Seu Zé Flaviano. Um amigo ouropretano. Ele mora na Rua João XXIII...
“Oh, Seu Zé, diz como ir?”
“Filha, vai gingando...”
“Seu Zé, não consigo mais...”
Seu Zé na ladeira, ladeando mais um bocadinho de sonho. Olhos de sangue, escorrendo vida.
“É cedo, é cedo...”
“Quero fuzaquiar também, me leva daqui.”
“Tá tudo pronto, olha ali sua ladeira!”
“Eu não to vendo...”
“Não precisa de vê não!”
Seu Zé era o dono de todas as ladeiras do mundo. Pois então que eu senti como era ser um procurador de sonho, buscador do nada, sentidor do tudo. Está tão escuro, escuridão entranhada. Essa escuridão é diversa de todas as outras. Escuridão alumiada, uma estrelinha sonsa e molenga. Pois meus olhos acabaram de nascer e ainda não sabem ver direito, mas de todo sabem como sentir. Olhos que sentem e não enxergam.
1995 - Ver
Eu não sei falar bonito, nem entendo de nada... Por isso vou deixando livre, vocês que me lerem, vão ficando confusos não, é do Guimarães Rosa que queria saber dizer, mais de Miguilim, nos Campos Gerais...
Falar do Rosa...Tudo que é pretensão minha se ajuntou aqui. A única forma de lidar com o medo é escrevendo de verdade, assim. Foi que me falaram que Seu Guimarães escrevia como em transe, de uma vez, tinha era que reler tudo, pois já já esquecia da estória. Acho que só assim que dá para entender esse homem, era grande. Porque fala de vida, de sonho, de morte, de sorte, de gente, de bicho, de mato, de música, de feiura...E de tudo fala de verdade, “importante de repente, como uma estória”. Foi que entendi num instante, assim como Miguilim, que “entendeu tudo tão depressa, que custou para entender”, sua mãe gostava era do tio. Mas de castigo, “de pelourim”, sabia que não devia de aceitar a licença do tio, fosse melhor continuar brincando de pensar. Foi que Miguilim nunca entendeu porque seu pai deu sua cachorra cega, Cuca Pingo-de-Ouro, com seu filhotinhozinho para uns tropeiros, ela já tava era cega. Por quê? E Miguilim gostava mais, mesmo, antes de tudo, do irmão Dito.
“Um certo Miguilim...” “Miguilim bobo...” Uma família, “mãe, o Dito, as Meninas, Tomezinho, o Pai, Vovó Izidra, até os cachorros também, o gato Sossõe, Rosa, Mãitina, vaqueiro Salúz, o vaqueiro Jé, Maria Pretinha...”. O Dito “era menor mas sabia o sério”. Drelina era linda, como uma santa. Tomezinho, o menorzinho, sonhava com o esquecido. Miguilim bobo. Chica sabia as brincadeiras todas, “mariolinha”, “tão engraçadinha”... Ah, Seu Guimarães, queria saber falar do senhor...No meio de tantas veredas, no Mutum, nos Campos Gerais. Toda violência de uma vida, de uma gente, de uma miséria igualzinha de toda gente, no meio de um sertão, num buraco de terra. Mas o nome da estória é Campo Geral, parece mais que está tudo aberto, vastidão. Um Campo Geral no Mutum. E está tudo lá mesmo. Tudo de pertim na imensidão...que nem o Grande Sertão: Veredas, tudo oposto, tudo grudado, tudo em tudo.
E o moço que narra a estória, tudo engraçado, mais parece que está junto de Miguilim, embaralhado. Vai contando e se funde todo, parece quase que um personagem. Faz até pergunta. Nunca vi narrador de estória fazendo pergunta. Como se a estória fosse maior, tomando conta. Tudo se construindo, tudo movimentado, melodioso. Parece mais que o autor está entranhando no Mutum. Como é mesmo o palavrão? Subjetividade? Pode ser isso? É tanto... O menino Miguilim, no fim não enxergava era nada, tudo via deformado, precisava de um par de lentes para perder de vista o sonho. E tudo que via, era assim, defeito de olho? Subjetividade? Pois que o narrador era mais que narrador... Não sabia de tudo - a gente fica livre...E tava tão juntinho de Miguilim... E os sonhos, as lembranças, tudo misturadinho na cabeça do Miguilim, só tinha oito sonhos, oito anos.
Tudo escrevi foi de memória...Para misturar, ver tudo deformado, exagerado...“... conservava outras recordações, tão fugidas, tão afastadas, que até formavam sonho...”.
