Biquíni é bom, eu sei, mas quando vi o Jânio Quadros dizendo que proibiu os biquínis em respeito às damas paulistas, minha aura emanou a cor da austeridade e me indignei com o uso dessa pouca vergonha tanto quanto as velhinhas da década de 50 se indignaram com os Beatles. Vocês conseguem entender a nobreza de caráter necessária para alguém decretar uma lei, qualquer lei, em respeito às damas paulistas? Tudo que é feito em respeito às damas paulistas está correto, tudo; e quem disser o contrário vai tomar uma guarda-chuvada.
Jânio Quadros olhando muito indignado o uso da peça em questão
A opinião do brasileiro é que as paulistas são sem graça, mas como a opinião de quem elege o Lula não deve ser levada em consideração, vamos imaginar a opinião de um brasileiro ideal, teoricamente ideal: um brasileiro sensato que, quando ouve alguém falar das paulistas, não é afetado pela fúria impressionante de subir numa mesa se chacoalhando como num ataque de terror noturno gritando "Paulistas não têm essa malemolência aqui ó, ó, ó, ó!".
Esse brasileiro idealizado, bonitinho e bem-comportado deixaria de lado todo aquele seu rancor primitivo verde-amarelo para enxergar pela primeira vez a sutileza da graça paulista. É preciso mesmo um mínimo de civilidade para se admirar uma paulista e por isso não discuto quando um bárbaro ofende sua beleza. São pessoas sem a menor sensibilidade, dessas que se entediam num concerto de Tchaikovsky ou que resmungam da ostentação da igreja católica, porque, né, pessoas morrendo de fome e o Vaticano naquela ostentação toda e que é um grande absurdo, aquela ostentação lá, e todas estas chateações de sempre.
Mas, em suma: poetas escreveriam versos memoráveis diante de uma paulista. Já um viking, quebraria o osso de uma baleia na sua cara. É a diferença que distancia os mundos.
Entretanto, você pode muito bem recorrer à primeira emenda da constituição norte-americana ― que conheço devido às muitas horas que passei assistindo os episódios de Law and Order: Special Victims Unit ―, e reclamar a liberdade dos indivíduos de serem bárbaros e de se entediarem num concerto de Tchaikovsky ― a grande liberdade de bocejar nos concertos de Tchaikovsky ― e de resumirem a complexa estética das paulistas a uma mera sem-gracice e o que é que eu tenho a ver com isto etc., mas posso eu, de igual maneira, recorrer à droga da primeira emenda norte-americana e me dar o direito de considerá-los os bárbaros de sempre, que não têm a autoridade de questionar os concertos de Tchaikovsky e as qualidades civilizadas das paulistas. E estamos conversados, eu e os que conversam comigo.
Um bom exemplo de civilidade das paulistas, que muitas vezes é visto como frieza e falta de, perdão, calor humano, é o respeito pela privacidade alheia. Jamais aconteceu na história de uma paulista puxar assunto com alguém no metrô sobre o jogo da Ferroviária. Jamais! As paulistas, meus caros, respeitam a privacidade alheia até na discrição de sua beleza. Uma paulista nunca cometeria a indelicadeza de ser bonita demais. Os homens podem negar ― eu mesmo negaria até a morte ―, mas não é muito agradável o tipo que fica a nos dar ereções o tempo inteiro, ofuscando nossa mente com a violência de uma descarga elétrica que nos põe a gritar e a babar. Como disse Paulo Francis a respeito da Vera Fischer: olho pra ela e só consigo pensar em sexo.
É possível ― por que não? ― que alguém verdadeiramente respeitável, por algum motivo que eu desconheço completamente, poderia achar mesmo que as paulistas têm a sensualidade de uma parede branca, mas acredito que pelo menos se sentiria muito embaraçado por isso e morreria para não admitir tal absurdo. Vizinhas fofocando quando passassem por ele fariam-no tremer e se sujar todo de café, como num sketch qualquer do Monty Python. Seria uma mancha terrível em sua reputação, quase como gostar de Marcelo D2 ou rinha de galo. É verdade, filhos já foram expulsos de casa por muito menos...
Não, claro que não é verdade. Não é óbvio? Ou acreditaram no que eu estava falando? Relaxem, pelo amor de Deus, é tudo mentira. Mas deu pra convencer? É um bom exercício retórico, isto que eu fiz, gosto bastante de fazê-lo. A minha aula preferida na faculdade era dada por um professor da São Francisco que nos falava para defender causas impossíveis ― como as paulistas ― para tornar nossas retóricas eficazes e impressionantes. Na época, gostei tanto da idéia que passei meses defendendo o truco como modalidade olímpica, o governo de Luís XVI, a guerra contra a Malásia ― com o Lula na tevê falando "Isto é o que faremos com a porra da Malásia!" e esmagando um ovo na mesa ―, coisas do tipo. E até que é possível votar em Paulo Maluf com alguma dignidade, nem que seja apenas para descabelar petistas. Quer arruinar o dia de um petista? Chame Paulo Maluf de "Dr. Paulo". Você irá apreciar uma cena comovente. Com alguma criatividade e senso de humor é possível ficar do lado de tudo e de nada. Foi um dos ensinamentos que aproveitei na faculdade e que levarei para o resto da minha vida, no fundo do meu coração.
Caros Eduardo e leitores: sobre este assunto, a voz do bardo, do coração baiano, impõe-se acima de qualquer exercício de retórica, de qualquer suspeita: "Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João/ É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ Da dura poesia concreta de tuas esquinas/ Da deselegância discreta de tuas meninas/ Ainda não havia para mim Rita Lee/ A tua mais completa tradução..." Intraduzível: "porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso..."
abraços do
Sílvio Medeiros.
Campinas, é primavera de 2008.
Uma vez fui ver uma exposição de quadros do Jânio Quadros, aqui em Belo Horizonte. Uma pintura repleta de forças ocultas, dava pra sentir. Na saída, encarei um pequeno grupo de damas paulistas, cheias de malemolência, discrição e sotaque. Timidamente me perguntaram onde encontrar o melhor pão de queijo de BH. "Não tem", eu disse, "é uma lenda urbana". "Oh", disseram elas, "que desapontameinto". Fiquei observando enquanto se dirigiam a uma loja de roupas, do outro lado da rua, com um monte de biquinis nas vitrines. Mas, Mineo, minha pobre retórica não me permite desenvolver o tema Jânio e as mulheres paulistas da forma brilhante que você fez. Grande, meu! Abraços!
Jânio Quadros foi parte de um joguinho, que ele mesmo idealizou, pra renunciar e voltar nos braços do povo. Proibir biquinis, briga de galo, multar polícia, isto tudo era só impacto. Agora, bocejar ouvindo Tchaikovsky, não representa impacto, ainda mais quando o Digestivo escolhe a data da morte dele ocorrida aos 53 anos em Petersburgo, pra publicar este texto. O impacto histórico hoje é ver alguém fazer tomografia que não está a disposição da população na rede pública de saúde, por uma bolinha de papel. É de mandar caçar sapo com bodoque.