Você, leitor, é um imoral. Sei que não deve ser fácil saber disso, ainda mais numa segunda-feira pela manhã, período em que ocorre a maioria dos casos de infarto, mas alguém tinha que alertá-lo. Então, prepare sua sensibilidade porque vou dizer de novo: você, leitor, é um imoral, como todo voyeur. Antes de ser apedrejada, deixe-me dizer que isso não é, propriamente, uma acusação. Afinal, que validade teria uma acusação dessas, vinda de uma desavergonhada?
Numa dessas faxinas radicais operadas, vez por outra, pelo orixá que habita em mim, acabei defenestrando um ótimo texto acadêmico que mudou toda a minha concepção sobre a escrita. Infelizmente, não tive o cuidado de memorizar o título do artigo, o nome dos autores ou qualquer coisa que me fizesse encontrá-lo novamente em meio às tramas da internet. Bem, na falta da referência, recorro à minha memória mambembe, com a esperança de que alguém possa refrescá-la com os dados perdidos.
O artigo, disponibilizado em inglês e em francês, foi escrito por dois psicanalistas que analisavam as implicações da escrita literária. Para eles, escrever é uma atividade que exige um desnudamento de quem a pratica comparável apenas ao dos amantes durante o ato sexual. Resumida desse modo grosseiro, a comparação parece exagerada; mas não é. Segundo os autores, é a falta de pudor na escrita que faz com que um universo de possibilidades ficcionais tome forma e funcione em sua verossimilhança. Se o escritor deixar de escrever o que sente com receio daquilo que os outros pensam dele, a literatura simplesmente não acontece. Do mesmo modo, não pode haver entrega sexual quando ela se preocupa em esconder a celulite e ele, os três fiapos de pêlo que jazem sozinhos na vastidão de um peitoral pouco malhado.
A entrega na escrita literária é evidente quando falamos da forma lírica. Os verdadeiros poetas sabem que a poesia é um reflexo imediato de sua sensibilidade. Foi com a Ana Ê que aprendi uma verdade sutil: poesia pode ser retocada, mas jamais reescrita ou reestruturada. Estrofes e versos são tão delicados que não resistem a uma sova narrativa, como é o caso da prosa literária e, sobretudo, a escrita de roteiros ― um caso à parte. Quando entendi isso, passei a respeitar ainda mais os poetas, que se desnudam por inteiro e nem mesmo recorrem a um photoshopzinho básico antes de ir a público.
Um exemplo da proximidade entre sexo e escrita: pergunte a qualquer escritor quais de seus leitores são os mais temidos por ele. Que leitor crítico, que nada! O mais certo é que a resposta seja: a mãe e/ou o pai. Medo de decepcionar o genitor? Não creio. Talvez a razão da resposta tenha mais a ver com aquele sentimento de aversão que todo ser humano tem quando descobre que os pais não são seres assexuados. Imaginar o que os pais fizeram numa determinada primavera de 1975 é tão constrangedor quanto imaginar o que eles imaginam quando você passa a noite fora de casa. Inhãrk!
O fato é que até mesmo a prosa ficcional requer um despojamento das máscaras que usamos no dia-a-dia e que costumam nos caracterizar conforme o grupo que freqüentamos. Se no cotidiano o autor é conhecido como "o palhaço" por tios e primos, "o reprimido" pelo grupo A de amigos, "o desbocado e tresloucado" no grupo B, "o responsa" no C etc., na narrativa de ficção cada uma dessas facetas dará corpo a um personagem. Por isso, em vez de se esconder atrás de suas criações, na verdade, o que o escritor faz é revelar tudo o que ele é de uma única vez. E isso pode assustar muita gente, ainda mais aqueles conhecidos que não imaginam a natureza doentia dos pensamentos que podem estar escondidos atrás dos olhos do autor.
Coragem, loucura ou sem-vergonhice, o verdadeiro escritor não pode ter pudor; ele tem que dar a cara a tapas, críticas e comentários; e, principalmente, sobreviver a eles. Mas não se iluda. Definitivamente, o autor não é um ser desprotegido. Na verdade, ele é um nudista que não se contenta com a própria nudez e faz questão de despir a realidade à sua volta. E é aí que reside sua capacidade de vingança: o escritor pode e usará nos textos que produzir todos os segredos que você lhe confiar, as expressões e gestos que você deixar escapar e todos os seus medos. É claro que ele pode trocar o nome dos santos, misturar situações, combinar defeitos físicos e manias que coleciona ao longo de suas observações mundanas, enfim, dar uma maquiada nas informações a fim de preservar um pouco a imagem dos conhecidos. Ele pode, mas isso não significa que ele vá fazer. E mais uma vez voltamos ao sexo: não há nada mais sórdido do que sair por aí divulgando manias, defeitos do ex-amante e segredos que deveriam permanecer entre quatro paredes. Entretanto, a gente sabe que nem todo mundo prima pela discrição.
