Quando o Digestivo era apenas uma newsletter, entre as minhas leitoras célebres estava a Zélia Duncan. Como eu já contei aqui outras vezes, era o começo da internet e não era difícil trocar ideias com essas figuras. Como a gente convergia sobre João Gilberto, mas divergia sobre U2 ― entre outras coisas ―, fomos trocando e-mails, até que, um belo dia, eu fiz uma piada sobre o público meio masculinizado de um show dela. A Zélia Duncan se decepcionou. E soltou algo como: "Não esperava isso de um sujeito tão articulado quanto você". Eu pensava que "articulado", como adjetivo aplicado a alguém, servisse mais para políticos e oradores ― não para escritores.
Também no início do Digestivo ― agora quando já era um site ― baseamos nosso modelo de "colunismo" nos jornais e nas revistas. A ideia original era que, além de mim, houvesse outros "colunistas". Minhas notas ― os "Digestivos" ― comporiam apenas mais uma "coluna" dentro do site, e não seriam, originalmente, a espinha dorsal do Digestivo (como acabou ocorrendo). Seguindo esse plano, minha "coluna" sairia um dia por semana e as demais colunas, de outros colunistas, sairiam nos demais dias. Assim, cada colunista ― incluindo eu ― escreveria semanalmente, para que o site pudesse manter atualização diária.
Os primeiros colunistas eram guerreiros (como se diz hoje) e, graças à sua disposição, publicávamos duas colunas por dia ― isso durou aproximadamente um ano. Os primeiros colunistas mantinham tão firme esse propósito que, antes de falhar, me avisavam, com antecedência, quando não conseguiriam publicar. Claro que era um ritmo forte. Ainda tentei mantê-lo, por algum tempo (depois da "primeira geração"), mas o modelo que prevaleceu foi o de um texto a cada quinze dias. Escrever semanalmente uma coluna é reservar, no mínimo, três dias para se pensar no assunto: o primeiro para esboçar as ideias; o segundo para efetivamente redigir; e o terceiro para revisar, formatar, lincar etc. Na outra semana, tudo de novo. (Antes de criticar um colunista semanal, de qualquer veículo, pense nisso.)
Os anos foram passando ― muitos colunistas viraram blogueiros; muitos blogueiros viraram colunistas ― e, de repente, escrever quinzenalmente não era mais a norma: era a exceção. Um novo ritmo se impunha (ou eu deveria impô-lo, antes que fosse tarde). Entregar dois textos por mês, subitamente, parecia muito ― e a tendência natural dos colunistas pós-Web 1.0 era se lembrar do site, no máximo, uma vez por mês. Afinal, sua presença na internet já não se restringia ao Digestivo. Havia, pelo menos, um blog pessoal; um perfil no Orkut; às vezes, frilas para entregar (ou trabalhos acadêmicos); outras mídias sociais para experimentar (como, agora, o Twitter). O Digestivo Cultural não perdia importância como veículo, mas tinha de competir, pelo tempo e pela atenção do colaborador, com e-mails, feeds e até torpedos SMS.
No ano passado, eu tive de mudar as regras pela terceira vez e definir que só permaneceria colunista quem publicasse, ao menos, uma vez por mês.
Se a periodicidade fosse a única questão aqui, não seria argumento suficiente para eu sugerir que "estamos nos desarticulando". Obviamente, há mais.
Trazendo a linha do tempo agora para o presente, confesso que fiquei espantado com a repercussão dos meus posts sobre a Campus Party 2009 (1 e 2). Quem acompanha o Digestivo há alguns anos, sabe que já fiz outras coberturas do mesmo gênero, por exemplo, na Flip. Simplesmente juntei a "instantaneidade" da ferramenta blog ― dentro do Digestivo Cultural ― com meu rigor usual e o desejo de elaborar um texto, linearmente, em busca de uma compreensão mais ampla do fenômeno. Parece complicado (quando formulado desse jeito), mas não passa da tentativa de contar uma boa história ― para o leitor ― sobre um evento que está acontecendo.
Além de eu achar que meu ponto de vista corria o risco de soar carrancudo, deslocado ou mesmo antigo ― já que não sou blogueiro e estava entre eles ―, a acolhida na Campus Party me surpreendeu também porque meu testemunho, em forma de post, era único (ou quase único) naquele formato. E isso não tem necessariamente relação com qualquer especificidade minha. Não é unicamente mérito meu. Acontece que, com tanta cobertura em tempo real, ninguém mais, na internet, redige como antes. Eu mesmo testei o Twitter durante a Campus Party e, indiscutivelmente, é muito mais divertido (e menos trabalhoso) disparar tweets descompromissados enquanto as coisas estão "rolando" ― em vez de, no dia seguinte (ou, no mesmo dia, à noite), assentar as nádegas na cadeira, reunir anotações e redigir, durante horas, como se tentasse contar uma história...
