Foi em 2002-2003. Nós achávamos que os comentários iriam acabar com o site. Eu tentava passar um fim de semana normal, mas comentários ofensivos invadiam barbaramente as páginas e, na segunda-feira, a discussão já havia se alastrado de tal maneira que perdíamos horas apagando sem querer prejudicar as verdadeiras conversas. Quando um comentador inconveniente era denunciado pela comunidade estabelecida pelo fórum, adotava logo um pseudônimo e voltava à carga mais intensamente. Quando era revelado pelo seu endereço IP, mudava de computador e, agora, nada conseguiria detê-lo...
Se expulsávamos um comentador inconveniente (e todos os seus nicknames), éramos logo acusados de "censura"; se não, éramos acusados de favorecer à doutrina política identificada com o sujeito. Não importava o assunto, havíamos entrado numa briga de torcidas sem perceber, e o site se tornara o campo de batalha deles. Os textos mais polêmicos se convertiam em páginas e mais páginas de debates estéreis (ainda não havia a limitação para o número de caracteres). Comentadores adotando pseudônimos começavam a criar blogs independentes (a fim de parecer mais críveis). E comentadores-de-comentadores resolviam, igualmente, surgir. Colaboradores nos acusavam de favorecer esse ou aquele texto... A situação beirava o insustentável.
Eu não sabia, mas estávamos no meio de um momento histórico da internet brasileira: quando as ferramentas de autopublicação ainda não eram tão populares e muitas pessoas achavam que o único jeito de aparecer na Web era comentando um texto. O Blogger de Evan Williams estava para ser vendido ao Google e, no Brasil, a versão ".com.br" faria parte do lançamento do portal Globo.com — que, claro, ameaçava dominar a internet. A blogosfera tupiniquim já existia, cronologicamente falando, mas os blogs eram malvistos, as ferramentas não eram user friendly (para quem não sabia inglês) e entre lançar um endereço do zero e entrar numa discussão em que a audiência já estava garantida, a maioria costumava preferir virar "comentarista" alheio.
Os fóruns, naturalmente, já existiam, mas nenhum autor conhecido entrava neles (não com o nome verdadeiro...). O Orkut seria inaugurado muitos meses depois e a popularização de suas comunidades, no Brasil, ainda estava a alguns anos de distância. Se a pessoa procurava por emoções fortes, também não arriscaria uma homepage, porque suas páginas eram em HTML e o máximo que o visitante poderia fazer era enviar um e-mail (ou "assinar" o soporífero livro de visitas). Quando inauguramos os comentários aqui em 2001-2002, queríamos idealmente promover a "discussão de idéias" — mas estávamos, no mais da vezes, "amplificando a voz dos idiotas" (ao contrário do que o Millôr sugere fazer)...
No mesmo dia do "fechamento" dos comentários, a sensação foi de que um tsunami havia passado (tudo bem que essa palavra seria incorporada só depois). Os comentários diminuíram, óbvio, mas a integridade do site estava preservada. A audiência seguiu crescendo ao longo dos anos — de qualquer maneira —, e eu nunca me arrependi de ter expulsado os chefes de torcida organizada das nossas páginas. Se eu pudesse me arrepender de alguma coisa (em retrospecto), seria de não haver criado uma ferramenta brasileira de autopublicação. Porque, de certa forma, eu criei, mas ela não estava disponível fora do Digestivo. Poderia ter se convertido num problema de hospedagem mais adiante — num tempo em que hospedar era mais oneroso —, mas havia a chance de vender com um bom lucro (mais todos os spams e trolls dentro)...
Meu ponto, contudo, é que as ferramentas de autopublicação explodiram com a chamada Web 2.0, a partir de 2005, e suas subsequentes ondas de "user-generated content". Já os comentários... quase se extinguiram. Eu poderia decretar, aqui, a "morte dos comentários", como alguns já decretaram a "morte dos blogs" e até a "morte dos trackbacks" (matar, nesse sentido, pode ser um esporte bem divertido). Mas os comentários subsistem, mesmo que na UTI da Web. Eu ainda poderia — a título de curiosidade (meus professores é que gostavam de "a título de") — tirar a média dos comentários por texto no Digestivo, ao longo dos anos, e concluir que a queda é uma tendência irrefreável. (Mesmo considerando-se que os textos, no site, sempre aumentaram em número e que, da Web 2.0 pra cá, vamos, deliberadamente, borrando a linha que separa um comentador de um colaborador...)