2001- Rever
Pois que vi tudo de novo, tudo fresco na memória, fui lá no Mutum, e tava tudo diferente. E eu nem precisei de óculos para enxergar o diverso. Acho que tudo quanto é gente nasce míope. Só o Dito que não. Miguilim “bebeu um golinho de velhice”. Foi-se tudo indo, a Cuca Pingo-de-Ouro, Dito, o Pai. Dito, bendito, carregava todo juízo do mundo. Ditinho morre, ele que já sabia do tudo, nem desse mundo fazia parte, só não queria morrer menino pequeno, mas pr’aquelas bandas não é estranho menininho dormir cedo. Miguilim sempre tropeçava, caía, não fazia nada direito, só sabia inventar estórias. “Miguilim bobo”. Mas só depois mesmo é que se descobre, no bom que é todo fim: “Miguilim, você é piticego...” E é tanta coisa de pensar... Uma imensidão de pontinhos brilhantinhos que persistem, e insistem. Todo o universo se concentrou foi muito cedo no menino Miguilim. E ele foi embora, mas pediu, por um momento, os óculos para o moço que o levara, queria olhar tudo assim, da última vez, era tudo diferente. Tanta ternura ajuntada à violência de tudo. Miguilim. Acho mais que encontrei ele mais velho, num livro outro. Miguel.
E tudo que era morte cercava Miguilim, desde menino neno, quando pequenino quase mesmo tinha morrido. Depois já ficava era danado se qualquer irmãozinho comesse galinha, porque ele lembrava que achava que morria, num engasgo com um ossinho. E um homem que falava engraçado disse que ele tava era muito magrinho...Miguilim também pensou que fosse...Fez dez dias, um acordo com Deus - se em dez dias não morresse, não poderia morrer mais...Também achava que dois irmãos podiam se matar, feito Caim e Abel...Pai e Tio... “Tudo morte de ida-e-volta...” Mas foi mesmo o Dito embora...Dito não brigava com ninguém, todos respeitavam, nem nunca de castigo ficava... E Miguilim teve que aprender a morrer... Seu Manuelzão, que achava sinal de morte em tudo, da estória seguinte, devia de saber viver...Pois o menino de oito anos devia de saber da morte para entender a vida...O Dito já sabia mais é isso tudo, morrer e viver...Só ele mesmo já podia morrer...Mas como sabia do certo? O Dito era o personagem mais velho de todos, mas ele era menor, bem menor do que Miguilim.
Seu Guimarães pode tudo, ele sabe brincar de imaginar na realidade. Foi que ele mesmo fica falando de um olhar, pula nele como num poço, pode também ser o mais delicado, o mais bruto. Acho que esse homem, que era médico, não “devia de”, deve de ser pecado segurar tanta verdade na mentira. Porque ele sabe ser simples de verdade...Duas belezuras diferentes: uma era “bela”, outra “bonita”, duas mulheres...num livro outro. É em tudo que sabe ser muito. Diz que é em alemão que Rosa pode ser lido de outra forma melhor, das outras línguas assim...Tudo engraçado...
E foi que a Maya, dessas amigas que mais parece irmã, me contou de um Miguilim registrense. Contou assim, de leve, como o moço que disse a Miguilim que o Mutum era lugar bonito de se ver. E se é de leve, sem querer, é que é para acreditar mesmo. Um japonesinho pequenino que apanhava todo dia de sua batchan, todo dia, todo dia, porque todo dia quebrava um prato. Foi que num dia qualquer, batchan andarolava com seu netinho, de mãos grudadas:
“Olha como a lua está linda...”
“Batchan, elas são lindas!”
Ah, Daniela,
Queria que o Digestivo tevesse mais poesia, cheguei mesmo a pedir isto, mesmo sabendo que poeta é bicho difícil de achar.
Daí vem você. Este texto é um presente.
Uma prosa-poesia. Dá gosto de ler.
Ainda mais pra mim, que adoro Seu Guimarães.
E terminar com a batchan e o japinha foi uma graça a parte.
Repita-se.
Abraços,
Ana.
realmente esse texto é um presente ...
diz do prazer de se beber das imagens criadas e da leveza crua que nossos olhos acompanham no dançar das palavras .Seja benvinda neste presente .
Lúcia
Apesar de entender português melhor que o Peter, ainda tenho dificuldade para apreciar o Guimarães Rosa.
Mais uma coisa é certa - seu talento, Daniela, me fez sentir a beleza da escrita que você gosta tanto.
Vou ficar distraída...toda sorriso...boba, boba...Esses comentários tão bonitos de doer, quase um crime... Agradeço, muito, a todos, que conheço e não conheço... Tudo com graça...tudo bom de sentir...:)
Que belo texto! Daqueles que tocam a alma...
Percorre e faz viver a linguagem de Rosa ao mesmo tempo que inaugura um campo novo, já outro, próprio e então original! Parabéns Daniela, um beijo grande
Daniela, como é bom criar asas e voar, estimulando nossos sentidos com a riqueza de um texto como o teu! É uma verdadeira “viagem”! Fico muito feliz por reconhecer em você um talento realmente surpreendente. Parabéns por essa revelação e siga sempre em frente! Abraços, Adelma
Daniela,
Parabéns pelo belíssimo texto, foi de emocionar, meus olhos se encheram d'água... Um pouquinho de lição de vida meio Guimarães, meio Daniela...
Muito sucesso pra essa pessoa especial que você é!
Beijos, Iara