Agora talvez vocês entendam onde quero chegar. A experiência na Campus Party foi tão marcante que eu até pensei numa nova epígrafe para a minha apresentação aqui no site: "Entre jornalistas, sou o primeiro blogueiro; e, entre blogueiros, sou o último jornalista". Porque, junto com o fim do jornal, estamos ameaçados de nos desarticular como redatores. Eu sei, é chato o negócio da pirâmide invertida, a imposição do lead no primeiro parágrafo, as inescapáveis cinco perguntas (quem, quando, onde, como e por quê) ― mas qual é a alternativa eletrônica? Soluços no Twitter, parágrafos soltos nos blogs, comentários que não são, sequer, relidos pelos autores? Grandes narradores, historicamente, são raros ― e eu me convenci de que um escritor, também, é aquele que persiste (mais do que os outros) ―, ainda assim, fico intrigado com a evaporação dos textos de outrora.
Não sou apocalíptico a ponto de prever os impactos para a nossa sociedade ou, mesmo, civilização. Até porque, de repente, um período de espirros textuais, frases curtas, e-mails de uma linha só etc. permita o despertar de uma nova geração de leitores (que redundará numa melhor geração de escritores). As ferramentas de comunicação instantânea são fascinantes ― o Twitter é fascinante ―, mas vamos passar links de quê, se ninguém se der ao trabalho de redigir para nós? Se todos os blogueiros migrarem para o formato SMS (de 140 caracteres) e se todos os jornais forem para o espaço, vai ser um tédio navegar apenas por páginas de agências de notícias, verbetes impessoais da Wikipedia e releases carregados de adjetivos. Ah, e comentários escritos no português do nosso presidente... E spams.
A Zélia Duncan certamente não esperava que eu continuasse me articulando por tantos anos. (Eu e meus preconceitos.) Minha implicância ― vocês viram ― também não é com os colunistas do Digestivo que estão escrevendo cada vez menos. (E, ah, esqueci de dizer que está cada vez mais difícil obter textos de, no mínimo, 5 mil toques ― espaços devidamente incluídos.) Vamos ter de escolher ― do Twitter e dos scraps do Orkut em diante ― se queremos deixar registros destes últimos anos ou se preferimos continuar rabiscando nas paredes das cavernas virtuais e deixar todo o trabalho de interpretação para antropólogos que vão mergulhar nos logs dos sites, nas mensagens que pensamos que apagamos e nos arquivos temporários de nossos computadores. Tudo bem, eu vou continuar reportando eventos que renderem coberturas como em algumas Flips e na Campus Party 2009, mas não posso ser o último dos moicanos...
Olá, Julio, ano de questionamentos esse 2009, hein? Pelo jeito, há fortes ligações entre as mudanças que você relata e a disseminação de novas tecnologias por aí. A tão ansiada mobilidade, obtida com o wifi, os netbooks e o celular, talvez nos leve a circular mais e a ter menos tempo para aprofundamento de leitura e comentário. Mas minha sensação é a de que os 140 caracteres não bastam para muitos de nós - e portanto o Twitter ocupa um espaço que não é o da blogagem. Certo, talvez alivie uma compulsão imediata por expressão e contato. Mas nunca cobre a necessidade de uma produção mais articulada. Coincidentemente, estou há quase um mês sem blogar (e também sem twittar). A que será que isso se deve? Para mim, parece mais existencial que progmático.
É, Jui, eu devo estar ficando rara também, não? Será por isso que deixei de ser blogueira faz tempo e nunca entrei no Tuíter? Gosto bastante mais da articulação. BJ
Ju, sua reflexão é um alento. Eu já cheguei ao ponto de me sentir culpada por escrever muito. Por tentar ser clara, nem que para isso precisasse de mais parágrafos. E me irrito quando preciso da informação e ela não está ali, porque alguém teve preguiça de articular um pouquinho mais seu discurso. Só me tranquilizei quando consegui aceitar que meu jeito de escrever é esse: longo, detalhado, talvez até argumentativo demais. O Google parece considerar relevante esse estilo "articulado" de escrever: meu portfolio virtual, em forma de blog, com seus longos posts descrevendo os trabalhos que fiz, é o 4º na busca orgânica do buscador quando alguém digita "redação publicitária".
"Sábios em vão/ Tentarão decifrar/ O eco de antigas palavras/ Fragmentos de cartas/ Poemas, mentiras, retratos/ Vestígios de estranha civilização..." A História das grandes civilizações é bem parecida: 1- Pictografia e Ideografia no primeiro milênio. 2- Silabismo, Alfabeto, Código Ético e Artistas x Escribas no segundo. 3- Vitória dos Escribas, fim dos artistas, e extinção rápida da civilização no terceiro milênio. Acabamos de entrar no terceiro agora, logo, temos ainda muita arte a destruir pelas palavras do Alfabeto Comercial, especialidade da imprensa. Portanto, Não se afobe não, que nada é pra já...