Enfim, o que eu quero dizer é que os comentários viraram "outra coisa", porque os comentadores deixaram de ser audiência para se tornar, eles mesmos, protagonistas de suas histórias. Na internet, esse discurso de "passividade da velha mídia" versus "interatividade da nova mídia" é clichê, eu sei (e você não vai lê-lo, aqui, mais uma vez)... A questão é que, em vez de comentar os textos dos outros, os leitores foram abrir seus próprios blogs (o Inagaki e o Edney conseguiram dignificar a atividade), foram montar perfis no Orkut (e espalhar scraps como a abelha da polinização) e foram, mais recentemente, bafejar no Twitter (quase o haicai dos blogs de antigamente)... Ninguém mais quer ser mero "espectador" quando pode ser a estrela de seu próprio show, quando pode ser famoso para (no mínimo) quinze pessoas, quando pode receber um tweet (ou um direct) de uma celebridade eletrônica.
Uma outra teoria é a de que todo mundo, subitamente, virou publisher e audiência — para todo mundo (também) — e, com a "horizontalidade" da internet, o feedback deixa de ser apenas "comentário", para assumir novas e inusitadas formas. Quem publica na internet, portanto, deve se dar por satisfeito se receber um mero link (antigo), uma tinyurl no Twitter (novíssima), uma "declaração de guerra" numa comunidade do Orkut ou, mesmo, um esculacho num blog de algum internauta arrivista. Ninguém mais vai perder seu tempo, e se desdobrar em comentários longos e pormenorizados (isso existe?), se puder, imediatamente, repassar para os amigos, "favoritar" (e esquecer num escaninho) ou, mesmo, copiar, colar e "monetizar" em cima.
Essa corrente diz que os comentários (e os comentaristas) perderam a inocência, mas eu prefiro acreditar que eliminamos quase todo o ruído de outrora para ouvir melhor agora (em termos de comentários, pelo menos). Eu, por exemplo, comento muito mais hoje. (Fora do Digestivo, quero dizer.) Já discuti muito e com muito comentador vagabundo, mas atualmente prefiro "agregar" informação do que convencer um missivista irredutível. Quase não respondo a e-mails sobre textos meus — isso é verdade —, mas, em compensação, retribuo visitando a URL do sujeito. A mesma "horizontalidade" me diz que ele pode merecer uma citação minha no Blog do Digestivo; ou que — num dia de sorte — podemos encontrar um novo colaborador (e o ciclo se encerra, mais uma vez).
Ocorre que se os comentários estiverem, mesmo, à beira da falência, devemos começar a nos perguntar se poderemos viver sem eles...
Pô, Julio, vou ser a primeira a comentar? (rsrsrs) Vc tem razão que a depuração dos comentários, ocasionada pelas possibilidades das pessoas irem "detonar" em outra ferramenta, pode tornar as conversas num blog menos desgastantes. Mas a pergunta é quem quer conversar - por que quem não comenta, não alimenta o diálogo? E como em geral temos muitíssimos mais pageviews que comentários, é preciso reconhecer que são inúmeros os leitores que ainda não se apropriaram da cultura de dialogar na Rede, o que é uma pena. Quem conversa e usa as diversas ferramentas está acompanhando uma coisa interessante: a conversa distribuída. Nesse momento é no blog, amanhã pode continuar num comentário do RSS ou na lista de discussão. Agora, como não perder o track dessa conversa? Esse é um risco... abços
Olá, Julio. Eu, como comentadora antiga do DC, tenho notado a redução de comentários mais detalhados neste site. Talvez seja também pelo número excessivo de novos textos - a digestão se torna mais difícil. Mas, de qualquer modo, o DC é um sucesso e a cada dia novas pessoas integram o grupo de comentaristas, embora as discussões não sejam tão acirradas como antes. Por enquanto, comento um texto aqui, outro acolá, mas não dá para ler todos. Em tempo, meus parabéns pelo seu níver ontem. Bjo de sua fiel e jurássica leitora.
