"Las putas en el poder porque con los hijos no se fué bien!" (Pichação em muro argentino)
Se tem uma coisa que eu gosto de observar, analisar e catalogar é o xingamento nas mais diversas línguas. Xingamentos, palavrões e gírias costumam falar muito sobre os hábitos de um povo. No Québec, por exemplo, termos próprios ao catolicismo são usados para xingar. Proferir um "tabernáculo" ou uma "hóstia", quando se bate o dedinho do pé na quina da parede, pode ser mais escandaloso do que profanar o túmulo da mãe. Já o Brasil segue o modelo da maioria dos países ocidentais, em que as palavras mais chulas são aquelas ligadas à genitália masculina e feminina e os xingamentos costumam designar toda a fauna. Até aí, nada de novo. O problema é quando a gente começa a usar o idioma para propagar nossas injustiças sociais sem perceber.
De todas as disciplinas da minha graduação, acho que a mais entediante foi Morfologia. Talvez pelo fato de não me apetecer muito o exercício de dissecar sinais gráficos e analisar justaposições, prefixos e sufixos. Dos quatro meses de aula, só fui me interessar pelo último, quando começamos a listar os sufixos e conjugá-los com o sentido produzido no caso de criações de palavras. Pode parecer chato, mas acaba sendo engraçado perceber, por exemplo, que o "eiro", tão usado para designar profissões, também possa ser um poderoso ingrediente pejorativo. Desse modo, "padeiro", "pedreiro" e "confeiteiro" não se confundem com "fofoqueiro", "baderneiro" ou "mensaleiro".
Ainda assim, no Brasil, as profissões menos valorizadas costumam cair na voz do povo quando o assunto é xingamento. "Palhaço" e "quenga" ― ou "puta" e suas variantes ― ganharam uma conotação tão pesada e vulgar que ofendem qualquer um e reduzem o profissional do riso e a do sexo a uma categoria mais do que desprezível. Não é irônico que uma sociedade conhecida mundialmente pelo riso e pela sexualidade seja capaz de expressar de forma tão agressiva a rejeição de seus próprios valores?
A situação parece ser pior quanto mais provinciana é a cidade. Belo Horizonte se modificou bastante nos últimos quinze anos, mas ainda não temos o hábito de ver artistas de rua para todo lado, como nos metrôs de Paris ou do Québec, ou mesmo como as intervenções culturais tão comuns em São Paulo. Ainda me lembro de um dos primeiros Festivais Internacionais de Teatro ― FIT. Havia várias atrações de teatro de rua e, pela primeira vez, apresentações desse tipo davam uma sacudida no cotidiano da capital mineira. As pessoas paravam para ver e ouvir apresentações circenses na Praça Sete e, embora eu quisesse descer do ônibus para acompanhar, estava atrasada para um compromisso. Então, fiz como os outros passageiros: pus a cabeça para fora da janela e tentei assistir a um pedacinho do número de um mágico-palhaço, enquanto o sinal estava fechado.
Mais do que pela qualidade da atração, eu me encantava com o fato de finalmente Belo Horizonte abrir as portas para esse tipo de coisa. Eu já começava a me entregar a devaneios culturais progressistas quando um transeunte estúpido passou pela rodinha de gente, sem parar, e gritou "Ô, palhaço!" A minha indignação inflou instantaneamente, como as nadadeiras de um peixe beta. Mas o sinal abriu e eu acabei levando comigo todas as dores do mágico-palhaço que talvez nem tenha ouvido o paspalhão.
"Injustiça" foi a palavra que me veio à mente naquela hora e ainda bate cá dentro. Talvez por identificação com o palhaço-mágico; e aí eu tenho que fazer uma confissão para explicar isso: meu primeiro diploma na vida foi de palhaço. É isso mesmo. Segundo a antiga cadeia de lojas Sears, que funcionou na Rua da Bahia, em Belo Horizonte ― lá pelos idos de mil-oitocentos-e-refrigerante-com-rolha ― eu sou uma palhaça diplomada. A loja sediou, certa vez, um curso de palhaço para crianças e, como eu andava muito deprimida, minha mãe achou que aquilo poderia me deixar mais alegre; ora veja... O curso durou uma semana, eu acho. Minha irmã me levava e ficava lá, me esperando, sentada.
