Só depois que o bloco passa percebo as cores tristes dos confetes: verde musgo, amarelo ocre, lilás opaco. Eles ficam entranhados entre as pedras portuguesas, até que a próxima chuva de verão os leve ― provavelmente para algum bueiro. O forte odor de urina completaria o cenário de desolação de uma quarta-feira de cinzas, não fosse o fato de o carnaval estar apenas começando. Outro bloco já já vai passar. Melhor deixar de ser ranzinza, esquecer que na véspera fiquei presa no congestionamento, atrás de um carro de som, e festejar a volta do carnaval de rua ao Rio de Janeiro.
Não há dúvida de que a festa é hoje exemplo de evento popular repleto de criatividade e espontaneidade, daqueles que a gente ainda pode chamar de "autêntico". A música que vai bombar, entre os foliões, não será a "de trabalho", escolhida pela cantora do momento e sua gravadora. As fantasias não seguirão o enredo definido pelo patrocinador da escola de samba. As ideias sugiram das mesas dos botecos cariocas, entre rodadas de chope: uma ala de marmanjos vestidos de Dilma Rousseff, uma alegoria de papelão satirizando a eleição de Sarney para a presidência do Senado, um samba que rima Obama com Brahma.
Sim, pode ser que por trás da rima exista alguma intenção de buscar patrocínio da cervejaria. Mas esqueça os acordos tradicionais que acontecem nesses casos. Nada garante que a sátira não esteja presente, para o bem ou para o mal da marca de cerveja. Nos tempos em que ainda não pertencia a uma multinacional (AmBev, controlada pela belga InBev), a Brahma costumava ser fornecedora dos poucos blocos do Rio. Reza a lenda que, no carnaval em que a empresa decidiu suspender o "apoio", deparou-se com uma enorme faixa no meio da multidão: "Brahma dá dor de cabeça". No ano seguinte, teria voltado às boas com os organizadores dos blocos. Mesmo assim, a fama em torno do tal efeito colateral perseguiu a cerveja por alguns bons carnavais, como aquelas marchinhas do programa do Chacrinha, que a gente nunca mais esquece.
Os sambas e marchinhas dos blocos revelam todo ano centenas de compositores no Rio (por tradição, todos os presentes na mesa do bar tornam-se co-autores). Mas eles não ficarão famosos, e nem mesmo almejam algo além da boa reputação de boêmio, em plena forma carnavalesca e etílica. É ali, nas últimas rodadas de chope, que surgem também as dissidências ou os filhotes de blocos já consagrados. Às vezes tenho a impressão de que a ideia de uma nova agremiação vinga apenas porque alguém bolou um nome impagável. É preciso montar o bloco, rápido, para fazer jus ao nome irreverente. Se fossem blogueiros, saíam por aí registrando domínios.
O desafio para inventar um bom nome de bloco não é pequeno. A volta do carnaval de rua ao Rio começou, na década de 80 ― no contexto da abertura política e da campanha das Diretas Já ―, com duas agremiações que até hoje são referência na cidade: "Simpatia é quase amor" e "Suvaco do Cristo" (que desfila no Jardim Botânico, precisamente nas axilas do cartão postal carioca). Diante das duas denominações, simplesmente geniais, eu ficaria calada, e não sugeriria nome algum para um bloco novo, mesmo na enésima rodada. Mas não é que os foliões, a cada ano, conseguem se superar e chegar perto?
Há os blocos que evocam em seus nomes a nostalgia e o lirismo o carnaval ingênuo, como "Volta Alice", "Céu na terra", "Meu bem, volto já", "Gigantes da lira" (infantil). Mas o carioca é bom mesmo é na malícia. Nessa categoria, difícil é escolher os melhores: "Se me der, eu como", "Vem ni mim que sou facinha", "Que merda é essa?", "Cutucano atrás", "Empurra que pega", "Chupa mas não baba", "Rola preguiçosa", "Concentra mas não sai", "Quem não guenta bebe água", "Espreme que sai". No quesito "especialização", a criatividade vai ainda mais longe. O pessoal do cinema, por exemplo, se reúne no "Me beija que eu sou cineasta" e os jornalistas já seguiram (no pré-carnaval) o "Imprensa que eu gamo". Os alpinistas do bairro da Urca batizaram sua agremiação de nada menos que "Só o cume interessa". Com chave de ouro, na quarta-feira de cinzas, sai da frente do cemitério de São João Batista o "Meu bem, não volto mais" (sutil homenagem ao "Meu bem, volto já").
Com estandartes como esses no caminho, é impossível não ter paciência diante dos (muitos) transtornos causados pelo (cada vez mais) efervescente carnaval de rua da cidade maravilhosa. Saindo do cinema, ainda sob o impacto do olhar autoritário de Meryl Streep, lembro-me de imbuir-me da condescendência que faltava à freira de "Dúvida", para encarar o trajeto de volta para casa. Os confetes grudados na calçada mostram que o bloco e a chuva já passaram, mas é preciso calcular os próximos passos, para não ser atropelada pelo turbilhão carnavalesco. No caminho, acho graça de dois rapazes, de quase dois metros de altura, enfiados em bóias amarelas de patinho, andando calmamente pela rua agora deserta. É o suficiente para meu marido fazer a expressão "nem pense nisso". Ou seja, nada de capitular, diante da primeira promessa de folia pagã. Pelo menos nesse carnaval, vamos manter o plano de colocar o cinema em dia e assistir a entrega do Oscar, em vez do desfile das escolas de samba. Já no ano que vem, quem sabe...
O bate-papo carioca é incrivelmente relaxante (eu acho). Li o texto e me senti conversando em algum quiosque, mesmo a autora tendo "me levado" à sala pra ver o Oscar. (Este texto me lembrou "Carnaval no fogo", do Ruy Castro.)
Penso que o Oscar é uma festinha americana. Gramado, que é do Brasil, a gente já nem fala mais. Quanto à folia, pouco a pouco vai virando uma festinha de Axé qualquer. Estamos conseguindo matar o nosso carnaval. A cidade que resido tem quatrocentos e cinquenta mil habitantes e, este ano, o carnaval popular resume-se a um bailinho contratado pela prefeitura. Conseguimos acabar com o Carnaval que mantinha inclusive uma verba oficial da secretaria do Turismo.