Muito já se escreveu e foi dito, se escreverá e se dirá sobre a Crise Econômica Mundial, que parece realmente digna do banalizado termo. Queda nas bolsas, inadimplência, demissões, retração. Obama, de certa forma, já é um produto da crise, tanto sua eleição quanto a enorme expectativa gerada em torno dele. Assim como o desprestígio do antes queridinho Sarkozy na Europa, a confusão das eleições israelenses, a aceleração do nosso PAC. Até a demissão do Felipão pelo Chelsea tem alguma coisa a ver com a crise... Mas permitam-me esquecer, neste fórum de debates culturais, dos números, das bolsas que caem ou sobem, dos empregos perdidos e das empresas que se aproveitam da onda para demitir, enxugar. Quero me concentrar no processo criativo, na criação em tempos de crise.
Quantos contos não nasceram de uma perda?
Quantas músicas não surgiram de uma traição?
Quantos tratados não foram escritos por raiva, vingança?
Henry David Thoreau, o fundador do anarquismo, teria escrito A desobediência civil depois de ser preso por sonegação de impostos. Machado de Assis, o gênio brasileiro, escreveu seu melhor conto, O Alienista, e seu melhor romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas, num período de grave debilidade física. Vinicius de Moraes, o poeta do "eterno enquanto dure", casou e descasou diversas vezes para viver (ou para compor?) algumas das mais belas canções da nossa música. E se assim o é com os gênios, que dirá conosco, os mortais.
Caio Fernando Abreu já dizia que escrever é vomitar, vomitar aquilo que há de mais oculto em nosso interior, vomitar fantasmas, medos, iras. Clarice Lispector, em sua derradeira e emocionante entrevista, conta que quando não está escrevendo, está morta, vazia. Porque o ato da criação é, em geral, muito particular, muito inspiração, sentimento, ainda que cada vez mais se exija técnica mesmo dos não-gênios, como nós. Um bom texto, uma boa música, não é apenas uma construção tecnicamente perfeita, é também aquela pitada da nossa existência que compartilhamos, que deixamos naquela história, naquele poema, naquela canção. É a dor que o poeta sente, ou não sente, como diria Pessoa, que dá alma à criação, que a diferencia de uma tese de doutorado, de um processo criminal, de uma notícia de jornal. Criar é se expor, é transbordar-se, e nada melhor que um momento de crise para criar.
Porque a crise, para os jornais, é a bolsa que cai, a economia que enfraquece, o preço do filé que diminui pela menor procura, o preço do petróleo que cai porque menos gente poderá comprar carro, os milhares de empregos perdidos e a frase mal dita pelo presidente. Mas no dia a dia a crise é uma criança começando o ano letivo em escola pública porque faltou dinheiro para a particular, a esposa em vias de pedir o divórcio para o marido que agora passa as tardes em casa, a vovó que fez um empréstimo consignado para ajudar o filho na prestação do carro e agora não sabe como pagar o remédio que subiu de novo. Crise gera dor. E inegavelmente a dor é uma das mais frutíferas musas inspiradoras.
Evidentemente não se está aqui propondo que uma pessoa com dificuldades econômicas, porque a crise tão anunciada é eminentemente econômica, torne-se menos feliz. Nada disso. As realidades individuais são múltiplas e cada qual terá uma reação às dificuldades, muitos inclusive encontrando oportunidades em meio a crise que os deixarão ricos (e à mercê da próxima crise), outros cientes de que crise é momento de aprendizado. Mas não podemos negar que o planeta como um todo, se fosse o planeta um ser, estaria agora mais triste, abatido, cansado, deprimido. Assim como a criança, a esposa ou a senhora questionam dificuldades que veem diante de si, nosso planeta agora questiona suas escolhas, seus líderes, seus valores.
Se serve de consolo, assim como é no momento de crise que o artista faz sua melhor obra, é em períodos de crise que a sociedade produz suas melhores narrativas. Os doutos tentam provar isso nos fazendo lembrar que o melhor romance do século XIX é o francês (país que enfrentara constantes revoluções), ou o russo (país com graves dificuldades econômicas e sociais), e do século XX, o latino-americano (continente em busca de identidade e alguma autonomia). Sem essa pretensão universalista, vou buscar meus exemplos aqui na estante, e três belos romances caem nas minhas mãos como testemunhos de momentos de crise, crise social canalizada pelas mãos do artista.
O Vermelho e o Negro, de Stendhal, escrito em 1830, representa na ambição e nos amores de Julien Sorel toda a tensão de uma sociedade dividida, desigual e tensa, que custara tantas coroas e cabeças, mandatos e vidas no coração da Europa. Sob este pano de fundo político-social, entretanto, Stendhal constrói uma das narrativas mais interessantes do romance realista, abrindo caminho, de certa forma, para o grande Baudellaire (inevitável lembrar, aqui, do poema em prosa "Os olhos dos pobres") e para a obra-prima que Flaubert lançaria dezoito anos mais tarde, Madame Bovary.
Saga, de Erico Verissimo, é um romance publicado em 1940, abertamente marcado pela Guerra Civil Espanhola e que de certa forma antecipa a tragédia que seria a Segunda Grande Guerra. Mesclando cenas de guerra com cenas do cotidiano porto-alegrense, Erico abre caminho para o que seria o mais antológico romance do Rio Grande do Sul, O Tempo e o Vento, uma reconstituição histórica que também serve de reflexão sobre os acontecimentos políticos e sociais do século XX.
Mais recente e de uma sensibilidade única, Extremamente alto & Incrivelmente perto, do nova-iorquino Jonathan Safran Foer, é outro romance que de uma tragédia social, de uma verdadeira crise sem precedentes, tira uma história particular e universal. No livro, o menino Oskar perde o pai tragicamente, no atentatado de 11 de Setembro, e acha no bolso de um casaco do pai uma chave, iniciando uma busca monumental pela fechadura que aquela chave abriria. Mais do que a busca pela fechadura, aos poucos percebemos que a busca de Oskar é por novo sentido na vida, num tempo de perdas e violências. Não apenas para Oskar.
Por estas e por outras é que eu talvez prefira ler sobre a crise na literatura, no cinema, na música, e não necessariamente nos jornais. O mundo não vai acabar, as bolsas, as cidades e os países não vão quebrar, as empresas talvez fechem, mas outras vão abrir e a roda vai continuar girando. Mas com a dor, ah, com a dor não se conseguirá mesmo acabar. Haja a riqueza que houver. E é para amenizar a dor, seja ela fruto de uma crise mundial ou particular, que a arte continuará existindo.
Como notavelmente já afirmara Walter Benjamin (em 1933!), a humanidade, de uma forma bárbara, abandonou as peças do patrimônio cultural pela moeda míúda do "atual". Quiçá, Marcelo, diante da crise econômica, a humanidade se prepara para sobreviver à cultura.
Abraços do Sílvio.
Campinas, é verão de 2009.
Acho que é por aí, sim, que muita coisa legal acontece... sou um pouco mais velha do que você, convivi - sendo mais jovem e menos engajada - com as energias de criação de incríveis artistas nos longos anos de ditadura no Brasil e aprendi muito. "Pasquim", Henfil, Millôr, letras e melodias, textos e espetáculos teatrais, Ferreira Gullar, uma overdose: contribuição inestimável, amigo ;-)