Não, eu não me tornei uma pessoa mais alegre por causa do curso, mas ao menos refleti bastante sobre o esforço descomunal e a tarefa árdua do profissional do riso. Postar-se em frente a uma multidão de infelizes com o encargo de fazer essa gente rir é um massacre para um ego frágil. Principalmente quando o objetivo não é alcançado e as críticas e o julgamento vêm sem piedade. Acho que meu respeito e a admiração por palhaços começou ali.
Mais tarde, comecei a ler sobre o tema e fiquei ainda mais agradecida aos palhaços que povoam o mundo. Toda civilização tem o seu palhaço. Eles fazem parte da estrutura social de todos os povos, independentemente do local e do período histórico. São bobos da corte, clowns, heyokas, pierrots, arlequins, Augustos e palhaços brancos e outros tantos com a mesma função: conscientizar pelo riso. Mais do que fazer rir, eles vestem a carapuça do ridículo e se põem no lugar em que ninguém quer ficar. Assim, espelham para os outros tudo aquilo que, normalmente, não queremos ver. Eles aliviam as pressões diárias ao nos mostrar que levar tudo a sério demais pode ser uma atitude ainda mais ridícula e que rir é mesmo um bom e santo remédio em muitas situações.
Enquanto o palhaço põe a própria cabeça na lâmina da guilhotina, costumamos a tratar por "senhor", "doutor" e "excelência", muita gente que não merece o menor respeito. Todo dia assistimos a casos de corrupção e abuso de poder. Em janeiro, então, quando a sociedade está mais preocupada com o carnaval do que com o fim do mundo, é um tal de vereadores, deputados e senadores aumentarem o próprio salário na surdina e aprovarem ajuda de custo ― como se precisassem delas ― que deixa em pé os cabelos de qualquer palhaço que os tenha. Ainda assim, nunca vi ninguém xingar na rua "ô, deputado corrupto!" ou "senadorzinho interesseiro de uma figa!". Nunca ouvi ninguém passar e gritar "Deixa de ser vereador, cara! Vai trabalhar!".
A inversão de valores que atinge o idioma reflete aquilo que fazemos no dia a dia. Por exemplo, depois de todas as investigações e manchetes de jornal, o ex-diretor da ABIN, Paulo Lacerda, afinal, foi demitido, promovido ou estrategicamente enviado ao ostracismo? Como o banqueiro Daniel Dantas, mesmo com todas as provas de lavagem de dinheiro escancarada em seus extratos bancários, pode ser considerado vítima de uma suposta armação? E por que a mídia insiste em fazer ouvidos moucos às investigações e bater na mesma tecla da transcrição de uma fita nunca vista e um grampo nunca provado contra um ministro do STF?
Se as coisas no Brasil fossem questionadas e os fatos viessem às claras, talvez fôssemos mais coerentes quanto ao uso da língua. Quem sabe não ouviríamos um "mensaleirinho fajuto", vez por outra. Ou um "ministro babaca". Ou ainda um "vá ser banqueiro bandido lá no banco que o pariu".
A gente lê jornal, tenta acompanhar o que acontece e percebe que palhaços e putas são os seres mais nobres em toda essa engrenagem social. Quem sabe da próxima vez que ouvir alguém gritar "ô, palhaço", eu consiga revidar a tempo, com um "muito obrigado!".
Ô Pilar, que gostoso esse convite para "pensar a língua"! Quanta coisa aprendemos sobre nós mesmos e a sociedade em que vivemos (e cujas regras muitas vezes reproduzimos...). Parabéns!
Você citou o provincianismo de Belo Horizonte, a cidade ainda parece imersa numa autossuficiência e uma sensação de ser a capital cultural do país. Só falta reabrir o aerporto de La Pampouille. É neste clima que convive uma certa riqueza cultural com uma falta de preparo, que resultam em algo que vi lá anos atrás: uma peça baseada em Fassbinder virar comédia, só porque era estrelada por Fernanda Montenegro e repleta de palavrões.