Muitos escritores são bons. Alguns escritores são realmente bons. Poucos conseguem ultrapassar as barreiras nacionais para tornarem-se mundialmente conhecidos. Podem ser contados nos dedos os escritores que são tão amados e odiados como Michel Houellebecq.
Ao pôr fim à difícil situação em que a literatura francesa se encontrava há mais de quarenta anos, restrita apenas a região, ele abriu as fronteiras não apenas da França, mas também do continente europeu, com o seu primeiro romance. Extensão do domínio da luta (Sulina, 2002, 142 págs.) foi lançado em 1994 pela editora Maurice Nadeau e traduzido para o português por Juremir Machado da Silva pela Editora Sulina, em 2002.
Após esse livro, Houellebecq lançou outros tantos que causaram polêmica e fizeram sucesso, como Partículas Elementares, que o tornou multimilionário com a recente adaptação para o cinema. O longa-metragem foi dirigido por Oskar Roehler e, naturalmente, chegou aos cinemas do Brasil com dois anos de atraso.
O escritor francês adquiriu notoriedade e respeito na área da literatura ao ser comparado a grandes escritores. Seu texto duro, pesado, cru, sem grandes variações lingüísticas muito lembra Jean-Paul Sartre. Alguns críticos freqüentemente comparam-no a Balzac e Schopenhauer.
Em Extensão do domínio da luta, de apenas 142 páginas, o leitor tem a impressão de morrer progressivamente, primeiro levando bofetadas e depois cuspindo sangue. O personagem principal é um jovem analista de programas de uma empresa de informática que narra sua vida, desde a primeira página, com uma voraz descrença no mundo. Alguns traços autobiográficos são notáveis. O narrador sofre pela separação ocorrida há algum tempo com Verónique. Michel Houellebecq entrou em depressão após o término do seu casamento. Seguindo mais ou menos por essa linha, o narrador-personagem vai se perdendo. Primeiro, é o carro. Ele esquece onde estacionou e desiste de procurar. Depois, são meses viajando a trabalho e, durante esse meio tempo, cresce a depressão profunda e destrutiva.
O próprio autor considera o seu romance a aprendizagem do desgosto. Pelos pensamentos e narrativa do personagem, nota-se o total desencanto com a humanidade e o desespero de uma pessoa que não vê mais razão na vida, apenas um vazio. Em certos momentos vem à cabeça o grande filósofo Nietzsche e o seu niilismo, em que não se tem valorização no sentido e muito menos presença de finalidade.
Em meio ao conflito existencial-social do narrador, ele escreve bestiários, gênero improvisado pelo próprio, o que era, originalmente, na Idade Média, um catálogo escrito por monges sobre os animais. "O bestiário é um gênero literário como qualquer outro, talvez até superior aos outros. Seja como for, escrevo bestiários". Através das vielas alternativas da arte ele consegue sentir prazer na vida transformando-se num indivíduo livre e solitário, o que diminui a sensação do vazio proporcionada pela sociedade contemporânea homogeneizada, a qual ele se refere com duras críticas.
"Debaixo dos nossos olhos, o mundo se uniformiza; os meios de comunicação avançam; o interior dos apartamentos se enriquece de novos equipamentos. As relações humanas tornam-se progressivamente impossíveis, o que reduz, na mesma proporção, a quantidade de peripécias de que se compõe uma vida. E, aos poucos, o rosto da morte aparece, em todo o seu esplendor. O terceiro milênio mostra a sua cara".
Uma questão extremamente relevante no livro é a teoria que o personagem cria com a relação entre a hierarquia financeira e a hierarquia sexual.
"Em nossas sociedades o sexo representa, clara e abertamente, um segundo sistema de diferenciação, completamente independente do dinheiro; e se comporta como um sistema de diferenciação no mínimo tão impiedoso quanto o outro [...] Num sistema econômico totalmente liberal, alguns acumulam fortunas consideráveis; outros chafurdam no desemprego e na miséria. Num sistema sexual totalmente liberal, alguns têm a vida erótica variada e excitante, enquanto os outros estão reduzidos à masturbação e à solidão. O liberalismo é a extensão do domínio da luta."
Nesse momento o leitor pára e tenta refletir, meio atordoado. Houellebecq escreve verdades cortantes, mas mesmo assim continua-se lendo, à espera do próximo corte. É como se o texto tão limpo e cruel causasse dependência. O seu estilo, único, pode levar a uma leitura positiva. Como assim? Ele é o pessimismo em pessoa, realmente... Porém, através de uma explicação niilista, essa crítica à sociedade, que a revela sem escrúpulos e mostra os indivíduos sem um real fundamento dentro da mesma, pode servir para incentivar a nossa responsabilidade e liberdade. Agora, se o leitor entender o livro em sua forma mais simples e brutal, no aniquilamento de todos os valores, declínio constante e perda de sentido na vida, creio que seja melhor não ler nem a primeira página.
Michel Houellebecq é um escritor complicado. Nem os que admiram sua literatura são capazes de compreendê-la. Muitos o odeiam exatamente por essa razão, outros pelas freqüentes polêmicas que ele causa na imprensa. Mas todos terão de reconhecer que somente um bom escritor poderia gerar tanta controvérsia a nível mundial e que com idade relativamente jovem, 52 anos, o autor de Extensão do domínio da luta é um fenômeno.
Dez razões para se ler um livro deprimente:
1 - O leitor infeliz se identifica com o escritor infeliz.
2 - O leitor vê que sempre há alguém mais infeliz que ele.
3 - O leitor nota que, embora infeliz, é inteligente, porque o livro é considerado difícil (na verdade, difícil de agüentar).
4 - O leitor se acha muito humano, por sentir a dor do mundo.
5 - O leitor sente inebriado pela auto-piedade.
6 - O leitor sai dizendo que leu um livro para poucos e se considera um eleito.
7 - Se o livro tiver qualidade, acentuam-se as vantagens acima.
8 - Se o livro não tiver qualidade, o livro vira cult, o leitor vira fã e abre um fã clube.
9 - O leitor aprende outra língua, para ler no original.
10 - O escritor fica feliz com seus leitores, embora tenha que forçar o tom depressivo em suas obras pelo resto da vida.