Sei de um autor potiguar que passou mais de 20 anos sofrendo retaliação de parte da população de sua cidade natal, depois de ter escrito um dos melhores romances contemporâneos do Nordeste. Nesse livro, há tipos tão peculiares, descritos com tanta precisão, que não foram poucas as pessoas que identificaram as fontes de sua criação e reconheceram os próprios defeitos expostos em público.
Sei também de um escritor que guarda histórias para escrever depois que a mãe morrer, só para garantir que não ele será o responsável pela morte dela. Também há o caso da escritora covarde que acabou queimando páginas de um quase-livro porque "depunha muito" contra seu ex-túpido, "por mais que ele merecesse o inferno..."
Como se vê, em meio a esse campo de nudismo literário, não é o autor quem está nas mãos de críticos e leitores, mas a realidade e a sociedade é que estão, literalmente, nas mãos desse sem-vergonha audaz.
Por outro lado, se o escritor é um exibicionista, o leitor é um voyeur. Afinal não é esse o termo que designa aquele que sente prazer em observar a nudez de outrem pela fresta?
Em termos de fetiche literário, graças a Zeus somos todos imorais e ninguém pode falar de ninguém. A entrega não combina com "nove horas"; e tanto na escrita quanto na leitura, mais do que em salas de embarque de aeroportos, vale a máxima da ex-ministra do turismo, Marta Suplicy: "relaxa e goza", cara.
Muito interessante, Pilar. Esse texto propõe mais uma boa resposta (são raras) à questão: quem é o verdadeiro autor do texto literário? Como conciliar Shakespeare com o discreto negociante de imóveis que ele foi? Quem era Lewis Carroll? Aquele professorzinho gago? Emily Dickinson era mesmo aquela simples moça doméstica e tímida que não saia de casa? Fernando Pessoa, em pessoa, era mais chato ou menos chato que Álvaro de Campos? Por outro lado também é válido pensar que o escritor está nu, no dia-a-dia, mas veste sua roupa de Batman para escrever. Ou da Mulher Maravilha. Ótimo texto! Abraços
Por isso gosto de você, Pilar Fazito, e nem a conheço pessoalmente. Simplesmente admiro o que você pensa, como escreve, mesmo que nem tudo o que escreva seja o que você pensa. E pode crer, são poucas as pessoas que admiro, não que eu seja o máximo, o melhor, e tão pouco sou do contra ou um cara chato, posso ser intransigente com as mediocridades, desconstrutor das beocidades e dos que se acham, alguns ruinzinhos nos seus místeres, mas heróis da moçada... Você parece-me verdadeira, coloca, em parte, seus personagens como seu alter-ego. E todos que escrevem ou tentam escrever, sem dúvida, são os alter-egos dos seus personagens; é dificil separar o real do irreal quando se textua ficção, pelo menos é assim que me sinto ao tentar escrever. Quase sempre o autor derrama no papel o que sente, de fato, intimamente, mesmo que minta no contexto e diga que o personagem é outro, não ele. Como dizer em um texto que sente a maior atração pela amiga, diz que é um amigo que está sentindo...
Você pegou o espírito da coisa. De uma forma clara e agradável, transmitiu um aspecto dos escritores pouco exposto. Creio que tem razão. Há um certo receio por parte dos escritores em se sentirem descobertos pela família ou conhecidos. Ou vice-versa.
Querida Pilar, excelente texto. Ele me remeteu imediatamente ao "Dublinenses", de James Joyce. O escritor irlandês "dedurou" (rsrs) toda Dublin por meio da escritura. Isto também é válido no que se refere ao "Ulisses".
Abraços do
Sílvio Medeiros.
Campinas, é primavera de 2008.
E, de acordo com o que levantas, penso que já esteja mais do que na hora de desconstruir a célebre "o poeta é um fingidor". Ele não é nada disso. O autor é livre, e - se assim não for, não será escritor. A ficção literária, porém, permite-lhe o disfarce, que, por sua vez, possui base real. Mas, ainda que se vista a caráter, não conseguirá ir muito além. A meu ver, estás coberta (mas não disfarçada) de razão. Parabéns pelo belíssimo texto. Um abraço.
Nada de novo sob o Sol. Será que são necessários dois psicanalistas europeus para saber que o autor não se esconde, mas se desnuda, com seus escritos? Que nova pólvora foi descoberta? Será que esses caras não tinham nada melhor a fazer?
Quanto à cronista, poderia ter pelo menos dito quem é o tal escritor potiguar, a única informação interessante na crônica, mas que faltou.