Ao contrário da maioria das pessoas, meu primeiro contato com a obra de Zé Rodrix, morto em 22 de maio passado, se deu, não por meio das suas canções, ou da sua carreira como publicitário, mas do seu trabalho como escritor. Não que eu desconhecesse algumas músicas consagradas de sua autoria como "Casa no campo" e "Mestre Jonas", ou os jingles criados por ele para comerciais célebres, como os da Chevrolet e o das lojas Marisa, que embalaram a programação televisiva da década de 1980. Eu, apenas, não os havia associado ao nome de Zé Rodrix, sobretudo porque eu nem sabia ao certo quem era Zé Rodrix. Isso até uma manhã situada em algum momento entre os últimos meses de 1998 e os primeiros de 1999, quando a agente literária Ana Maria Santeiro me incumbiu de ler e dar o meu parecer sobre os originais de um romance épico que havia acabado de lhe chegar às mãos. A obra tinha o curioso nome de Diário de um construtor do Templo e narrava os primórdios da Maçonaria durante a construção do Templo de Salomão, em Jerusalém. O calhamaço de cerca de trezentas páginas impressas em espaço único me intimidou a princípio, mas, ao iniciar a leitura, logo me apaixonei pela história e cheguei ao seu final rapidamente, convicto de que me encontrava diante de uma portentosa obra literária. Meses mais tarde, vim a descobrir que eu havia sido um dos primeiros leitores desse que foi o romance de estreia de Zé Rodrix.
Zé, carioca radicado em São Paulo havia quase três décadas, era amigo de Ana Maria de longa data ― ambos foram colegas no até hoje conceituado Colégio de Aplicação da UFRJ, no Rio de Janeiro ― e, após uma longa e exitosa carreira na música e na publicidade, decidira enveredar, também, pela literatura. Estimulada pelo meu parecer favorável, Ana Maria ofereceu o livro à Editora Record, que o lançou numa belíssima edição, no final de 1999. A noite de autógrafos, seguida de um jantar, aconteceu na Livraria Saraiva de um recém-inaugurado shopping center do Rio, e contou com a presença de algumas personalidades ligadas às artes, como a escritora Angela Dutra de Menezes e a atriz Analu Prestes, além da própria Ana Maria Santeiro. Foi precisamente nesta noite, chuvosa e friorenta para os padrões de fins de novembro, que estive com o Zé e sua mulher, Julia, pela primeira vez e, durante horas, conversamos os três como se nos conhecêssemos havia anos. Na dedicatória que Zé me fez no livro está registrada a data exata deste encontro: 29 de novembro de 1999.
Nessa ocasião, a confraria dos Estertores da Razão, fundada por mim e um grupo seleto de amigos, em 1998, passava por um período de acentuado crescimento, com a gradual adesão de novos membros e a intensificação dos debates sobre toda sorte de temas no fórum de discussão do grupo, na internet. Durante um desses debates, Ana Maria Santeiro, que ingressara nos Estertores no começo de 2000 e, desde sempre, fora sua entusiasta, percebeu que o assunto interessaria ao Zé e encaminhou as mensagens a ele, que respondeu na mesma hora, como era de seu estilo e logo se entrosou com todo mundo, sendo imediatamente incorporado ao grupo. Foi a partir deste momento que o fórum viveu sua fase de maior efervescência, quando discussões de altíssimo nível rolavam entre os membros, numa intensidade impressionante, a ponto de, em junho de 2000, o fórum ter registrado a incrível marca de mais de cem mensagens diárias. Isso, vale lembrar, numa época em que o acesso à internet era discado, e a navegação incomparavelmente mais lenta e precária do que hoje em dia, com quedas constantes de conexão e dificuldades para enviar e receber e-mails com arquivos de tamanho superior a 500KB.
A convivência nos Estertores da Razão selou o nosso vínculo com Zé Rodrix, mesmo depois que o fórum perdeu fôlego e a comunicação entre nós rareou, sendo plenamente retomada apenas no final de 2005, quando eu e Zé publicamos novos romances quase em simultâneo. Foi, então, que descobri que seu livro de estreia se transformara no projeto de uma trilogia, cujo objetivo era contar a história da Maçonaria (Zé era maçom desde 1991), a Trilogia do Templo, que eu considero, sem exagero, uma das mais fantásticas obras literárias produzidas no Brasil na última década, totalizando 2.100 páginas impressas e dezenas de milhares de exemplares vendidos, além de um prêmio importante, o Lima Barreto, concedido pela União Brasileira de Escritores por Diário de um construtor do Templo. Uma obra que, apesar de tudo isso, não recebeu a merecida atenção da nossa combalida imprensa cultural, de tal modo que pouquíssimos foram os jornalistas literários a mencioná-la nos dias seguintes à morte do Zé. Em 2005, estava sendo lançado o segundo volume da trilogia, Zorobabel ― Reconstruindo o Templo, ao mesmo tempo em que o primeiro, Diário de um construtor do Templo tinha o título alterado para Johaben ― Diário de um construtor do Templo a fim de dar à série um sentido de uniformidade.