Oi, Julio! Nunca pus a ferramenta de comentários, porque é cada bobagem que a gente até se desanima (como aqueles do BigBrotherBrasil). Como não faço crônicas, nem artigos sobre assuntos atuais, e apenas posto agenda semanal, contos, críticas de livros/filmes e minhas poesias, acabo preferindo que a pessoa interessada em dialogar entre em contato diretamente comigo...
Prezado Julio! Em aula, costumo "impor" algumas regras de convivência, entre elas, o celular colocado no silencioso, afinal, parece que todos usam celular, mas poucos sabem usá-lo. Talvez, este raciocínio possa valer para os comentários, expressões do tipo "muito massa", "urra, legal" não satisfazem, é preciso ter conteudo próprio, idéias próprias (e, portanto, leituras e uma mínima noção do mundo circundante) para postar comentários "inteligentes". Ouso pensar que nos faltam pessoas inteligentes, carecemos de indivíduos capazes de se posicionarem, afinal, no país do "sifu" e do presidente que afirma, categoricamente, que não lê, o que se pode esperar???
É visível que os comentaristas diminuiram, que o número de blogs explodiu e que os egos andam cada vez mais aflorados, porém há outras questões que contribuem para a diminuição dos comentários.
Dentro dos blogs a regra "quem comenta muito, tem mais comentários" é real. Mas para isso é preciso tempo e não dispomos tanto dele. Em Brasília, imagino que a grande maioria dos blogueiros trabalhe em algum órgão público. Eu trabalho e vários blogs e endereços são bloqueados. Fazia comentários naqueles minutos de folga que tiramos durante o dia durante o trabalho. O fenômero dos feeds ajuda bastante. Uso o Google Reader e por ele não tenho como comentar, então às vezes não comento porque o site está bloqueado no trabalho ou a página demorou para abrir. E ainda tem o que a Adriana disse, o volume de textos aumentou muito. E os bolhas, trolls e péssimos comentadores continuam por aí, sem nada melhor para fazer.
Mas gosto de tecer comentários em blogs, o diálogo proporcionado ainda é o melhor...
Diante de textos como este confirmo minha teoria que texto se justifica pelo leitor. Confesso não compreender a resistência de alguns a interferência/licença de alguns leitores quando comentam textos postados. Vejo com naturalidade a participação, qualificada ou não, dos leitores na relação com o texto lido. Se a mídia utilizada permite uma relação próxima, tanto melhor; se a proximidade incomoda, crie filtros ou obstrua os canais de interação que aproximam os leitores dos produtores de texto. Quanto à qualidade dos comentários postados, isto é processo; se o texto apresenta qualidade e coerência, além de propor um desafio ao leitor, acredito que receba comentários qualificados de leitores idem. Minha visão atual é de muitos textos fracos em forma e conteúdo, carentes de coesão e incoerências buscando disciplinar leitores enquanto mascaram uma certa pobreza no trato com a linguagem. Senhores escritores, não discutam vossos textos: a culpa é do leitor, aqui tratado por comentador.
Opa, Julio! Os bons comentaristas têm sumido, também, porque, na maior parte do blogues, os comentários não são conversas (não há feedback) são apenas enfeites! A maior parte, diria a esmagadora parte dos blogues, ainda está deslumbrada com o poder de escrever, mas não descobriu o poder de conversar!
Olá, Julio: quando li a chamada deste texto no Digestivo Cultural, pensei em comentar. Não fiz isto. Hoje resolvi escrever como descobri o DC e revejo o texto. Está, então, em boa hora, certo?
Concordo com o Sergio Lima: Na maioria dos blogs, não existe conversa e nem resposta (de seu comentário). Fica então muito sem graça comentar. Sabe como é? Falando para as paredes...