COLUNAS
Terça-feira,
6/11/2001
Liam
Marina Marcondes Machado
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O filme "Liam" (Stephen Frears/Grã-Bretanha, 2000), em cartaz em São
Paulo, se passa durante os anos 30, em Liverpool. O espectador é levado
a conhecer e a se reconhecer no garoto Liam, que aparenta ter lá seus 5
anos, mas pelo que se apreende no roteiro (aulas na escola e sua
primeira comunhão, por exemplo) a personagem tem entre 7 ou 8 anos de
idade. A direção de ator realizada com o garoto (Anthony Borrows) é
excelente; sua personagem tem um problema de fala, uma espécie de
gagueira, e o garoto é extremamente convincente.
O jornal "A Folha de São Paulo" classificou o filme em seu "roteiro"
como "drama romântico" (sic), seguido de duas estrelas do ponto de vista
do crítico; mas, do ponto de vista do espectador, o filme mereceria
quatro estrelas, também segundo a "Folha". Já a resenha do "Estadão"
afirma que o filme deixa a desejar, pois, para o comentador, não haveria
nada de novo em se criar a narrativa cinematográfica através do olhar da
criança, e afirma que não há "densidade" no roteiro. Eu discordo. Penso
que a densidade é grande, e muito comovente, porque vai-se construindo,
lentamente, ao longo da narrativa, culminando no ato anti-social
cometido pelo pai no final do filme, que, por ironia do destino,
machucará sua própria filha.
O cinema que se utiliza da personagem criança consegue nos transportar
para novos-velhos horizontes, e, a meu ver, ganha novos matizes, com
cada produção realizada. É o caso do filme "Liam". Se a Psicologia
infantil, que nos parece estagnada e normatizada em princípios
intelectualistas e "universais", desse mais atenção ao cinema, todos
(pacientes e terapeutas, alunos e professores, pais e filhos...) teriam
a ganhar.
Vamos sendo capturados pelo modo de apreender o mundo de Liam, que
convive com os pais, um irmão já quase adulto e uma irmã com mais ou
menos14 anos de idade, além de freqüentar a escola. O pai, enfrentando
as dificuldades econômicas do pós-guerra, lá pelas tantas perde o
emprego e, depois de um período, cai na tentação ideológica do nazismo,
movimento em ascenção. O filho mais velho é trabalhador braçal, e sua
filha arranja, no decorrer da trama, um trabalho como empregada
doméstica numa família judia e rica, de modo a sobreviverem.
Preparando-a para o primeiro dia de trabalho, a mãe lhe diz: "Não vá
lavar a latrina! Filha minha não lava latrina de outra família!" - coisa
que, obviamente, acontecerá praticamente na cena seguinte. Sua
adolescência também é invadida e violada por um romance adúltero que ela
deve acompanhar e proteger, entre sua patroa e um amigo.
Mas não é o foco em conflitos sociais, trabalhistas ou políticos que nos
concentra; inicialmente focamos nossa atenção, e afeto, apenas em Liam,
mas, aos poucos, o que nos mobiliza de fato são os modos de relação
entre as pessoas - adulto-criança, patrão-empregado, irmão irmã,
católico-protestante... E, especialmente, a relação entre
catequizador-catequizado.
Para espectadores adultos que tiveram formação católica, do tipo
"convencional" ou praticante - isto é, com educação religiosa e moral
voltada para a culpabilidade do confessionário - as cenas escolares de
descrições do que é o inferno, e do que acontece ao pecador, são
impactantes. Estava no cinema acompanhada por um amigo judeu que, depois
do filme, perguntou-nos jocosamente e inúmeras vezes se realmente a
formação religiosa das crianças era feita daquele modo... E penso que é
de maneira metalingüística, pelo viés da culpabilidade, que o enredo se
constrói - e nos supreende, inclusive, com o doloroso desdobramento
final.
A densidade da experiência de assistir "Liam" está na somatória vivida
pelo espectador ao se ocupar com todos os personagens, que o faz ir e
vir, oscilando entre todos os pontos de vista - e, ao final, como sair
do cinema?
Fazer com que o espectador se sinta próximo de sua infância e também
atento às infâncias que estão sendo vividas no mundo contemporâneo,
fora da tela e da sala de cinema, é um dos desdobramentos importantes
para o espectador deste filme de Stephen Frears, cineasta de "Os
Imorais", "Ligações Perigosas" e outros. As mulheres provavelmente
sairão enxugando as lágrimas e colocando seus óculos escuros, se os
possuirem - e estiverem à mão. Os homens talvez pensarão,
catarticamente: "Que bom que não é aqui e agora!..." - sem se dar conta
de que, o que há de mais específico e puramente pessoal, ou até mesmo
infantil no filme "Liam", é o que há de mais geral e tocante: a
lembrança do sentimento de infância.
Marina Marcondes Machado
São Paulo,
6/11/2001
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