Sinto como se me vigiassem, inquisitivos: eles, meus livros. Lombadas impassíveis, ombro a ombro, como um escudo em cada prateleira; seus nomes proclamam todas as idéias, todas as belezas, toda a dor de cada um dos romances, contos e poemas que já li. E então, Daniela, qual livro você vai escolher? Vasculho as estantes, estas aqui, exiladas, dominadas pelo outro idioma, o inglês, e pelos títulos de história filosofia arte sociologia e arquitetura, por ensaios e teoria, teses e crítica (suspiro). Eu aqui nos EUA, fazendo meu doutorado. Quem há de carregar livros, os livros da vida inteira, numa mudança temporária? No Brasil, as paredes do meu quarto abarrotadas, minha mãe coitada quase se afogou em tanto livro quando fez a mudança da casa. É lá que estão os outros: lá os romances, contos e poemas, lá o português dos autores intraduzíveis. Vasculho aquelas estantes também. Elas também me vigiam.
Tantos livros há tanto tempo, tão pouco tempo para os livros que ainda faltam: resultado, não releio, quase nunca. Esses livros habitam minha vida fisicamente, os volumes criando pó, as capas invólucros mudos e os textos escapando aos poucos da memória – sem que eu perceba. Afinal, esqueço o texto, mas ainda amo a obra. Lembro-me não do discurso dos autores, mas do meu próprio; com o tempo, até esse esqueço, e guardo apenas o vago sentimento: daquele livro gostei, o outro amei; um abriu mundos, outro roubou as palavras da minha boca; naquele mergulhei como uma alucinação, o outro levou meses para terminar.
Fora o fetiche dos livros como objeto concreto – a decoração involuntária formada pelas cores das capas, a curiosa série de mensagens enunciada nos títulos, nomes de autores, editoras –, sem falar na já abandonada ilusão da osmose (ah, se os livros entrassem na minha cabeça apenas por dividir o mesmo quarto...), há outras maneiras pelas quais os livros nos definem, ou me definem. Trocar, no primeiro encontro amoroso, confidências sobre os livros preferidos, como a sondar terreno. Transcrever passagens prediletas, epígrafes da nossa vida. Nunca mais ver o mundo da mesma forma, depois de ler aquele romance! Habitar por semanas um universo paralelo, deixar o livro invadir os sonhos, os afetos, os humores. E por fim – o maior terror? – ver meus próprios escritos impregnados involuntariamente pelos escritos dos outros que já li.
Delongas. E então, Daniela? O velho recurso, um monte de palavras, a distração da escrita, e ainda não citei um título sequer. O mais espantoso é que passei semanas recitando as obras e os autores favoritos, uma profusão de nomes e de motivos para escolher um ou outro (senão como prediletos, ao menos como tema desta coluna). Tenho pruridos, como se estivesse lidando com gente: como decidir a ordem de menção dos livros? como deixar claro que a seqüência à qual me obriga o fluxo da língua não corresponde à hierarquia afetiva ou intelectual? E quem disse que há hierarquia? E quem disse que não há? E os gêneros? E os híbridos?
Claro que tenho pruridos como se estivesse lidando com gente. “Os livros que amamos” – título deste especial – revela muito menos dos livros, os amados, e muito mais de nós, que amamos. Demoro a desvelar os nomes, os primeiros títulos da lista, como quem hesita ao remover a peça de roupa. Penumbra, por favor...
Sim, porque não há outra maneira de contar por exemplo que apesar de todas as minhas pretensões de originalidade eu também rezo pela cartilha dos livros-comuns, primeiros-clichês, como numa lista dos dez-mais publicada na virada do milênio: Grande Sertão: Veredas; No Caminho de Swann; O Retrato do Artista Quando Jovem; Hamlet, Macbeth, Rei Lear; contos de Chekov, estórias curtas de Wilde, Esperando Godot, Fernando Pessoa, Walter Benjamin, Werther, Fausto.