O terceiro livro, que encerra a trilogia falando sobre a relação entre os Templários e a Maçonaria, Esquin de Floyrac ― O fim do Templo, saiu em 2007, e coube a mim redigir a orelha. Foi preciso voar contra o relógio para dar conta da tarefa. Isto porque, em setembro daquele ano, Ana Maria Santeiro completaria trinta anos como agente literária e pretendia comemorar a data com o lançamento de um livro "forte" de um dos seus autores. Esquin de Floyrac estava programado para sair somente no ano seguinte, mas Ana Maria intercedeu junto à editora, que acabou antecipando a publicação para setembro. Dessa maneira, todos os procedimentos necessários para transformar os originais numa obra impressa tiveram de ser acelerados, inclusive a redação da orelha. No final de junho, Zé Rodrix me telefonou e propôs, num leve tom de desafio: "Vou te mandar o livro por e-mail. Você consegue ler tudo e aprontar a orelha em cinco dias?" (detalhe: os originais tinham quase quinhentas páginas em Word e eu tenho enorme dificuldade em ler textos longos em qualquer superfície que não seja um papel). Respondi-lhe que sim, sentindo a responsabilidade me pesar nas costas. Ele mandou o arquivo e eu não só o li detidamente em menos de dois dias ― depois de imprimi-lo, naturalmente ― como ainda reli os dois títulos anteriores a fim de situar a apresentação da orelha no contexto da trilogia. Em cinco dias, o trabalho estava pronto, o livro foi para o prelo e pôde ser oficialmente lançado na Bienal do Livro no Rio de Janeiro, na data programada. Dois meses depois, Zé Rodrix repetiu a dose e promoveu um novo lançamento, desta vez em pleno Palácio Maçônico do Lavradio, uma belíssima construção neoclássica no coração do Rio, antiga sede do Grande Oriente do Brasil. Lá, eu, Ana Maria Santeiro e alguns amigos tivemos a oportunidade única de assomar nos salões normalmente vetados à visitação pública e assistir a uma cerimônia da Maçonaria, aberta para alguns convidados, que precedeu uma palestra emocionante, na qual Zé conclamou a todos para as nossas responsabilidades em relação aos rumos da sociedade e do país.
A essa altura, a confraria dos Estertores da Razão havia retomado o ritmo do início da década, sobretudo depois que eu, Zé e Ram Rajagopal nos encontramos durante o lançamento do meu thriller 120 horas, em São Paulo, em janeiro de 2006. Com o grupo reunido novamente e a carreira literária de Zé Rodrix a toda, passamos a nos ver constantemente, sempre em torno de alguma efeméride literária. Quase sempre acompanhado de sua mulher, Julia, Zé nunca deixava de nos chamar para os eventos dos quais participava no Rio e, quando algum de nós ia a São Paulo, era praxe entrarmos em contato com ele. Com uma retórica acelerada e contagiante, Zé não permitia que uma roda de pessoas na qual ele estivesse presente ficasse em silêncio. Ele dava a impressão de deter um conhecimento infinito sobre todos os assuntos, conjugado com uma ânsia de transmiti-lo a quem estivesse aberto a recebê-lo.
Nos últimos quarenta meses, o fórum dos Estertores esteve diariamente tomado por uma troca incessante de mensagens, em torno de debates acalorados que pareciam intermináveis. Hoje, ao abrir minha caixa de e-mails, a sensação de não ver nenhuma nova mensagem do Zé é estranhíssima. E, acima de tudo, pesarosa. Assim como é pesaroso imaginar que não poderei mais trocar idéias com ele e ouvir seus conselhos e orientações. Não haverá mais os jantares e passeios por Copacabana ou pelo Centro do Rio, quando ele e Julia vinham à cidade. Não haverá mais espetáculos como o que ele fez com Tavito no Café Aurora, em São Paulo, em 2007 e no qual levou todo mundo às gargalhadas ao tropeçar na subida do palco e se justificar dizendo que era uma homenagem a Liza Minnelli, que estava se apresentando naquela semana na cidade. E, mais do que tudo, não seremos mais brindados pelo seu talento literário, prematuramente interrompido. Com a Trilogia do Templo encerrada, Zé estava preparando uma segunda trilogia que pretendia recontar os bastidores da história do Brasil, sempre pela ótica da Maçonaria. O primeiro volume, O cozinheiro do Rei, estava com a redação bastante adiantada, mas os dois seguintes prometiam fazer um barulho incômodo, já que Zé estava disposto a contestar a própria natureza do que se convencionou chamar de cultura brasileira, afirmando que boa parte dela seria, ainda hoje, subsidiária de um modelo forjado durante a ditadura Vargas. Mais de uma vez o vi se perguntando por que Getúlio Vargas nunca era lembrado como um ditador. Um ditador que, durante o Estado Novo, liderou um regime repressor tão ou mais violento do que o verificado nos anos pós-1964. Ele pretendia tocar nesta ferida e em outras. E poderia abrir um debate necessário ao Brasil contemporâneo, ainda preso a crenças tão irracionais quanto prejudiciais ao bom andamento da nação. No entanto, essa obra, dificilmente será escrita, pois o autor, em primeiro lugar, precisaria ter o fôlego e a obstinação do Zé para pesquisar (uma simples consulta à bibliografia da Trilogia do Templo é o bastante para se ter uma noção da dimensão dessas pesquisas). Em segundo, ele necessitaria de vocação para romancear os fatos históricos com competência e emoção, sem resvalar no didatismo e na descrição mecânica dos acontecimentos. E, em terceiro, e talvez mais importante, o autor precisaria ser um intelectual de pensamento independente, sem os ranços acadêmicos e ideológicos que tanto contaminam o pensamento brasileiro. Existem no Brasil, é claro, pessoas com tais talentos. Mas dificilmente com os três talentos reunidos, com o adicional de pertencer à Maçonaria e ter acesso aos seus arquivos e a todo o conhecimento que a ordem propicia aos seus membros.
