Depois de exatos 20 anos da derrocada do sistema socialista russo, quando o Muro de Berlin virou pó, o espectro comunista volta a assombrar o mundo capitalista. O capital, quem diria, se rende aos dogmas do comunismo. Essa é a face mais contraditória e curiosa da atual crise econômica que atinge os países mais ricos do mundo, os periféricos e os subdesenvolvidos ― ou seja, todos. Bancos sendo "resgatados" pelos governos em veladas operações de nacionalização e empresas privadas socorridas pela mão forte do estado. É o receituário socialista fazendo escola nos já escolados senhores neoliberais. É a tônica do momento, em que, entre alarmistas e otimistas em excesso, ora o mundo se acaba em barranco, ora se livra de mais um pequeno resfriado, incômodo, é verdade, mas que logo irá embora sem deixar rastro ou sequela.
Bem provável que nem uma coisa nem outra. Se é possível confiar em economistas, que seja nos menos radicais, muito mais por fé do que outra coisa. Pelo menos a crise econômica está servindo para ressuscitar gente que estava esquecida entre estantes cheias de ácaro. Sim, a volta de Keynes tem servido não só para rechear publicações que se debruçam sobre nossos atuais problemas financeiros, mas também para que nacionalistas enrustidos saiam do armário para dizer: "estão vendo, nosso amigo Keynes estava certo, só o estado salva!". E é o que tem acontecido, haja vista a dinheirama rolando nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e até na Europa pobre, no Leste Europeu, onde países como a Ucrânia não conseguiram nem sentir o gostinho das benesses do capitalismo e já caíram em desgraça novamente, lembrando os anos de perrengue em que esteve sob o jugo russo.
E o caso da Ucrânia é emblemático de como os emergentes e subdesenvolvidos, mesmo estando distante do epicentro do terremoto, vão sofrer consequências graves. Afinal, a corda sempre arrebenta para os mais fracos, diz o chavão popular ― ainda que, neste caso em particular, os mais fortes também tenham ido ao chão. Além dos bilhões de dólares, euros e libras, a economia dos países mais ricos terá a seu favor muito protecionismo e, consequentemente, uma espécie de nacionalismo que se tornará cada vez mais intolerante com os imigrantes e seus subempregos ― haja vista Berlusconi e sua lei de imigração ilegal.
E os emergentes, como o Brasil, vão ter que se virar com seus mercados internos, porque suas commodities não terão mais os euros e dólares dos Estados Unidos e da Europa. É o "Buy american" fechando as portas ao nosso aço e ferro. Para a ministra da Fazenda da França, um "mal necessário". Para nós, apenas uma forma de deixar os pobres ainda mais pobres enquanto os ricos ganham fôlego.
É o sinal mais claro de que a tão propalada globalização não aguenta cinco minutos de recessão. Ao primeiro sinal de escassez, fecham-se as portas para o livre comércio ― que nunca foi tão livre assim ― e todo mundo volta a defender o seu quintal, no caso americano e francês, com muitos bilhões destinados a agricultores que ganham para não plantar.
A essa altura do campeonato integração comercial e cultural é coisa do passado. E, por ironia, a melhor definição para o momento vivido hoje veio de quem menos se esperava. Gordon Brown disse que "essa forma de desglobalização vai levar ao protecionismo comercial se não for interrompida". Com essa frase, ou melhor, com o termo desglobalização, o bonachão primeiro-ministro inglês captou o estado de coisas da atual economia mundial. Não interessa mais aproximar mercados, agora é cada um por si e quem tiver mais fôlego se salvará, já quem não tiver gordura para queimar vai, inevitavelmente, sucumbir e andar algumas casas para trás.
E as multinacionais seguem a mesma toada. As que não quebraram e foram socorridas pelos governos de seus países, sangram suas linhas de produção sem remorso algum. Muitas nem prejuízo tiveram, apenas lucros menores. Mesmo assim, haja demissão. Afinal, uma empresa acostumada a render lucros exorbitantes não pode se contentar, mesmo em um momento atípico de turbulência, com receitas menores. Os trabalhadores? É uma pena, mas é assim que se joga o jogo. A responsabilidade social virou apenas um bom mote para publicações internas coloridas e bem diagramadas. E assim o marketing se revela agora como apenas uma forma rasteira de propaganda enganosa. É a face mais cruel do capitalismo selvagem. Um capitalismo que, ao que tudo indica, será cada vez mais regido pelo estado, contrariando o movimento que há muitas décadas prega a não-intervenção no mercado.
Se nos serve de consolo, neste período de incertezas e névoa, a produção cultural tem grande chance de ganhar novo ânimo, independentemente de o mecenato estar mais pobre. Damian Hirst, pelo visto, continuará mantendo sua linha de produção artística e colecionado cada vez mais dólares e euros. E, como bem lembrou o colega Marcelo Spalding, a seca e a penúria talvez até sejam boa oportunidade para que Steinbecks e afins surjam para mostrar às gerações subsequentes como foi difícil nossa época.
É preciso sempre lembrar que o processo de globalização resume-se em explorar a mão-de-obra do mundo, pagar salários de misérias e distribuir os produtos pelo mundo. A lógica é repensar o trabalhador, que não tem o seu direito internacionalizado, que não tem seu salário unificado mundialmente. E enquanto houver a exploração do ser humano por outro ser humano, sempre será tempo de repensar o socialismo, de rever apontamentos. É preciso que lembrar que Lenin dizia que os princípios da teoria marxista enriquecem-se continuamente com as experiências do desenvolvimento social e as novas conquistas científicas, pois o Marxismo é uma doutrina criadora em desenvolvimento.