Você, com certeza, toma café, almoça e janta a tal da crise. Mas na opinião de um executivo das Casas Bahia (li isso no editorial do jornal do mercado publicitário Meio&Mensagem de 2 de fevereiro), as classes mais populares continuam consumindo porque não estão impactadas pelas notícias alarmantes. O assunto é abordado com mais profundidade em veículos/programas jornalísticos que teriam menos audiência nas classes C, D e E. Então, como "quando os olhos não veem, o coração não sente", o pessoal segue comprando.
Já as classes mais abastadas e bem-informadas, mesmo que não estejam sentindo na prática os aguilhões da recessão cutucando o bolso, botam o pé no freio por prevenção. E, assim, o mercado sente a diminuição na compra de carros e vinhos importados, mas não na de feijão, arroz e geladeiras à prazo.
Passados quatro ou cinco meses do início da crise, já se começa a falar que ela não está tão forte. Alguns pensam que nem mesmo chegou por aqui. Parece aqueles furacões que desviam a rota antes de atingir determinada região. O problema com a crise é que ela não aparece nas imagens de satélite. E aí tudo cheira a especulação.
Será que a crise existe mesmo? Eu poderia dizer que sim porque, teoricamente, senti na pele. Um contrato definitivo de trabalho, em certa instituição de ensino de Curitiba, virou temporário. Nem dá para reclamar muito, se for comparar com os professores que estavam lá há anos e foram demitidos praticamente no fim do ano letivo, quando já era tarde para buscar emprego em outras faculdades. O motivo alegado, nem preciso falar: cortes para sobreviver à crise.
Com certeza existem situações em que as vendas foram afetadas, os prejuízos tomaram o lugar dos lucros, a sombra da bancarrota pairou sobre as cabeças. Porém, muita gente se questiona: a crise não acabou virando desculpa para algumas empresas tomarem certas medidas, que vão da demissão ao aumento de preços, e que teriam sido extremamente impopulares em um período de bonança?
Complexos cenários econômicos, impactados por variáveis inalcançáveis para a maior parte dos mortais, tornam difícil a um leigo ter uma opinião técnica sobre o assunto. Mas a gente pode traçar um paralelo com a vida pessoal, e aí fica mais fácil entender.
Sabe aquele namoro que não vai muito bem das pernas, mas onde não existe nenhum grande motivo para terminar? Quem quer terminar não tem coragem de ficar de vilão. E aí, o que essa pessoa faz? Arranja um pretexto. Qualquer situação pode ser transformada em motivo para "demitir" o namorado ou a namorada. Não que as coisas estivessem às mil maravilhas. Mas a crise em si não é tão grande que justifique o rompimento. A pessoa que quer terminar às vezes não tem coragem de revelar seus verdadeiros sentimentos. Então, aproveita qualquer bobagem para justificar "atitudes impopulares". Eu, por exemplo, já levei um fora por causa de um frango defumado, acredita?
Em alguns lugares, a crise deve existir mesmo. Mas no Brasil? Os bancos continuam lucrando bem direitinho e não baixaram os juros proporcionalmente à diminuição da Selic, estratégia do governo para manter/aumentar o consumo. As montadoras, que encheram a burra de dinheiro em 2008, talvez tivessem reservas suficientes para segurar as demissões mais um tempo (agora estão até recontratando). Os hotéis do Nordeste estiveram lotados no carnaval. E diz (novamente) o Meio&Mensagem de 16 de fevereiro que muitas das maiores agências de propaganda do Brasil não chegaram a perder dinheiro, em comparação com o início de 2008. Algumas empataram, outras até aumentaram o faturamento. Mesmo assim, esse mercado está sendo bastante atingido por demissões desde o fim do ano passado.
Qual seria a vantagem de demitir profissionais se a situação está regular, se existe até uma expectativa de crescimento? Afinal, essas pessoas não vão fazer falta? Suspeito que as empresas acham que essas coisas precisam acontecer de tempos em tempos. Uma espécie de limpeza, meio sem saber onde e nem por que fazer.
