De vez em quando a gente encontra algumas pessoas admiráveis. Da mesma forma encontramos pessoas desprezíveis e entre esses dois extremos situa-se a maior parte da multidão, a multidão humana ― ou desumana, como soar melhor ―, na qual vivemos.
Nós mesmos estamos sujeitos ao escrutínio geral e podemos ser admirados por algumas poucas pessoas ou desprezados por outras tantas. Algumas crianças pequenas já me admiraram certa vez e me deram a honra de seus olhares, cheios da mais pura atenção e alegria, quando fiz pra elas um truque de malabarismo com três bolinhas de plástico coloridas e finalizei com o velho braço-de-borracha, que consiste em encolher, dissimuladamente, o braço sob a manga do casaco e depois esticá-lo com a ajuda da outra mão, dando a impressão de que a gente é o Senhor Fantástico, do Quarteto Fantástico, um cara que se espicha todo e que deve ter uma vida amorosa muito divertida. É realmente gratificante quando você consegue um legítimo pedido de bis: "faz de novo!". Poucos atores profissionais tiveram essa glória, mesmo depois de, dando tudo de si, ter recitado o monólogo de Hamlet no palco.
Um conhecido meu, que trabalhava como motoboy e que tem muita semelhança física com aquele ator do Homem Aranha, era considerado como o próprio pelas crianças de uma escola na qual ele fazia entregas periódicas. Certa vez ele disse que era o Peter Parker para um grupo de meninos incrédulos, mas não podia revelar sua verdadeira identidade de Homem Aranha para a escola inteira. Um dos meninos exigiu alguma prova mais convincente do que a simples semelhança física. Tirando os óculos, o motoboy pediu para que o menino os segurasse, pediu às crianças que aquilo ficasse só entre eles (uma cumplicidade que as crianças adoram), pediu para que se afastassem um pouco e correu contra um muro, deu dois passos subindo a parede e, num impulso bem medido com as pernas, deu uma cambalhota no ar, para trás, caindo de pé outra vez. Talvez seja bom explicar que esse motoboy era um capoeirista dedicado nas horas vagas.
O menino que segurava os óculos se aproximou solenemente ― o que tinha nas mãos eram os óculos de ninguém menos que Peter Parker ― e os entregou ao motoboy. Este disse às crianças que da próxima vez que viesse traria para elas algumas balas especiais que ele, como Homem Aranha, ainda gostava muito de mastigar, entre uma aventura e outra.
Foi exatamente por isso que ouvi a história. O rapaz estava em minha casa, fazendo alguma entrega e me perguntou se nas imediações havia alguma padaria onde pudesse conseguir balas a preços bem acessíveis. Me contou a história e eu dei a ele o dinheiro para comprar as balas. Eu não poderia deixar o Homem Aranha sozinho, com sua dignidade de aranha arranhada por uma promessa não cumprida, na frente de seus pequenos admiradores. Sendo a história real ou não, ela valia, por si só, as dez pratas extras.
Numa outra ocasião, há pouco tempo, eu caminhava de manhã pela alameda agreste que margeava a represa de Cajuru, perto de Divinópolis, no interior de Minas. Passava ali o fim de semana, hospedado em casa de amigos e ia, acompanhado pela minha cadela labrador, no passo lento que é tão típico em nós dois. Eu ia pela rua de terra, plana, deserta, batida pelo sol e sombreada aqui e ali pelo mato cerrado das margens. Fumava um cigarro e tentava afastar alguns insetos zumbidores que passavam rasantes pelas minha orelhas, jogando minha fumaça neles, "olha, meu sangue não é bom pra vocês, vão procurar alguma vaca por aí nesses matos, seus malucos".
Era um desses momentos em que a gente acha que está sozinho, mas não. Lá na frente vi um grupo de pessoas se aproximando. Pessoas que trotavam ritmadamente, levantando uma poeirinha que só de longe dava pra notar. Chamei minha cachorra para junto de mim e coloquei nela a coleira; um gesto totalmente desnecessário, apenas simbólico, de paz e harmonia para com pessoas que tremem com a visão de um grande cão labrador, mesmo que esse cão tenha os olhos mais doces do mundo.
Bem, o grupo se aproximava e estavam mesmo trotando, olhando a curtos intervalos para os punhos, onde ostentavam enormes relógios de pulso. Vestiam essas roupas engraçadas de pseudo-atletas urbanos: moletons, camisetas de tecido antitranspirante, cheias de logotipos estranhos e coloridos, tênis novíssimos e meias felpudas, bandanas nas cabeças e nos punhos, viseiras, joelheiras e os indefectíveis óculos escuros, com aquela cordinha passando por trás da cabeça. Sem esquecer, é claro, os cronômetros, marca-passos ou sei lá mais o quê, que eles usam até em cintos amarrados no peito. Monitoram o coração a cada dez metros de percurso de forma que, se algum deles sofrer um infarto fulminante, o troço vai ficar registrado para posterior análise: "é, acho que ele se excedeu. Aqueles dez danoninhos antes da corrida foram fatais."
