Esta minha fase autoajuda está fogo. Não sei se é influência dos manuais que vejo nas livrarias ou se são os papos com os amigos. Cuidar do coração é tarefa para Hércules. Acho que ninguém sabe fazer isso direito. Nem os melhores cardiologistas do planeta são capazes de explicar o que se passa nesse emaranhado de músculos calibrados por sangue e cérebro. Substâncias químicas, impulsos elétricos, ar fresco, ternura. Tudo se mescla para fazer bater esta geringonça. Um dia, ela para. Antes dela, ao menos, o último suspiro, que pode ter sido por amor, quem sabe? Naquele último segundo, a lembrança loura da Cida, o jeito alegre do Alexandre, as pintinhas no nariz da Maria, a mãozinha de cirurgião do Roberto, as unhas fatais da Cristina, o olhar manso do Eduardo, a voz de diva da Carmen, o charme do Gilberto. Sei lá o que se passa e não acredito que alguém possa mesmo saber. De qualquer forma, não faltam fontes de aconselhamentos aos casais.
Trabalhei durante alguns anos em uma editora e tínhamos lá um excelente acervo de revistas antigas. Apesar do cheiro de papel velho e mofo que deixavam na sala, aquelas revistas eram nossa diversão nas horas vagas, nas pesquisas iconográficas e nos momentos de vagabundagem. A maior coleção era a de O Cruzeiro, especialmente os números de 1935. Copiei e guardei muitas matérias dessa época e tiro proveito delas até hoje.
Nesta onda de autoajuda sentimental, releio quase diariamente os "conselhos ao esposo" e os "conselhos á esposa" (com a grafia da época, para avacalhar mais nossa adaptação ao novo acordo ortográfico) contidos no número de 11 de maio de 1935, em matéria intitulada "A difficil arte do Matrimonio", assinada como "chronica", de Luiz Raymundo, em página dupla e ilustrada. Nesse texto, o cronista (ou o narrador?) dá setenta conselhos à "jovem esposa" (note-se que à moça) para que ela aumente as chances de "felicidade matrimonial". Não é à-toa que, tanto o dicionário Aurélio quanto o Houaiss mencionam o "matri" que constitui este velho sinônimo de casamento. O peso fica sempre, ao menos nos conselhos de Raymundo, do lado da mulher.
Diz o cronista que os aconselhamentos que se seguem não são "theoria". São retirados das "amargas lições da vida quotidiana", sabe-se lá com que esposa. A "chronica" começa com intertítulos que valem como máximas. A primeira logo despacha que "o marido vê o vestido de sua esposa, e, não, a alma". Assim fico mais tranquila. Se minha alma for horrorosa, visto nela uma bem-talhada blusinha e pronto, meu broto nem perceberá. Acho que, afinal, é assim que age muita gente sábia. Aconselha o cronista que eu "mude de vestido diariamente, se possivel", porque nenhum marido merece ver a sua senhora com roupa repetida. Note-se, no entanto, o "se possivel", que resguarda qualquer eventual falta de um bom guarda-roupa. Raymundo alerta que pequenas mudanças fazem já diferença: uma "golla nova, uma gravata, um collar"; e alerta: "nunca appareça a seu marido com um vestido que não ousaria exibir ás visitas". Foi neste ponto que me ferrei de vez. Meu Deus, aquele chinelinho de dedo, nunca mais! Vai ver que é isso o que causa tanto espanto nele. Minha calça capri surrada, minha bermudinha desfiada (feita de calça velha cortada), minhas blusinhas de R$ 9,90. Assim não pode.
Continuo me fiando nas sugestões de Luiz Raymundo: o marido não me pode ver de "rosto untado de creme ou com o nariz brilhante", nem de meias, a não ser que a costura esteja sempre "bem collocada" e bem puxada. Também não se pode escovar os dentes diante do cônjuge ou usar "chinellas sem salto". É preciso estar sempre "arranjada e 'coquette'", tanto faz se na hora do café ou noutra.
Fico pensando em minhas tantas falhas. Escovar os dentes nem é tanto meu problema, já que nunca gostei mesmo de cuspir na frente dos outros, mas o cabelo despenteado é quase uma instituição em meu lar. Desde os tempos em que morava com a família, isso nos soava normal. Se bem que minha mãe não andava pela casa com a cabeleira desfiada. Muito ao contrário: estava sempre bem-apanhada, com um arquinho, no mínimo. Diz Raymundo que "mulher despenteada provoca aversão do homem". Além disso, pede ele que a esposa seja sempre amável, ordem que finaliza a seção.
