"Passarinho na gaiola,
Fez um buraquinho...
Voou, voou, voou, voou
E a menina que gostava
Tanto do bichinho
Chorou, chorou, chorou, chorou..."
Há coisas que são universais a todos os povos, como as danças de roda, a música, os pães, a figura do curandeiro-médico-xamã e do palhaço, as tramas, os bordados e os fios. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer tempo, as pessoas se divertem, comem, adoecem e tramam seus fios para se vestirem ou para transformar palha em algo útil.
Os fios sempre estiveram em destaque na história da humanidade. Penélope bordava de dia e desmanchava o bordado à noite enquanto esperava a volta de Odisseu. As Moiras controlavam o fio da vida dos mortais, determinando a hora em que cada um teria o seu destino cortado e que deveria, então, levar as duas moedas para o barqueiro que fazia a travessia deste mundo para o outro. Teseu conseguiu sair do labirinto do Minotauro graças à linha que desenrolava atrás de si e que marcava os lugares por onde havia passado.
E assim a história se entrelaça, formando uma trama de conhecimentos adquiridos ao longo de gerações. Da tessitura grega à velha a fiar, a costura, o bordado, a tecelagem, o tricô, o crochê, a renda, o patchwork, o fuxico etc. passaram de avós, mães e tias e para filhas, netas e sobrinhas. Um exercício silencioso de paciência, atenção e cumplicidade.
Tradicionalmente feminina, a atividade com as linhas e agulhas requer mais do que mãos habilidosas e finas, requer devoção. Na costura, cada ponto puxa a linha do pensamento e faz a imaginação e as emoções fluírem para o tecido. O bordado as imprime sobre o étamine. O tricô e o crochê fazem com que elas dêem voltas e voltas sobre si mesmas, criando um mundo imprevisto de nós e laços.
Lidar com linhas é entabular uma assembléia com os próprios botões. Uma troca de idéias com o tecido, com as agulhas, os novelos e as meadas. É alinhavar o pensamento, remoer e organizar as impressões, pôr a casa em ordem para então ver o que se há de fazer. Assim como a escrita, é uma faxina interna. Mas é uma faxina que não precisa ser feita de forma tão solitária.
O filme Colcha de retalhos, com Wynona Ryder, assim como as diversas associações de rendeiras, costureiras, bordadeiras e tecelãs mostra como a atividade realizada em grupo torna-se uma troca de experiências femininas. Concentradas no próprio trabalho, cada mulher desfia suas angústias, suas dores e alegrias e interage, ensinando e aprendendo umas com as outras a respeito de pontos, alinhavos e arremates e sobre outros temas como o amor, a profissão, a família, os desejos, as frustações, os sabores e dissabores de uma vida comum. E quando não há essa troca proveitosa, futricam, ou melhor, fuxicam, transformando a vida alheia em tapetes, colchas e bolsas.
Aprendi a bordar por acaso e de forma autodidata. As linhas sempre me encantaram, mas minha avó não me esperou crescer para me ensinar sua arte. E minha mãe não as quis aprender, talvez por inaptidão natural ou por ranço feminista, próprio de sua geração. O fato é que, neste quesito, fiquei órfã muito cedo.
Eu admirava muito o manejo das agulhas, mas só fui aprender mesmo muito tarde, já saindo da faculdade. Antes disso, tive uma experiência mínima com a tecelagem de tapetes arraiolos, durante umas férias escolares, quando uma tia-torta me deu uma trama, uma agulha e um novelo de lã. E outra tão pequena quanto a anterior, quando outra tia-torta me ensinou o ponto básico do tricô. Cheguei a comprar agulhas e novelos de lã, mas meu cachecol azul nunca conseguiu cobrir mais do que a palma da minha mão.
Depois que me formei, arrumei um trabalho como professora de francês para alunos do ensino médio. Logo no carnaval, eu tive dengue e fiquei todo o feriado acamada e com uma falta de energia absurda, que me impedia mesmo de descer as escadas de casa. Uma amiga soube disso e me preparou uma caixinha com diversas atividades lúdicas para enfermos, além de uma porção generosa de brigadeiros. Dentre as atividades, havia uma toalhinha com o início de um bordado vagonite e uma agulha espetada num recadinho: "finish it". Era a única instrução. Como a dengue me obrigava a ficar parada, resolvi tentar entender como funcionava aquele "trem" e, muito desajeitadamente, consegui terminar o bordado. Gostei da coisa. Já recuperada da doença, passei a comprar revistas sobre o tema, agulhas e linhas. Lancei-me no desafio de aprender sozinha o ponto cruz. Aprendi. Cheguei a bordar algumas toalhas, muitas letras e alguns desenhos. Depois, por motivos pessoais e extra-terrestres, suspendi a produção.
