jorge Coli (Revista Bravo de março de 2008).
Prezado Jardel D. Cavalcanti, o seu artigo é bastante atraente, creio que ponto de partida para futuros estudos e pesquisas. Eu sempre apostei em Monteito Lobato como o destruidor de Anita. Contudo, os seus argumentos despertaram-me o desejo de aprofundamento com respeito ao tema. Quando Anita foi combatida por Lobato em "Paranóia ou mistificação", de imediato ela foi defendida por Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e outros (sim, isso você mencionou, todavia lançando desconfianças em minhas certezas). Contudo, as datas são preocupantes: 1917, 1922, 1933 — datas nas quais estavam sendo geradas as mais poderosas idelologias do século XX: do totalitarismo nazista ao bolchevique; um tempo obscuro, no qual, penso eu, era extremamente difícil discernir o óbvio do obtuso. Enfim, este tema merece maior atenção, porém, "devagar com o andor", pra não jogar a criança junto com a água do banho.
Jardel, é realmente esclarecedora sua reflexão sobre a mais "notória" artista da famosa ruptura brasileira. Ela, que trouxe as influências de Cézanne e Van Gogh para o país, e conseguiu ser autêntica até se deixar destruir por fatores extrínsecos à sua arte. Aí é que eu acho que ela pecou, afinal, o artista deve seguir apenas às criticas da sua alma, ou, como nas palavras de Muggeridge: "Não se esqueça de que apenas os peixes mortos nadam a favor da corrente."
É um texto a ser pesquisado, repensado, que causa uma certa agitação, principalmente quando temos que lidar com isso em sala de aula e quando sabemos que os alunos do Ensino Médio não têm uma dimensão do que foi o Modernismo no Brasil. Coloca-se tudo em um mesmo barco e nomes como Anita Malfatti se misturam a Tarsilas e Andrades. Não há como se aprofundar nesse turbilhão em classe. É uma lástima.
Registre-se, neste espaço, a reação perplexa de quem se defronta com a desconstrução de personalidades até então admiradas. Difícil contestar as afirmações de quem apresenta seus argumentos com a aparente segurança do "esclarecido".
Essa "pressão externa" não será a mesma que atinge a qualquer um relativamente integrado a alguma coletividade? A genialidade não consiste no rompimento com as demandas contrárias à espontaneidade?