Eu ainda não era nascido, mas me contaram que o início dos anos 70 foi a época do tal do "milagre econômico". Época em que faltava humor, mas sobrava ufanismo. Impulsionados pelo tricampeonato de 1970, os milicos lançaram mão da propaganda nacionalista para mover as massas e investiram maciçamente em bordões como "Brasil, ame-o ou deixe-o". Com taxas de crescimento superiores a 10% ao ano, o Brasil embarcava na farsa, enquanto os porões do DOI-CODI continuavam recebendo novos visitantes. Mas aí veio a crise do petróleo em 1973 e, ao enxertar os buracos dos "anos de chumbo" com o "milagre econômico", o país descobriu que o preço pela cegueira ufanista tinha sido alto. Altíssimo.
Em 1985, o Brasil era outro. Tancredo Neves chegava ao poder e trazia consigo uma nova esperança com a redemocratização. O clima de euforia era de tal maneira incontrolável que ninguém notou que tanto deslumbramento nos conduzia a um espectro bastante temerário: o espectro do humor a favor. Mas não haveria tempo para isso, pois Tancredo nem chegaria ao dia da posse. Sir Ney ficou encarregado em trazer as más notícias a "brasileiras e brasileiros". A conta do "milagre econômico" dos gorilas fardados tinha chegado ― e o Brasil não tinha dinheiro para pagar. Convulsionados por uma inflação estratosférica, passamos a década inteira jogados à sorte de constantes trocas de moeda e planos econômicos aventureiros.
Olhando hoje, aquela euforia se mostrava despropositada. Começando pelo próprio Tancredo, que só chegou ao poder através de um acordo tácito entre a ARENA e o PMDB. E depois porque seu governo não teria sido muito melhor do que foi o de Sir Ney. A verdade é que a redemocratização ainda engatinhava, e só começaria a andar de fato em 1989, com o voto. Ali, sim, éramos uma democracia e, com isso, o brasileiro se sentiu seguro para acreditar em salvadores da pátria. Outro dia, revi o último debate entre os candidatos de então, Collor e Lula, e uma questão voltou-me ao âmago. A certa altura, o jornalista Fernando Mitre indagou o candidato collorido, líder nas pesquisas, sobre uma reportagem que mostrava um brasileiro "humilde" decretando: "Collor vai mudar a nossa vida na primeira semana de governo". No fim, Collor fugiu da pergunta, ganhou a eleição e a resposta ao brasileiro "humilde" só viria muitas semanas depois, no primeiro impeachment de um presidente na história brasileira. Estaria aprendida a lição a todos os brasileiros (além do tal "humilde")? Ainda não.
Nos anos 90, o Brasil de FHC surfaria na onda do otimismo mais uma vez. Com a inflação finalmente controlada e o dólar "um para um", as perspectivas eram as melhores possíveis. Com a "moeda forte" o brasileiro tinha cacife para consumir mais frango e iogurte. A confiança era tanta que abriu-se uma brecha para mudar a regra do jogo enquanto ele ainda era jogado. Com as crises dos Tigres Asiáticos, em 1997, e da Rússia, em 1998, vacas e frangos ficariam magros novamente para o Brasil, mas não impediria a reeleição de FH e um segundo mandato um tanto "apagado". Ao mesmo tempo, nossa fauna política protagonizava episódios pitorescos e ganhavam as manchetes: Jader Barbalho contra ACM; Francisco Lopes a favor de Salvatore Cacciola... E ele, a maior caixa-preta da história recente do Brasil: Daniel Dantas.
Chegamos a 2002. Tempo das esperanças se renovarem para vencer o "medo". Com Lula lá, a ética finalmente definiria a agenda política. Quem acreditou nesse discurso deve ter se horrorizado com a esbórnia dos mensaleiros e com o cinismo (ou o silêncio) das antigas vestais petistas. Lula fingiu que não sabia de nada, o primeiro escalão do PT foi dizimado e o segundo escalão emergiu. Se o momento político era explosivo, a economia era um mar de águas cristalinas. O jeito era navegá-las rumo à reeleição, na canoa do Bolsa Família, que até mesmo Frei Betto acredita ser um instrumento eleitoral do projeto de poder do PT e de Lula.
O segundo mandato de Lula (notadamente o ano de 2008) reproduziu ― com tintas parecidas, mas com cores muito mais vibrantes ― a marola ufanista de FHC e transformou-a em tsunami. Lula foi às alturas e o espectro do humor a favor voltou a assombrar a terra do "nunca antes nesse país". Pronto, o mensalão já fazia parte do passado. Longe de sermos uma sumidade em saúde ou em educação, continuamos ostentando a 80ª colocação no ranking da corrupção, heroicamente atrás da Namíbia e do Suriname... Ah, mas a economia "tá bombando", deixa isso pra lá, diziam os arrivistas da ocasião. Será? Na dúvida, pedi uma tequila com pré-sal e deixei a patrulha bradando retumbantemente para as paredes. Afinal, o Brasil estava próximo à perfeição... Ou melhor, estava perfeito. Se melhorasse, estragava. Pois bem, não melhorou... E estragou. Se após um período de prosperidade sempre vem uma crise, o Brasil, inserido no mercado globalizado (queiram ou não), sofreria com ela.