No próximo intertítulo, já se pode imaginar o que vem: "Se a palavra é de prata o silêncio é de ouro". Alguém tem dúvida de que os conselhos serão dados às moças? "Não fale com seu marido senão quando elle terminar de barbear-se ou escovar os dentes". Nada sobre se ele os escova na minha frente, nada sobre se ele deixa a baba na pia para eu limpar. Apenas que eu espere que ele queira ouvir minha voz. "Para o homem, o vestir-se e barbear-se é como a celebração de um rito que a mulher não deve interromper". Relaxei depois dessa. Nem todo homem tem essas preocupações de vestir-se como um cavalheiro ou de barbear-se bem para poupar a mulher dos pinicamentos do toque de uma barba malfeita.
Depois da manhã de silêncio, pede o cronista que a esposa: ponha a mesa do café de "maneira que o marido sente-se a ella com prazer", coloque o cinzeiro ao lado dos talheres e deixe-o ler o jornal em paz (sem interrupções). Quando fica aberta a temporada de falar (sempre pelo esposo), é preciso atentar para o fato de que a moça nunca tem razão nos assuntos: "de quando em vez procure provar-lhe que você estava sem razão". Assim pode ser que ele fique com a autoestima bem conservada. Além disso, é preciso equilibrar as coisas: "se seu esposo tem algum habito ou preferencia especial, procure satisfaze-lo sem insinuar que você assim procede por fazer-lhe a vontade". Ou seja: mesmo quando se pode conversar, é melhor adivinhar e não se deixar notar. "Não fale em demasia dos amigos delle, mas também não os esqueça", sutileza que ainda preciso aprender a fazer.
Na seção "Aprenda a cosinhar", o que minha avó tentou me dizer e não conseguiu: "Não diga que só cosinha para elle e sim para ambos", que é um jeito mais conformado de não assumir a cozinheira que existe em mim. Ao mesmo tempo, Raymundo sugere: "Não prepare muito amiudadamente seus pratos favoritos", referindo-se aos dele, claro, já que não se pode enjoar o marido oferecendo sempre as mesmas comidinhas. Atualize-se, mulher, e lembre-se: "Não ande de chinellas, nem mesmo na cosinha". É só se lembrar das mulheres casadas de propaganda de margarina e seguir o modelo. A publicidade se utiliza destes manuais da década de 1930 até hoje. Não deve ser à-toa.
Mais uma seção e mais conselhos. "O bom humor da esposa é um repouso para o marido". O que é uma esposa sem bom humor, não é mesmo? Ele quase não lhe dá motivos e você não faz outra coisa na vida, certo? Diz Luiz Raymundo que eu não me queixe nunca, de nada, que isso aborrece demais os homens. Pede o cronista que eu dê festas em casa apenas para marido e mulher, festinha privê, que é pra animar o moço. Não me pode faltar alegria, "seja sempre vinte e cinco por cento mais alegre do que dispõe de motivo para o ser", cálculo fácil de fazer e difícil de acertar, mas é preciso tentar. Raymundo me diz que dê presentes ao esposo, seja sempre moderada, discreta, não ultrapasse os limites quando me sentir atraída por discussões.
Mais adiante, diz o cronista que "o homem póde tornar-se grosseiro e aspero; a mulher, não, pois isso a diminue em todos os sentidos". Admito: nem sempre consigo ser macia e gentil, mas vou tentar. Não se pode, igualmente, fazer cenas de ciúme, dizer de quantos "sacrifícios" fiz por ele e ficar doente. Assim reza a crônica: "trate de ficar doente o menos possível". Pode deixar, doutor, vou me controlar, afinal, preciso estar sempre bem para cuidar dos eventuais achaques dele.
Melhores ainda são os conselhos sobre a vida social do casal. Raymundo afirma que cada um precisa ter seu dia de "mania", dia de sair só, de respirar. Ao menos uma vez por semana, o esposo deve "sentir-se como solteiro". E não se pode perguntar aonde ele foi ou o que andou fazendo. Diz o cronista que, se quiser, o marido chegará contando as experiências. E se houver qualquer deslize, que a esposa não se ressinta, nem cobre, nem se vingue. Isso é normal nos homens, não nelas. Não se pode sequer dar a entender ao marido que eu sinto ciúmes, coisa mais feia. E caso eu note que o homem está atraído por outra mulher, deixe estar, aproveito para reparar nela. "Observe, antes, o que é que elle nellas admira. Na maioria dos casos, são as qualidades que você não possue". Trate-se, então, de possuir. E ainda: "Chame a attenção delle para as virtudes das outras mulheres. Com isso, elle apreciará em você o senso de imparcialidade".
