perspectiva das coisas é relativa. em vez de andar em rodas, a pé, cruzando o viaduto mais serpente da cidade, acima das cabeças e no nível das janelas dos prédios modernistas e históricos, cortando ruas, encontrando o caminho otimizado entre o bairro e o centro, só mesmo aos domingos para ouvir a voz das pessoas como em cidadezinha do interior, agora dá pra entender porque a fofoca corre solta, é porque a voz não é engolida pelo motor dos autos, ressoa comprida até os ouvidos menos atentos, ainda assim, a visão das coisas não é das mais longas, o altino arantes desponta como envolto em bruma, é a névoa das manhãs claras, enfim, já é não é mais tão cedo assim, mas para o homem da cidade grande a manhã se prolonga, indefinidamente, rasa, basta chegar na padaria às oito e meia e não haver ninguém, só mesmo o pastor que chega de carro para pegar doações, um saco lotado de pães e a mulher que compra apenas cigarros, entra apressada no carro e pressiona um entre os lábios, satisfação e alívio, mas é na direção contrária da manada que se tem essas sensações, quando se é sugado pela via expressa, rota do abismo rumo ao desconhecido num abre-alas de fileiras de prédios, não se sabe se eles reverenciam a manhã ou se são os transeuntes que se curvam diante de sua beleza moderna, suas janelas largas e varandas amplas, e desfilam cachorros passeando com seus donos, gente que quer fazer um exercício matinal, diversas classes sociais, moradores de rua vivendo em comunhão na duração de uma balada no passeio público, num lapso de tempo entre os acordados e os desacordados, na saída do arouche é hora de descer sem o frio na barriga que a velocidade ocasiona e reconhecer o lixo espalhado pelas ruas e calçadas, resquícios ainda em decomposição de uma noite maldormida, ambiente de armistício, início de calmaria, é só achar a ordem das coisas natural e acreditar que o que importa é a cidade acolher a todos, ceder lugar aos excluídos enxotados dos bairros, sem perspectiva é que amanhecem os bêbados e se inicializam os brutos, a doceria já está aberta, mas não há dinheiro para bombas de chocolate, nem munição, e quando sua imagem se torna triste e desafiadora, o centro se abre em esplendor de praça da república, domingo, dia de feira de selos, notas, álbuns de figurinhas, pedras pouco preciosas e um enorme jacaré de couro negro resplandecendo o sol se empinando me lembra a cuca que encontro com seu sorriso de escárnio atrás do segurança da biblioteca, prometo voltar todos os dias para ler, ao menos os clássicos da bom-livro quando reconheço a encantadora fonte minúscula, o papel pardo mofado e a indefectível capa preta com belas e duvidosas ilustrações das heroínas românticas da literatura, til, senhora, lucíola, diva sentarei com vocês na poltrona de couro negro, sem encarar as bibliotecárias que colocam a conversa em dia de todos os dias iguais, ao lado da cristaleira com o terno e o colete de monteiro lobato, inspirando seu sonho de petróleo, mofo e uma decadência agradável nessa biblioteca infantil, que expõe os personagens do sítio do pica-pau amarelo e que de crianças neste domingo ensolarado não tem nada, algumas pessoas no telecentro, outras lendo nas mesas como gatos modorrentos, mesmo a luz atravessa com dificuldade os vidros desta biblioteca que parece estar ali como mera obrigação, para constatar que o espaço público acabou e se vive dos resquícios de sua glória, no parquinho adjacente moradores de rua guardam seus pertences, há uma base da polícia militar no mesmo quarteirão e reina, num orgulho disfarçado pelos funcionários, uma paz absoluta na iminência de ser quebrada, cidadãos em marcha, sem identidade, adiante o cenário é de campo de batalha pausado ou de uma guerra civil prestes a eclodir, uma penugem velha de carnaval desponta das primeiras lojas, gritos de ofertas roucas, um mar de gente descendo e se remexendo pela ladeira porto geral, se infiltrando pelos corredores entupidos da galeria pajé e do shopping oriental, onde o entregador traz as marmitas chinesas com rashi, avisos em versão bilingue ao lado das escadas rolantes quebradas, lojistas fumam e olham com indiferença para aquele ir e vir em massa dos consumidores, conversam entre si neste mundo paralelo e por que não subterrâneo, que se eleva em horário comercial, deixando um rastro colorido de retalhos, aos chineses e coreanos se juntam comerciantes árabes, nordestinos, uma parafernália eletrônica, cremes victoria's secret, secadores de cabelo, camisas lacoste e tudo o que a imaginação num jorro de mercadorias empilhadas puder conter, os bolivianos ficam com o chão das ruas nas quais já não passam carros, mas se estendem as echarpes para o desejo de inverno, em cada esquina aflora das caixas de som dos vendedores de cd pirata música indiana, e as músicas são constantemente cortadas e substituídas por outros hits do passado porque nada é inteiriço, basta se contentar com a metade ou a cópia, afinal, onde está o verdadeiro e o real? o som espalha o cheiro acre de final de feira, enquanto na sarjeta embalagens plásticas são levadas pela sutil correnteza formada por um líquido escuro, turvando a visão e impedindo a noção da profundidade das coisas, a
Ter os olhos nas pedras do concreto, sem o mergulho das relvas orvalhadas de um jardim... Não apreciar o canto dos pássaros, não entender das doces manhãs nas quais podemos saborear os nossos frutos frescos, os nossos chás de hortelãs e camomila, e saber que há um acompanhamento do som de viola, sabendo que este é o cenário de beleza que começa a faltar também no interior do Estado. E vai ficando nostálgico, falta a alegria da natureza pra enfeitar o concreto. Duro, frio, triste e amargo - obviamente num sentido figurado...
Querida Elisa, muito obrigado pela flânerie que o seu texto me proporcionou. Que delícia, numa bela manhã de domingo, ler um texto tão encantador, sobretudo por descrever a minha amada SAMPA! bjs do Sílvio Medeiros. Campinas, é outono de 2009.