Passaram-se os anos. Desses que a gente não vê e só percebe quando eles invadem nosso corpo e nossa pele, acentuando as rugas e linhas dos rostos e os sulcos da palma da mão.
Atualmente, seleciono, jogo fora parte de três décadas de existência e encaixoto outro tanto, lançando-me numa guinada saturnina de vida. Uma mudança de ciclo, de decênio, de casa, de cidade, de estado civil, de profissão, de corte de cabelo, de estilo de vida e de tudo mais que vier.
Eu tenho o costume de fazer faxinas anuais e jogar fora o que não uso, o que não presta e o que posso conseguir novamente; por isso mesmo, assustei-me com a quantidade de lixo que colecionei ao longo dos anos. Quanto mais coisas iam para as caixas, mais coisas saltavam dos armários. Como as caixas são poucas, resolvi avaliar a papelada que vinha passando pela trama da peneira nas últimas faxinas anuais e me vi às voltas com contas, comprovantes, contratos e rescisões vencidas havia mais de oito anos e cartas e bilhetes de pessoas que foram importantes, mas que viraram passado ou desprezo, ou que caíram no abismo do esquecimento. Lixo. Todo o lixo que pesa na bagagem e enche a casa e o presente de traças, ácaros, poeira, mofo e lembranças ruins.
Confesso que me senti mais leve a cada papel rasgado, como se eu finalmente me desfizesse não apenas de papéis, mas de cobranças internas e externas que nunca me fizeram bem.
A faxina me obrigou a organizar meu material de bordado, que estava todo espalhado, e as linhas que estavam emaranhadas numa confusão de nós e cores. Em meio a tudo, encontrei um novelinho verde, antigo, de uma linha grossa que eu usava muito pouco. No meio dele havia algo que, até então, eu nunca havia tido a curiosidade de verificar o que era.
Então me lembrei que aquele novelo havia pertencido a minha avó materna. Não lembro como foi parar ali. Não sei se me foi dado pela minha mãe ou minha irmã, ou se eu o afanei... Sei que ele veio para a minha caixa de bordados junto com uma caixinha azul, contendo uma agulha de crochê, que também havia sido dela. Desenrolei a linha e descobri uma peça de crochê que minha avó havia começado a fazer. Imediatamente me lembrei do "finish it".
Eu nunca havia feito crochê na minha vida. Não sabia como manusear a agulha, ou como fazer os pontos. Mesmo assim, resolvi pegar a agulha enferrujada da minha avó e tentar continuar o que ela havia começado. A seqüência dos pontos me era indicada de forma inexplicável. Era como se ela apontasse por onde e de que forma eu devia passar a agulha e puxar a linha. Quando dei por mim, estávamos fazendo crochê. Estávamos. Eu e ela. Mesmo após 24 anos de sua morte, eu podia aprender algo novo com a minha avó e sentir sua presença.
Continuar seu crochê é juntar meus pensamentos aos dela, tentar imaginar o que ela faria na carreira de pontos seguinte, é dialogar com seus pontos, querer saber o que a fez cerzir de forma tão unida e tensa... Enfim, é uma segunda chance de tentar conhecer minha avó por ela própria. E, no final de tudo, conhecer a mim mesma, o que temos em comum. Convivi pouco com minha avó, mas intensamente. A ponto de ainda tê-la como uma referência para todas as minhas decisões. Só o que pude registrar, durante a infância, foram canções de roda e de ninar; a gentileza, a calma e a simpatia cotidiana; a admiração pelas plantas e animais; e o espírito científico indefectível de toda avó, o que me fez acreditar que toda a indústria farmacêutica não é páreo para a arnica, a água-com-açúcar e as formigas que fazem bem para a vista.
Eu queria ter tido oportunidade de conhecê-la melhor e o destino está se encarregando disso. Não tenho do quê reclamar.
"Genial" esse teu texto, Pilar. Linhas, bordados, lembranças, fuxico, vida, enfim. Lixo? Ah, isso também é possível, às vezes, de se encontrar perdido em meio a tantas recordações. Mas, por que passaram a ser lixo? Antes, não eram - certamente. Que bom, quando as reencontramos, porque assim temos a oportunidade de perceber, o quanto um dia elas já foram valiosas para nós (por isso foram guardadas). Mas foi Ítalo Calvino que isse, que somos aquilo que não jogamos fora. Nossos melhores "lixos" são aqueles que mantemos em nosso poder, fazendo-nos companhia, como a linha, a agulha e o crochê deixados por tua avó. Mais uma vez, tu nos dá a chance, com esse texto, de rever pessoas e lembranças tão estimadas por nós. Obrigado e parabéns.
Pilar: amei seu texto. Aliás, eles são mesmo inspiradores. Pontos de crochê? Ah, dão para fazer uma blusa, uma bolsa, um xale... e tem pano, digo, linha para costurar e até fazer um blog (rs)!