A profissão e o tempo do marido são sagrados. Quando ele voltar à noite para casa, diz o manual, é preciso demonstrar que eu o estava esperando com impaciência. Preciso deixar tudo arrumado, inclusive eu, a mesa posta, o cinzeiro perto dos talheres e buscar o chinelo dele com o focinho. Não, não, misturei os manuais. Não é bem isso, excluam aí a última parte. Só devo telefonar (especialmente para mãe e amigas) quando ele não estiver em casa, óbvio, porque depois que ele chega, minha atenção é exclusiva. Devo me adiantar ao me arrumar para sair, assim não o deixo esperando; se ele já estiver a postos para sair, não vá eu encher a paciência com pequenas coisas, do tipo dar bitoquinhas nos filhos, procurar bolsa, instruir a faxineira ou procurar as chaves. Ou isso tudo estava feito ou babau. Ele certamente não o fará.
Quando o marido, enfim, chegar do trabalho, não devo contar nada de aborrecimentos bestas para ele, um papo fútil e inútil, com o qual ele não ganhará nada. Ele, enfim, não quer ouvir minha voz nem de manhã cedo nem mais à tardinha. Ele quer mesmo é jantar e descansar. E se quiser sair? Não devo ter ideias sozinha. É preciso consultá-lo antes. Não devo nem aceitar sem propor nada antes que ele examine o assunto.
Mas a esposa não fica totalmente desamparada nos conselhos de Raymundo. Ela também tem seu espaço, além daquele de se dedicar ao marido. Repare-se que os filhos quase não são citados, em um modelo de família bem diverso deste nosso mais atual, o "filharcado". A mulher também merece alguma dedicação. Afinal, na página 33, estão lá ao conselhos ao rapaz, que só virão na próxima coluna.
Leitor, não perca a oportunidade de ter um matrimônio feliz, de acordo com os aconselhamentos colhidos de um manual da década de 1930, mas provavelmente ainda bastante atuais.
Eu, particularmente, detesto mulher submissa (e gente submissa em geral). Uma coisa é ter apreço por alguém e querer o bem para essa pessoa; outra coisa é negar a própria individualidade e se escravizar. Se eu tivesse nascido nesse tempo, teria me matado para nascer depois.
Hj falei d uns trem disso d machismo, minha irmã indicou este txt. Ri muito! Aqui, fiquei curiosa: ele disse q "cada um precisa ter seu dia de 'mania', dia de sair só, de respirar. ".
No 'dia da mania' da mulher ela tinha q ficar em casa num bordadinho ou podia sair pra ir à missa?! Saber, neh... Ñ cometer nenhum deslize (detalhe q nem namorado tenho, mas abafa!)... "Antigamente eh q era bom", nos olhos das outras, eh refresco! Abração
As coisas mudam, mas nem tanto. A sociedade e o mundo mudaram, mas as nossas cabeças demoram um tantinho mais. O desejo de agradar, de cuidar, de se dedicar, sempre farão parte do universo feminino. Isto é um comportamento "atávico" e tentar negá-lo só gera sofrimento e angústia. O problema, como sempre, é o exagero e a obrigação. Estes, sim, acabam transformando gestos de carinho em submissão.
Ô, Ana, que saudades de te ler! Custa muito a chegar sua vez aqui no Digestivo... mas hj fui premiada: esse texto é mesmo de arrepiar, e foi muito bem planejado e incrivelmente escrito para esta sexta-feira 13! Divertidíssimo, eu ri, até! aiai... que terror esses conselhos, e a vida naquela época então... viva a pós-modernidade e o século XXI!
Assim procediam as esposas dos casais felizes e duradouros... Dá pra acreditar que a maioria dessas mulheres achava que era assim mesmo que se deveria agir?
Se os conselhos do tal Raymundo são bons, melhores ainda são as observações e os comentários feitos por ti, Ana. A crônica do Raymundo se engrandece, hoje, por causa de teus arremates, tecidos de fina ironia e bom humor. Estou contente por teus esforços, mas ansiosíssimo pela próxima coluna. Mesmo assim, acho que ainda temos muito que aprender com nossos antepassados, ainda que desconheça os tais conselhos do Raymundo, para os moços. Parabéns e um grande abraço.
O triste não é um senhor da década de 30 escrever algo assim, mas, sim, mulheres lerem e aceitar como bom conselho. É triste a questão cultural, onde meninas e meninos nascem puros e solidários e antes dos 5 anos já se tornaram verdadeiros tiraninhos e escravinhas por conta dos exemplos...
Ahn, do Raymundo até o homem moderno e legalzão que escreve "tecidos de fina ironia" ou "ai, eu me mataaaava se eu tivesse que mandar em alguém, ui, ui" acho que teve uma decadência vergonhosa da minha turma. E posta a situação das coisas, dá pra defender bastante o que Raymundo escreveu. Mesmo sem precisar mostrar um casal retardado de hoje em dia nesse tom zombeteiro de "ai, gente, que absurdo, né?" Fazê-lo-ei, fazê-lo-ei. =]