Nota do Autor Este texto comenta o final do filme Vicky Cristina Barcelona.
É muito gratificante a sensação de saber que sempre serei lembrado por achar que a Cyndi Lauper danificou a cabeça de uma geração inteira de garotas certinhas com suas músicas rosa e amarelo. Alguns podem considerar que sou exagerado; outros darão o braço a torcer, mas tal qual a criancinha no conto de Hans Christian Andersen, aponto para esta geração de garotas perdidas e digo "Vejam! Vocês estão nuas!".
Existem três tipos de garotas certinhas: as garotas certinhas que sempre serão certinhas; as garotas certinhas que sempre serão certinhas, mas que até acham maneiro essa coisa misteriosa e ultra-interessante de não serem certinhas "porque a vida é uma só, né?" e todas essas frases que são traduzidas na cabeça dos homens para "vou abaixar as calças pro primeiro que aparecer"; e as garotas certinhas, que são como as outras, mas que às vezes têm a coragem de serem erradas, mesmo sabendo que invariavelmente serão miseráveis. E Vicky Cristina Barcelona, do Woody Allen, é ao mesmo tempo uma sacudida na Cyndi Lauper e, como disse um amigo meu, é também um aviso às garotas certinhas: fiquem na sua, ou vão quebrar a cara.
É certo que existem também as garotas que nasceram do avesso ― vocês já devem ter visto ― e que algumas vezes conseguem incrivelmente ter uma vida satisfatória de um modo sociologicamente curioso, vide qualquer personagem interpretado pela Penélope Cruz. São pessoas que funcionam na contra-mão das regras culturais, que têm comportamentos e valores talvez chocantes, mas que conseguem, em maior ou menor grau, encontrar um sentido de permanência para suas vidas. Entretanto, nosso foco está lá do outro lado, não é? Lá, ó, lá.
Nosso foco são as garotas certinhas que às vezes têm a coragem de serem erradas ― e não estou falando sobre votar no Barack Obama, ok? No nosso caso: Vicky e Cristina.
Vicky e Cristina são duas garotas certinhas que depois de algumas enrascadas perceberam que, afinal de contas, elas são garotas certinhas e que, por mais que tentem lutar contra isso, nunca vão se sentir confortáveis em situações opostas às suas culturas, pelo que uso como base para definir meu certo e errado ― e funciona!
Vicky está para se casar com um tipo de Nova York. O cara é bem-sucedido, mas morno. Morno, porém ainda um bom tipo, um sujeito que talvez tenha sido contaminado demais com o mundo corporativo, mas que se mantém dentro da linha do aceitável e desejável. Dá para ver que é um cara estudado, que tem uma boa aparência, que é às vezes divertido e tem uma vida social que eu invejei muito. Além disso, ele está tomando conta de todo o casamento, está procurando uma casa (com quadra de tênis!) para morar com sua noiva e tudo mais.
Vicky está em Barcelona estudando para sua tese sobre a cultura catalã junto com sua amiga, Cristina, uma artista em crise, cuja maior obra foi um fiasco. As duas se hospedam na casa de um casal de amigos ligeiramente mais velhos e, em princípio, felizes. É quando, num passeio à uma galeria de arte, encontram um artista espanhol charmosão, mas com fama de vida sentimental turbulenta, por causa de um episódio violento com sua ex-mulher paranóica e agressiva ― adivinha quem a interpreta?
À noite, o artista espanhol aborda as duas num restaurante e, de uma maneira excessivamente direta, as convida para uma viagem e para sexo. As duas amigas se dividem: Vicky nega, assumindo uma postura conservadora e Cristina aceita, assumindo uma postura liberal. As duas acabam indo, afinal, e tudo se embaralha com Vicky se apaixonando pelo espanhol, o espanhol se apaixonando pela Cristina e esta também entra no jogo aceitando viver um relacionamento a três com o espanhol e sua ex-mulher.
Tudo parece até cult, até bonitinho, mas invertendo-se o sexo dos personagens, dificilmente esta imagem de jovens descobrindo o amor se sustenta. É até engraçado imaginar como reagiriam as blogueiras que li falando sobre "tem que experimentar tudo mesmo" se na verdade fosse uma garota oferendo sexo para dois caras (dos quais um casado) completamente desconhecidos.