Ou como mostrar, então, as minhas idiossincrasias, o fato de eu amar segundos-livros, “obras menores”: de James Joyce, os Dublinenses; de Italo Calvino, Marcovaldo; ou de amar segundos-autores, aqueles que perderam favor intelectual ou saíram de moda: Mario de Andrade (a obra toda, poesia e prosa), Fitzgerald, Singer; ou o fato de eu ter chorado no final de O Nome da Rosa porque nunca mais poderia ler o livro pela primeira vez. Ou, mais curioso ainda, os motivos para gostar de cada obra – como uma certa refeição de ervilhas descrita num dos contos Dublinenses (que infelizmente não consegui achar a tempo de citar aqui), uma das passagens mais tocantes que já li (mais tarde, vi o comentário de um crítico dizendo que essa é uma das refeições mais melancólicas da literatura – hum, não fui a única a prestar atenção na tal passagem!). Ou outra refeição – uns miolos refogados que o Marcovaldo come, ou tenta comer, numa de suas desventuras urbanas. Esse episódio, juro, levou-me às lágrimas.
Terminar esta coluna não há de ser mais fácil que o resto do percurso. Hoje a memória, persuadida mais por fadiga que por julgamento, me oferece essa lista limitada de motivos e pensamentos, títulos e nomes. Amanhã, antes mesmo que eu releia meu relato, irei me lembrar de todos os outros, serei invadida pelos livros esquecidos, pelas passagens fundamentais que não citei, pelas minhas próprias razões – ainda que eu possa tentar me reconfortar (nos confortar), observando que afinal as nossas afeições e idéias mudam mesmo o tempo inteiro.
Ainda sinto como se me vigiassem. Fugi da questão. Como sempre, não escolho. Você tem idéia do quanto demoro quando vou à livraria? Não é só indecisão. Sou dispersiva. Enfio-me em alas secundárias, vielas; distraio-me. Distraio-me agora: terá todo leitor o impulso de escrever também, assim como eu? Na minha estante uma lombada não tem título: é um caderno, um diário, em forma de livro. Ler é tão fundamental que não consigo adormecer sem pôr meus olhos sobre ao menos um par de páginas. Surpreendo-me com colegas que contam ter passado o verão inteiro sem ler um livro. Ou aqueles (a maioria) que deixam de ler ficção durante o semestre porque os textos obrigatórios para os cursos já são carga de leitura suficiente. Ora, como se eu fosse ler “apenas” o que me mandam!... onde eu estava mesmo? Ah, o diário. Queria dizer, aliás, de novo, como não vivo sem livros – ah, que clichê! Esses livros todos pedindo uma resposta. Lembro-me menos do discurso dos autores do que do meu próprio... esqueço o texto, ainda amo a obra. Como responder à questão – os livros que amamos, quais? – senão com o desvio de caminho, digressões? Ler, sem parar; não há um livro apenas, não há só um livro. Sem falar naqueles que ainda virão.
Caríssima Daniela.Gosto de como você escreve.Seduz.Gostaria que você comentasse nas próximas colunas aqueles livros que te comoveram.Mais um de cada vez.Abraços.Contineu escrevendo.
Daniela
Essa vez deu fome.Me lembrei do cozido que o marinheiro comeu no inicio de Moby Dick. A tua escrita começa a dar fome de ler.Um abraço, Jacques.
Querida Daniela
Que bom ler você mais uma vez! E desta vez quis mandar meu comentário para lhe dizer que sinto, frequentemente, como você, essa espécie de nostalgia ao ver um livro querido e pensar que esqueci o texto embora continue amando a obra. Sabendo que deixou uma marca, que acabou fazendo parte da minha vida, mas sem conseguir mais encontrar os contornos de tudo isso. Eu achava que era uma questão de idade. Fico reconfortada ao ver que você expressa um sentimento semelhante. Obrigada, um abraço saudoso, Ligia
Daniela. Adoro teus textos, a identificação é enorme, principalmente quando você fala das pessoas que não têm tempo para leituras que não sejam as obrigatórias; mas isto só entende quem descobriu este universo sublime. Parabéns.