O astrônomo se contorna como um mosquito azul pousado na sacada, imerso que está na noite desta cidade que é mais negra do que as outras. É por isso que ele se inclina sobre a ocular, ajusta o foco e observa, sentado numa das cadeiras da mesa de jantar.
Nesta noite, ele vai observar Júpiter, que, não fosse sua luminosidade intensa, mais pareceria a olho nu uma estrela qualquer a milhões de anos-luz. Através da luneta, esse planeta é aparentemente apenas uma bolinha de pingue-pongue. Uma olhada melhor e lá estão as duas faixas vermelhas, resultado da turbulência de sua atmosfera briguenta. O tableau vivant se completa com as quatro luas ao seu redor. Silencioso, o astrônomo compreende a magnitude do que vê através de sua pobre luneta e se emociona com a distância em que está seu objeto.
De fato, ao apontar seu pequeno telescópio no sentido da torre de Chartrons, um cume tão frágil quanto a ponta de um lápis, se surpreende ao observá-la agora com a minúcia de um microscópio. A torre da igreja era um crustáceo vivo, cheio de articulações, reentrâncias por onde o som dos sinos podia ecoar por toda a vila. Pelo menos é o que deveria acontecer, centenas de anos atrás. Hoje, lá está ela, petrificada no tempo, ainda que iluminada pela chancela da tradição e da beleza.
O astrônomo enxerga de repente a si mesmo, grudado às alturas da torre, o vento de outono batendo em seu rosto, desestruturando seus cabelos. Ainda que não possa tocar a lua, do alto da igreja ele admira o céu, sem se esquecer da Terra. Abre o olho e se encontra, mais um vez, na sacada, de onde focaliza agora o rosto da escultura numa praça próxima. É um rosto imenso, recoberto de cachos voluptuosos, o rosto impassível de estátua. Suas roupas estão recobertas por uma mistura de guano e óxidos. Mas se a obra deve ser vista pelos transeuntes, de baixo para cima, seria tão antiético quanto observar o intendente Tourny, vasculhar com a lente os apartamentos em frente?
Nesta mesma noite, o chinês Zhai Zhigang é um ponto branco levitando no espaço. E, ao contrário do astrônomo que apenas contempla, Zhigang faz parte de uma missão planejada pelo governo chinês. Enquanto o astrônomo passeia pelas estrelas da Via Láctea, Zhigang flutua pelo espaço preso à uma espécie de cordão umbilical junto à Nave Divina. O primeiro, cidadão universal, sente-se emocionado em viver neste planeta e a um só tempo pertencer ao infinito, que mapeia como projeto de vida; o segundo alia estratégia e dever, taikonauta com a missão de demarcar sem passos, mas com um vôo, o território chinês no espaço.
Ambos compartilham um momento, talvez o mais surpreendente para um terráqueo: estar fora da atmosfera em que se respirou pela primeira vez, a única em que é capaz sobreviver sem aparelhos (ao menos por enquanto); contemplar com humildade e espanto seu planeta azul como uma peça frágil do universo. A roupa especial faz do taikonauta um ser exótico. Não se pode ver nem ao menos seu rosto, mas pelo capacete o belo e perturbador reflexo das coisas vistas do espaço. Se acaso um observador externo o visse pela primeira vez, haveria um retrato sui generis da raça humana.
Está desamparado no vácuo negro, assumindo a fragilidade humana, mas ostentando a bandeira chinesa, "somos nós que fizemos a façanha de chegar no espaço, o terceiro povo da raça humana!". Não há desta vez nenhuma frase poética, o tempo é de necessidades e meios. A agência oficial de informações chinesa lançou a notícia de que a missão espacial começara antes mesmo do acontecimento. Tudo tem que correr bem, não há a mínima chance de imprevistos.
Como o do meteoro que passou. Ou estrela-cadente, para os leigos. Grata surpresa para aquele que ama os astros, este visgo de fogo no céu gerado por uma pedra qualquer se esfacelando em mil pedaços no contato com a atmosfera terrestre. Não houve tempo para pedidos, tão rápida a passagem. O astrônomo é extremamente emotivo e, ao mesmo tempo, tem um aguçado lado racional.
Inevitável que dirijam a ele esta pergunta, "Existe vida fora da Terra?". O astrônomo titubeia tímido e acaba não respondendo nada, embora saiba que é pouco provável que não haja vida em outro canto do universo, imenso. Espera que tenhamos sorte de encontrarmos ou sermos encontrados por um povo qualquer... pacífico.
O astrônomo, mesmo na incapacidade de seu pequeno telescópio, vê o passado das estrelas e o futuro da humanidade. Vê ainda outros taikonautas construindo uma estação espacial. Assim como outros países, mais ricos ou precavidos, preparando-se um dia para deixar a Terra, paraíso perdido, depósito de seu lixo final. O cosmos é um imenso playground, onde todos quem brincar. E não seria uma questão de tempo as guerras ganharem um status de "espacial", mais aterrorizante do que as das histórias em quadrinhos ou das séries da televisão?
Na escuridão daquela noite tão negra quanto o universo, o astrônomo, distraído com planetas e astronautas, não sabia de outros planos. A luneta branca deste cidadão do universo, um inseto em queda da varanda, talvez se parecesse mais com uma arma negra na noite escurecida em inquietudes.
Querida Elisa, o seu texto é tão belo quanto Bordeaux!
É... e desse modo o século XXI configura-se: uma odisséia no espaço versus uma odisséia pelo corpo humano (engenharia genética). Céus, o resultado disso tudo me assusta e me fascina (ponto de partida para o ato de filosofar). Pena que não teremos existência suficiente para tudo conferir!
Abraços do
Sílvio Medeiros.
Campinas, é primavera de 2008.