Ondas de demissões geram uma sensação ambígua em quem fica: alívio por ter sobrevivido junto com o medo de ser o próximo. Essas pessoas vão suportar trabalho e pressão dobrados, motivadas por essa sensação ― "puxa, eles gostam de mim; ops, preciso fazer das tripas coração para continuar com o emprego". Com isso, a empresa tem a mesma produtividade pagando menos salários.
Depois de um tempo, claro, os profissionais que acumularam o trabalho dos demitidos vão começar a fraquejar ― ninguém aguenta a pressão muito tempo. E aí, coitados, também eles serão mandados embora, taxados de incompetentes, por serem incapazes de suportar indefinidamente essa situação absurda. Troca todo mundo de novo, aumenta o quadro funcional, as coisas vão bem por um tempo até... surgir a próxima crise.
Não desanime, isso não é o apocalipse. Se perdeu o emprego, um cliente, um contrato (ou até mesmo o namorado) com a desculpa esfarrapada de uma crise, tente tirar algum proveito disso. As épocas ruins nos fazem cortar os excessos, valorizar o essencial, descobrir novas maneiras de viver. Lembra do apagão elétrico, quando teve aquela onda de racionamento? As pessoas reclamaram, foi péssimo no começo. Mas depois que o racionamento acabou, muita gente manteve os hábitos de economia de luz, porque descobriram no bolso os benefícios.
Seja meio falsa ou totalmente verdadeira, a crise talvez possa nos ensinar alguma coisa. Podíamos começar aprendendo a "dar o fora" em empresas (e pessoas) que se aproveitam de uma situação ruim, de fragilidade, para explorar os outros. Afinal, será que não está faltando um pouquinho de vergonha na cara dessa gente?
Impressionante como crises, de qualquer espécie, revelam facilmente o jogo que todos nós praticamos: presas e predadores. Em tempos de crise, não sei o que é mais vantajoso: ser ou torcer pela terceira opção, os carniceiros.
A necessidade de uma crise é evidente, pra quem respira a sedução da mercadoria e tem os empresários todos fazendo com que todos consumam seus produtos. E isto vale pra quem não tem o dinheiro, mas tem o creédito, e segue até o dia em que pagar é o problema. A bola de neve é tão grande que passam a hipotecar todos os seus bens, daí surge a crise, de forma violenta. Ou seja, ela faz parte do sistema capitalista, e Keynes já taxou isto de obsolescência da mercadoria. E há uma obra de Marx que em 1865 já previa a crise do consumo.
Penso que esta crise no Brasil é mais psicossomática. Daí se cria uma neurose acreditando que ela realmente existe. Pode ser que exista alguma crise, em determinados setores. Se levarmos a sério tudo que a Míriam Leitão fala logo de manhã, nosso dia estaria perdido. Seu texto vai ao encontro do que realmente acho sobre esta "crise".
Esse oportunismo não é de hoje. Enquanto nos EUA o mercado de trabalho cresce e diminui rapidamente, sempre amparado pelo dinamismo da estrutura econômica com poucos gargalos, aqui qualquer sintoma de recessão vira catarse. A questão central é cultural: lá, o valor é o trabalho, aqui, na maioria dos casos, é apenas o lucro, ainda que esse pessoal não entenda que ele não é gerado espontaneamente...
Estimada Adriana, adorei o texto! Na verdade, devemos festejar o fim da farra monetarista dos figurões do neoliberalismo (crise pra eles, pra Davos!). Que é isso afinal de passar uma existência inteira a reboque do irracional mercado mundial financeiro?!! Em 2002 desisti da docência universitária, em universidades e faculdades particulares, preferi o desemprego, a miséria, a assistir ao sucateamento do saber promovido por estúpidos tecnocratas do "saber"... ganhar dinheiro! Oxalá, a partir de agora, eles possam nos restituir com juros e com os juros dos juros a perdida dignidade do campo educacional brasileiro.