Porque eram sujeitos altos e pesados, eu, não sei por quê, penso logo em paulistas numa hora dessas. Assim como penso em nordestinos quando vejo alguém tocando viola em praça pública ou em cariocas quando vejo alguém tomando um chope sozinho. Eram mais para gorduchos do que realmente corpulentos, as bochechas roliças e rosadas e as cabeças empinadas, olhando ligeiramente para o alto e para frente, numa acintosa demonstração de indiferença aos encantos da paisagem rural, ainda que as barrigas pesassem na direção da mãe terra, o descanso final.
Um deles dignou-se a uma rápida olhada em minha direção e pude perceber, através dos óculos escuros, o lampejo de desprezo que um atleta sente, incondicionalmente, por um fumante, ainda mais quando esse fumante está, realmente, fumando sobre o que deveria ser a passarela sagrada da saúde eterna, ou seja, a pista de corridas. Minha cachorra ainda abanou timidamente o rabo, mas não foi o suficiente para enternecer os duros corações preocupados com o nível de seus próprios batimentos cardíacos.
Gostaria de ter dito a eles que eram eles que estavam invadindo a minha pista de lazer, mas passariam, de qualquer maneira, trotando sobre sutilezas desse tipo. Observei-os enquanto se afastavam em fila indiana. Antes, vinham ocupando toda a largura da rua mas, suponho, quando viram minha cachorra tomaram aquela formação, em fila, na margem oposta da estrada, e tenho a impressão de que o último da fila estava meio que atropelando o que ia na frente dele. Esses paulistas são loucos, meu.
Não sou um admirador de atletas, em geral. Talvez, e só talvez, uma discreta admiração por levantadores de peso. Mas só por aqueles que nasceram assim e que simplesmente não podem sequer sonhar com equitação ou com balé. Minha admiração não é propriamente dirigida para os atletas, mas para a natureza que, de vez em quando, providencia uns recém-nascidos de dez quilos por aí. Eles crescem, e como. Imagino o estrago que um sujeito desses pode fazer dentro de um banheiro, num momento de aperto, e fico admirado com essas possibilidades.
Penso, às vezes, na enorme carga de energia desperdiçada em vaidade pura, dentro das academias, e penso como seria legal se cada um daqueles aparelhos possuísse um pequeno gerador elétrico, movido pelo esforço dos praticantes e que essa energia fosse armazenada em baterias que, por sua vez, mantivessem o chope geladinho, em máquinas estrategicamente colocadas nas salas de entrada, onde os maridos esperam pacientemente que suas mulheres terminem de pedalar.
Penso também na contradição inerente à prática da ginástica moderna, quando todo o aparato é voltado para proporcionar conforto ao ginasta, desde os tênis que absorvem os impactos ao ar condicionado "natural" das academias; dos aparelhos ultra-ergonômicos aos tecidos antitranspirantes, ou seja, uma tecnologia de ponta voltada para a tentativa de minimizar ao máximo um esforço máximo, que é sempre o esforço mínimo necessário para o objetivo almejado: fazer uma pessoa suar em bicas e levar seus batimentos cardíacos até a beira de uma síncope. Santa Escapulária dos Testes Ergométricos! Conforto e suadeira são coisas incompatíveis na minha singela concepção cartesiana do que seja um esforço físico e do que seja um conforto físico.
A desculpa deles, daqueles incansáveis personal trainers e seus asseclas ― com todos aqueles aparelhinhos fazendo beep, avisando que seus meniscos estão indo pro espaço ou que seu coração está visívelmente protestando por ser confundido com um bate-estacas ―, é que tudo está sob controle. Sob o controle de quem, posso perguntar?
Não existe controle e a própria obsessão, tão atual, por controlar toda a variada gama da existência humana ― negócios, oscilações da bolsa de valores, saúde, doenças, agendas, lazer e trabalho ―, já é, em si, uma coisa incontrolável. Portanto, não confiável.
Não se fiar demais nas previsões, não enfiar os pés pelas mãos, não perder o fio da meada, já é muito dentro do humanamente possível. É confortante saber nossos limites reais porque eles nos dimensionam. Minha cama, sei disso, é meu conforto máximo. Nessa vida e fisicamente falando, claro. Por falar nisso, boa noite.
Suponho que também vou acender um cigarro e olhar da janela a chuva que cai sem nenhum controle sobre a cidade que dorme, à exceção das academias que, como shoppings, não têm dias ou noites, são sempre iguais e as pessoas ensandecidas suam em plena madrugada chuvosa. Seu texto, um primor pela sensibilidade, pela qualidade literária, pela verdade nas entrelinhas, pela mágica. Bons sonhos!
Seu texto chamou a minha atenção para a busca de mais qualidade de vida por pretensos hedonistas mascarados num egoísmo infantil; e, pelo outro lado, o time de mais vida com menos riscos ou a longevidade do tédio. Jogging é a poesia de Skinner (rá, rá) levada a sério pelas cobaias. Estou muito mais conectado na reflexão diante do fim imponderável, estamos vencidos e não há tempo a perder... Algumas práticas adultas incluem um certo sectarismo que nos é característico, coisas de mulher, brincadeiras de criança e por aí vai... Não sobra tempo para associar um tanto de sua própria essência num código que você não criou, em considerações morais pétreas que você consigna, em juízos que nos classificam e castram. Ao homo sapiens no contexto atual restou apenas compreensão e sarcasmo; a tirania do próprio olhar e o temor diante do outro. O arranjo da vida ordinária está para a alegria tal como está o riso para o patético; o disfarce da ordem é o Caos.