E conhecendo um pouco Woody Allen, dava para sentir a porrada que as duas iriam levar mais cedo ou mais tarde e, é claro, não demorou muito. Após uma série de confusões absurdas, numa das quais a Vicky quase morre com um tiro, as duas personagens conseguem enxergar que são e que sempre serão garotas certinhas. Conseguem finalmente enxergar que o custo de buscar a felicidade na contramão da sua personalidade é alto demais e que querem, no final das contas, ser felizes numa relação estável, encontrando alguém em quem possam confiar e serem também confiáveis.
Muito embora seja possível defender teoricamente que garotas do avesso, quando cansadas de suas vidas hiperbadaladas e superdivertidas, podem também ser muito confiáveis. É o que nos ensina o Jay da dupla Jay and Silent Bob no filme Chasing Amy, quando Ben Affleck conta todo chateado que terminou com sua namorada, uma garota muito experiente, para se dizer o mínimo, e que não sabe o que fazer: "Seu idiota! Ela já fez todo tipo de maluquice no mundo! Agora ela já não vai querer experimentar mais nada e pode se contentar com um cara chato e tedioso como você!".
Isso, embora retoricamente pareça válido, precisaria considerar a possibilidade das pessoas mudarem suas personalidades e, se é verdade que pessoas mudam, eu não sei responder. Mas, se for possível, deve ser praticamente impossível. Como assistir um filme do Woody Allen e não gostar.
Então dá pra ver como são misteriosas as coisas. Sou leigo em tudo. Isso me dá liberdade para dizer qualquer bobagem e me sentir, com licença da palavra, inimputável. Uma vez, na adolescência, quase cometi um namoradicídio depois de saber que "minha garota" tinha namorado um outro cara da minha rua. E não adiantava ela dizer que "não se lembrava mais dele". Como não se lembrava?, eu dizia, pronto pra matar... Você é maluca? Alguém pode esquecer um beijo? um cheiro? um abraço? E lá ia eu desfilando toda a minha paranóia de garoto do interior, aculturado de aldeia, onde mulher tem dono. Falei tudo isso para me reportar ao início do texto. "Existem garotas certinhas... existem garotas que não são certinhas..." Quando os políticos falam que a solução está na educação, provavelmente não estão falando da educação integral, essa que impediria que existissem garotas certinhas e não certinhas e ex-trogloditas como eu.
Gostaria de mais falar, mas meu limite é menor do que o este espaço.
Sim, o filme é bom. É impressionante como mesmo um Woody Allen despretensioso consegue ficar acima da média dos filmes a que assistimos. Gostei do seu texto também. No entanto, tive uma impressão diferente acerca da Cristina; não achei que ela recuou diante de uma "derrapada". Achei que continuaria experimentando o que aparecesse, em razão de sua natureza inquieta. Mas é legal poder pensar por um outro ângulo. Parabéns.
Oi Roberta. Pensando depois e lendo algumas entrevistas do Woody, eu realmente mudei minha forma de ver a Cristina. Numa entrevista sobre Vicky Christina ele disse o seguinte: "E Scarlett Johansson sabe o que ela não quer, mas não sabe o que ela quer e provavelmente nunca saberá. Ela caminha por sua vida e tem um relacionamento seja lá qual for, e pensa, 'Este é o que vai me dar uma sensação de satisfação.' E então, conforme o tempo passa, porque é desconfortável para ela, há uma ansiedade dentro dela que faz com que ela se agarre a qualquer relacionamento mais cedo ou mais tarde, e pensa que o problema está no relacionamento, quando na verdade está nela. E ela na verdade jamais achará exatamente o que ela está procurando."
Então eu acabei adaptando a Cristina ao que eu queria bater no meu
texto, mas eu forcei um pouco ali. Ela não é uma garota certinha. Ela não sabe o que é e talvez nunca saiba. Como disse o próprio Woody, o filme é bonito, tem gente bonita e músicas bonitas, mas é um filme triste e pessimista.