Há anos que uma novela não conseguia me prender por mais de trinta minutos na frente da TV. E não foram poucas as tentativas: os tentáculos são longos e em qualquer jantar na casa da mãe ou da sogra, em qualquer festinha familiar lá está ela, plim-plim, com os choros e gritos de sempre.
Mas Caras & Bocas me pareceu diferente. Não porque a pintura seria o mote, mas porque de certa forma me cativaram os personagens, especialmente as crianças, e um bom personagem faz toda a diferença. Não estou falando do choramingo da mocinha Dafne (Flávia Alessandra), nem das maldades calculadas de Judith (Deborah Evelyn), mas ao redor do nhemnhemnhém havia a graça cáustica de Bianca (Isabelle Drummond) em contraponto ao desajeitado Felipe (Miguel Rômulo), um judeu (vivido por Sidnei Sampaio), uma menina cega (Danieli Haloten), famílias de negros e um macaco. Ou seja, todos os ingredientes para que se abordasse o preconceito racial, étnico, com os deficientes, os pobres, os velhos, de forma leve mas inteligente.
Infelizmente, porém, os ingredientes são muito melhores do que o bolo. Ou as tintas muito melhores que o quadro. A novela repete velhas fórmulas surradas e esgotadas, um maniqueísmo estúpido que associa bondade à burrice e maldade à esperteza, insiste em gracinhas repetitivas e não avança nas questões centrais. Pelo contrário, reforça estereótipos e preconceitos.
Vejamos alguns casos:
Benjamin, o judeu ortodoxo, dono de joalheria, é confrontado com as mil maravilhas do "nosso" mundo, inclusive uma estonteante mulher de cabelos vermelhos e pra lá de oferecida. Sua mãe, sentindo a tentação, arranja uma noiva ortodoxa e puritana, mas igualmente bela e loura e de olhos azuis. Benjamin fica balançado, e não se sabe o que vai acontecer. Mas importa? Já estão ali todos os estereótipos, o judeu é o careta (e rico), a mãe é a superprotetora, a noiva é uma ariana boba e a outra, esperta e sensual. Aposto que, se o público pudesse escolher, mataria a mãe.
Bianca, a princesa da novela, filha da rainha-protagonista, ganha a cena quando aparece com o inseparável Felipe, filho dos empregados da casa. Pobreza, para ela, é a treva. E repete o bordão a todo momento, com graça e ensaiada hipocrisia. Claro que de tanto repetir e vindo de uma atriz tão talentosa (ex-Emília), a ironia fica evidente, mas não há ninguém na história para dizer a ela o contrário, nem o amigo pobre jamais a deixou por isso. Parece que não há riscos em se odiar pobres e pobreza, apenas vantagens, o que está, vamos combinar, muito longe da realidade.
No núcleo pobre, aliás (não sei quem inventou essa história de núcleo nas novelas, é todo mundo rico ou pobre, ainda que pobre seja modo de falar), há outro romance interessante, do garçom Anselmo (Wagner Santisteban) com a menina cega Anita. Anselmo, com medo que Anita o rejeite, finge ser um milionário, e em diversos diálogos com a dona da pensão onde mora é humilhado não porque deveria falar a verdade e superar as barreiras, mas porque não tem condições de sustentar uma moça cega. Como assim? Quer dizer que um rapaz honesto não pode namorar uma cega apenas porque é garçom??? Provavelmente acabarão juntos, para a catarse popular, mas fico imaginando os milhares de jovens garçons, cobradores de ônibus ou lixeiros vendo a novela e pensando em seus sonhos de progredir, ter uma família, uma casa.
Ada (vivida por Amanda Azevedo), é a criança do "núcleo pobre", não por acaso negra. Uma graça de menina, desenvolta e de olhar vivo. Filha de pais trabalhadores, sonha ser dançarina e está sendo treinada pela dona da pensão, que nas horas vagas a faz ir com Anita, a cega, até a frente do restaurante ajudá-la a vender rosas. Claro que sem os pais dela saberem, afinal de contas a menina é bonitinha mas é negra, e bem pode ficar de pé vendendo rosas mesmo que em casa tenha comida, calor e afeto dos pais.
