Raramente nos aproximaremos de um grupo de pessoas e estas, sejam elas quais forem, estarão discutindo literatura. Ou, se estiverem, dificilmente o livro discutido é recente. A cultura comum, a cultura como assunto de conversa é o cinema ― e olhe lá ―, não a literatura. Digo isso porque 2008 foi o ano em que finalmente pudemos discutir um livro que muitos tinham lido, ou que muitos tinham ouvido falar e sabiam do que se tratava e que era escrito por um escritor, não por uma Bruna Surfistinha. 2008 foi o ano de um livro escrito em 2007: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Só isso já bastaria para que escondêssemos nossas previsões apocalípticas na gaveta à esquerda.
Espécie de relato autobiográfico disfarçado de romance, o livro de Tezza narra a dilacerante relação entre um pai escritor e seu filho, vítima da Síndrome de Down. É um livro que impressiona tanto pela franqueza e coragem da exposição quanto por seu texto. Tezza faz um livro de frases longas e que não deseja comprar o leitor com facilidades. Mereceu a chuva de prêmios que caiu-lhe sobre a cabeça: o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte no ano passado, o Portugal Telecom, o Jabuti de melhor romance, o Prêmio Bravo de Literatura e a primeira edição do recém criado Prêmio São Paulo de Literatura ― o certame que mais pagou a um autor no Brasil: R$ 200 mil.
No terreno das estréias, Pó de parede, de Carol Bensimon, foi o melhor de 2008. Formado de três novelas de boas histórias e esplendidamente escritas, o volume não é o tradicional livro de estréia autobiográfico e íntimo; é antes uma música de câmara elegante, leve e tranquila, que evoca realidades externas com algum desencanto. A voz da autora é incomum, mas a linguagem não é exagerada ou cansativa. Nenhuma das três histórias é esquecível, mas minha preferência vai para "Falta céu", onde, a partir de poucas informações, uma situação bastante complexa é construída. Bensimon deixa lacunas a serem preenchidas pela experiência do leitor e consegue direcionar e surpreender nossa fantasia. É autora para se acompanhar de perto.
No plano internacional, o melhor romance que li foi El común olvido, de Sylvia Molloy. O livro é de 2002! Incompreensível que nunca tenha sido traduzido no Brasil. Narrado na primeira pessoa, inicia-se com a chegada de Daniel ao Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, com as cinzas de sua mãe. Ele emigrara para os Estados Unidos ainda criança, logo após a separação dos pais, acompanhado da mãe. Poucas vezes tinha retornado à Argentina e o pai já morrera há anos. Daniel fala de si, de sua profissão de tradutor, da tese que escreve, mas o foco logo se altera. Este "Em busca da mãe perdida" torna-se uma arrebatadora demonstração dos enganos de nossa memória, levada com virtuosismo pela autora. Cada item que é acrescentado ou retificado em sua memória, cada acontecimento ― a sexualidade da mãe, o acidente de carro, as brigas com o pai, a apresentação da amante da mãe ―, torna impossível o retorno à vida anterior. As retificações e questionamentos são apresentados pela autora com a mesma lentidão e tranqüilidade com que Kafka comprazia-se ― ou parecia comprazer-se ― em mostrar coisas que nos parecem verdadeiros horrores não por si, mas pelo deslocamento a que sua aceitação nos obriga. É importante dizer que Molloy tem de Kafka apenas a característica de ser imperturbável, pois seu humor e elegantes anedotas são tipicamente platinas.
Acho que nunca vi tantos filmes regulares como em 2008. Pouca coisa era agressivamente ruim e quase nada era indiscutivelmente bom. Mas acho que dá para salvar 4,5 filmes. Podemos começar por O Segredo do Grão, de Abdel Kechiche, um filme de visceral realismo que tem como tema a singela inauguração de um restaurante dentro de um barco numa cidade portuária da França. Trata do choque cultural entre a comunidade árabe e a francesa, mas é universal ao descrever detalhadamente conflitos familiares. A câmara móvel de Kechiche é apenas aparentada dos filmes do Dogma 95, pois ela não serve para demonstrar movimento ou despojamento, estando mais a serviço da busca de ângulos originais, muitas vezes aproximando-se dos atores como se quisesse penetrá-los ou acariciá-los.
Outro grande filme foi o romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, Palma de Ouro de 2007. Ele conta a história de duas colegas de quarto obrigadas a uma verdadeira odisséia para que uma delas pudesse realizar um aborto ilegal na Romênia de Ceaucescu. É um filme sem a menor preocupação moral ou religiosa. Descreve como as duas fizeram para livrar-se de um incômodo. Gabita, a grávida, deixa a operacionalização do aborto para Otilia, sua amiga. Gabita parece indiferente enquanto Otilia faz contatos com aborteiros, porteiros ― todos pequenos ditadores cheios de mistérios ― e depois trata de livrar-se do corpo do inquilino da amiga. Estes dois filmes têm algo em comum: ambos têm longas cenas que causam enorme angústia ao espectador.
E sim, os dois filmes dos irmãos Coen foram excelentes. Em No country for old men (Este país não é para velhos em Portugal e um título qualquer no Brasil), a acidez dos Coen cai adequadamente para narrar com frieza uma história amalucada e violenta. Meio western, meio thriller, quase sem trilha sonora e com cenas antológicas, é um grande filme. Já Burn after reading (surpreendentemente Queime depois de ler no Brasil) tem a paranóia americana como alvo. É um filme que conta muita coisa em círculos, não chega a lugar algum e nem deseja, mas nos arranca boas risadas. A cena de George Clooney em pânico por motivos que o espectador sabe serem falsos vai para minha galeria pessoal de momentos inesquecíveis.
Os comentários sobre literatura e cinema de Milton Ribeiro perdem um pouco da consistência quando ele usa a primeira pessoa. Dão a idéia de estarem acima do bem e do mal, como uma verdade indiscutível.
Marcos, saio em defesa do Milton porque também me valho da primeira pessoa em meus textos. Se estamos dando nossa opinião pessoal, que pessoa poderemos utilizar se não a primeira? O Milton em momento algum prega suas opiniões como verdades absolutas, mas sim como suas opiniões, só isso.
Usei a busca do site para encontrar algo sobre "O segredo do grão" e encontrei uma rápida resenha-quase-uma-citação nesse texto. O filme merecia um pouco mais, na minha opinião. Nunca tinha visto a luz do sol ser utilizada de maneira tão explícita. A luz dos postes, de dentro de casa, das lâmpadas fluorescentes. A luz ambiente é a estrela do filme, e seu objetivo é iluminar os diálogos e as situações sem roteiro que vemos na tela. Sem luzes e efeitos especiais, a humanidade dos personagens, da economia, da política, da sociedade salta aos olhos. É preciso sobreviver, mas será preciso fazê-lo sem abrir mão de nossa dignidade, quando ainda há alguma? Talvez seja esse o segredo do grão.