Sim, a crise. Toda vez que ela nos circunda, os donos do poder sempre se prontificam a encontrar culpados (ah, como o brasileiro gosta de uma caça às bruxas!). Chega a ser ridículo o jeito que governo e oposição se comportam frente à crise atual. Se antes cada um reivindicava para si a paternidade (sem exame de DNA) de um Brasil próspero que nadava a braçadas rumo ao desenvolvimento, agora um empurra as mazelas da crise para o outro. Na bonança, os tucanos desfilavam em plumas com o controle da inflação e a estabilização da moeda. Agora apontam a incompetência e a ingerência do PT e de Lula pelo imobilismo. Já os petistas não vão muito além. Nos anos dourados, exaltavam a explosão do consumo e a facilidade do crédito pelo momento mágico que o Brasil viveu até ontem. Agora, culpam os brancos de olhos azuis, os EUA, a direita, a globalização, o imperialismo, o neoliberalismo, o capitalismo e todos os "ismos" pela fragilidade da nossa torre de babel.
Em meio a tanta aridez, cabe aqui uma constatação, que só não é óbvia aos ideólogos e seus acólitos. O capitalismo não está em xeque. É o neoliberalismo que viu o seu vinho virar vinagre. Aqui entre nós, era muita ingenuidade acreditar que os mercados se autorregulariam sozinhos, né não? Assim como é igualmente ingênuo acreditar que os corruptos estão apinhados somente no setor público. Pessoalmente, concordo com Ferreira Gullar, quando diz que o capitalismo é um fenômeno natural e amoral e que a melhor solução seria a "ganância do bem". Faça um favor a si mesmo: leia esse texto do Gullar e deixe os ideólogos lá, no século XX, discutindo sobre a "mão invisível" contra a "mão de ferro".
Mas se de um lado a crise econômica afasta o espectro do humor a favor, de outro ela ressuscita outro vício brasileiro, igualmente perverso: a crença em salvadores da pátria. A pergunta de Fernando Mitre, feita em 1989, poderia ser refeita hoje, já que, neste exato momento, tem muita gente por aí achando que só José Serra será a salvação para o Brasil. Outros acreditam que Lula já é a salvação (com Dilma Rousseff a tiracolo). Enquanto se acusam mutuamente de uso eleitoreiro das obras de infraestrutura, ambos fazem o uso descarado da máquina pública ― Serra, na do governo estadual; Lula/Dilma, na do federal.
Essa é maneira brazuca de encarar a crise econômica. Com chicanas políticas, interesses partidários, manobras eleitoreiras e retórica rasteira, sempre mirando a sucessão presidencial de 2010. De alguma forma, estas figuras tão ilustres hão de combater bravamente o desemprego, segurar as rédeas da inflação e liderar a cruzada das reformas que o Brasil tanto precisa e há décadas são prometidas (ironicamente por eles mesmos). Estranho ninguém falar de corrupção, de impunidade, de fisiologismo, do PMDB... Ah, quer saber? Vê aí mais uma tequila com bastante pré-sal... E não se fala mais nisso, ok?
Quer dizer que só tenho críticas a tudo o que aconteceu no Brasil? Essa é uma pergunta que me fazem com frequência e aproveito para respondê-la aqui: não. Evoluímos muito do ponto de vista econômico e social. Quem duvida, basta lembrar dos preços sendo remarcados todos os dias pela inflação dos anos 80/90. O Brasil virou o jogo. FHC começou, Lula continuou. Simples assim, porém incompreensível aos entusiastas da diatribe tucano-petista. Tanto o governo FHC quanto o de Lula mostraram que, bem ou mal, a economia brasileira continua andando, apesar de todos os bilhões jogados, ano a ano, no ralo da corrupção ― corrupção que, diga-se, sempre contou com a complacência de ambos. Se ontem a economia esteve bem e hoje ela vai mal, não é por causa do Lula, nem apesar do Lula. Muita coisa aconteceu para que chegássemos ao estágio atual e a economia se move muito mais pelas leis do temido e volátil "mercado globalizado" do que pela boa vontade do presidente (mesmo que seus índices de popularidade oscilem junto com os números do PIB).
O que falta ao Brasil é esquecer os proselitismos e encarar os problemas de frente. Sem demagogias, sem máscaras. É por isso que, por maior que seja a crise econômica de agora, nossa eterna crise será sempre política. Na economia de hoje, a crise pode ser vista por duas vias. De um lado, a preocupação com o emprego e com a renda. De outro, uma oportunidade para ensejar novos negócios em tempos difíceis. Se existe mesmo uma "ganância do bem", chegou o momento de testá-la. Por ora, continuamos esperando que a crise volte a ser só uma "marolinha". Porque senão, companheiro, nóis sifu...
ih, Diogo, acho que nóis já sifu. O capitalismo está em xeque, sim! Um dos pilares do capitalismo, talvez o mais vigoroso, encontra-se na exploração da força do trabalho alheio. Com a velocidade da revolução tecnológica em trânsito, libertando a cada dia a humanidade do trabalho, o que fazer com uma sociedade de trabalhadores num mundo sem trabalho?!
Caro Diogo, esta semana você marcou um golaço. Seu texto está brilhante, tanto no estilo quanto na "defesa da tese" - com o qual concordo plenamente. Parabéns. Realmente, não navegaremos com velas abertas rumo ao mar da prosperidade enquanto nossa classe política não mudar.