Na verdade, no bairro tem outra criança, o quase adolescente Espeto (David Lucas), sósia do Harry Potter, filho de Denis (Marcos Pasquim) e amigo do macaco. Aqui fica evidente o tipo de valores transmitidos por novelas como essa: o pai, pintor fracassado, um dia descobriu um macaco que pinta e alguém que se apaixonou pelas obras, prometendo fama e dinheiro. Com a ajuda do filho, fazem de tudo para que o macaco não seja descoberto e continue pintando. A pose do galã é de quem tem peso na consciência, mas sempre incentivado pelo filho (e criança pode tudo, não é mesmo?), mantém o plano e sabe-se onde vai dar. Também não importa: o fim justifica os meios.
E nem as mulheres, público sempre fiel das telenovelas, estão a salvo: quando não são bonitas, estão fadadas ao fracasso - Ísis (Carina Porto) -, e quando o são, devem arrumar um marido que traga mais vantagens possíveis. Aliás, é isso que faz a protagonista o tempo todo, arrumar alguém para casar a fim de herdar ações e dinheiro, e também Simone (Ingrid Guimarães), a amiga, e Milena (Sheron Menezes), a filha da empregada.
Aliás, no último capítulo que assisti antes de escrever este texto, Milena foi vítima de mais uma armadilha da malvada caricata Judith, que fez todos acreditarem que a menina roubara um anel. O dono do restaurante, sem pestanejar, chamou a menina e revistou sua bolsa. Claro que encontrou a peça lá, e todos, inclusive os garçons, acreditaram imediatamente na versão do roubo. Afinal, ela é negra, fica mais fácil associar o roubo a uma negra. E mesmo que a sinopse afirme ser ela "bonita e íntegra" e ter "orgulho de ser quem é, de seus princípios e valores", caiu facilzinho na lábia do riquinho malvado Nicholas, seu pseudonamorado, não por acaso branco (não sei por que nunca apareceu sendo cortejada por alguém mais próximo a ela, mesmo sendo realmente bonita, como se homens "comuns" não a interessassem, apenas filinhos de papai).
Enfim, é interessante observar como é difícil mudar uma visão de mundo construída há tanto tempo e com tanto cuidado pela plim-plim, onde o que impera é o consumo e as relações sociais nada mais são do que convenções e interesses de um lado, paixões descabidas e eternas de outro. Num mundo assim, os personagens são todos planos, sempre bons ou maus, sempre a favor ou contra a rainha, e a rainha é sempre linda e rica e loura. Até porque o resto, é a treva! E o que interessa, mesmo, é o horário comercial.
Já me antecipando ao comentários inevitáveis: "As novelas apenas retratam o que acontece na sociedade". É. Mas poderia não ser assim, seria melhor que não fosse assim...
Estava procurando por algumas notícias a mais sobre "Caras e Bocas" e encontrei este site. Me interessou o fato de parecer que se tratava de uma crítica à novela (não sabia ainda se positiva ou negativa) e, por ser exatamente o que procurava, deicidi entrar. Gostei de seu texto, Marcelo. Apesar de eu gostar bastante da novela (principalmente pela leveza e simplicidade que tem faltado nas outras), acho que você fez um retrato bem honesto sobre o que ela nos passa. Acredito que, por tudo que você falou, a novela esteja sendo melhor recebida do que as duas últimas do horário, afinal de contas, as pessoas se identificam com esse tipo de mundo, pois todos nós somos um estereótipo e, quem não é, acaba sendo por tabela por terceiros, fato que Walcyr traz à luz em seu texto. Repare na personagem Bianca (para mim, a melhor, disparada, até por que a Isabelle é talentosíssima) e você comprovará o que estou dizendo. Mas você está de parabéns, poucas críticas vejo na internet com tanta lucidez e visão assim.