A última vez em que estive com Zé Rodrix foi na "showlestra" de lançamento da caixa reunindo os títulos da Trilogia do Templo, realizada na Livraria Argumento do Leblon, Rio, no começo de maio. Chegamos a nos falar pelo telefone alguns dias depois e sua última mensagem para o fórum dos Estertores da Razão foi postada às 19h32 de 21 de maio, poucas horas antes de sua morte. O choque da perda de Zé Rodrix, ainda não totalmente digerido, me lançou numa espiral de questionamentos sobre o sentido da vida. Ele não era, de forma alguma, uma pessoa que já tivesse cumprido o seu destino. Além disso, levava uma vida saudável, não fumava ou bebia e tampouco padecia de estresse ― seu entusiasmo pelas coisas era a prova disso. Sua carreira artística, do mesmo modo, encontrava-se num excelente momento, em todos os campos nos quais atuava. Se há alguma lição a ser extraída deste episódio é a de que a vida humana é frágil, curta, por mais longa que seja, e pode acabar daqui a dois segundos. Trata-se de uma constatação óbvia, mas da qual poucos parecem se dar conta. Portanto, nunca é demasiado fazer uma reflexão e pensar naquilo por que realmente vale a pena lutar ou por que vale a pena se aborrecer. Não perder tempo, por exemplo, com bobagens mesquinhas e polêmicas tolas que só conduzem a
uma animosidade e a um rancor que envenenam a alma e as relações
humanas inutilmente. Tampouco se atribuir uma importância excessiva ou pretender ter a posse inconteste de alguma verdade. E, no entanto, buscar sempre a verdade, ainda que seja preciso contrariar algumas das nossas mais arraigadas paixões. Essas eram algumas das muitas noções positivas que Zé Rodrix sempre procurava reforçar e que acredito ter aprendido com ele. Noções que podem ser resumidas numa frase de Oscar Wilde: "a vida é importante demais para ser levada a sério".
O Zé nos deixou com muitas saudades (a caixa de entrada de meu e-mail nunca mais será a mesma!), mas seu legado é uma marca que não se apaga. Que surjam novas pessoas com sua capacidade de crítica e contestação.
Zé Rodrix é o protótipo do brasileiro honesto e engajado. Sua inesperada partida provoca uma sensação de que, a qualquer momento, ele abrirá aquele sorriso maior que ele e dirá: - Voltei.
Conhecia Zé Rodrix apenas como um entre tantos artistas. E, como tantos brasileiros, desconhecia que a linda música "Casa no campo" era de sua autoria. Mas, lendo seu artigo, você nos deu a imagem de um grande homem e, principalmente, de um homem de muita sensibilidade. Sinto por você, pela ausência desse bom amigo. Sinto por nós, brasileiros, que desconhecemos tanto nossos artistas, nossos escritores, nossa cultura. Mas que textos como o seu possam ser uma luz para que a mídia possa dar voz e imagem a todos os artistas...
Zé Rodrix foi um ótimo amigo, com quem troquei mensagens diárias nos últimos 4 anos. Ele também foi um dos mentores dos Estertores da Razão, criando e mantendo discussões sobre vários tópicos e propondo novas ideias. Ficam três coisas desta convivência: celebre os amigos, cumpra seu papel na vida, e questione sempre. Zé nunca transformava discussões de ideias em brigas pessoais, mas sempre levava muito a sério a possibilidade de transformar alguém a partir de uma conversa ou reflexão.