Nariz de cera é o nome dado ao preâmbulo de determinado texto ou discurso, preâmbulo este normalmente criativo, literário, que tem o objetivo de fisgar o leitor para o que vem a seguir. Neste texto, por exemplo, tudo que escrevi até agora é nariz de cera para falar do livro Agora eu era (Record, 2008, 192 págs.), estreia da jornalista gaúcha Claudia Laitano em brochura.
Claudia é jornalista especializada em Economia da Cultura, editora da área cultural do maior diário porto-alegrense, a Zero Hora, e desde 2004 publica crônicas semanais no jornal num espaço que divide com nomes como Luis Fernando Verissimo e Martha Medeiros (revelada, aliás, pelo próprio jornal). Agora eu era reúne 61 dessas crônicas sob a costura do título inspirado em Chico, "uma expressão absurda na fala cotidiana, ainda que perfeitamente lógica no discurso da fantasia infantil, 'agora eu era' condensa um sentido de transitoriedade que lembra um pouco a metáfora do rio. Quando a brincadeira começa, 'agora' já não existe mais e 'eu' já é um novo personagem".
O resultado é uma boa leitura de férias ou fim de semana, para se folhear embalado numa rede ou deitado num parque, com textos curtos, tiradas inteligentes e abordagens leves. E leitura que deve ser feita acompanhada de um lápis, pois haverá frases e metáforas que você não quererá deixar escapar, como esta: "o clichê, vocês sabem, é o chuchu do idioma: é feio, não diz a que veio e sempre pode ser substituído por algo mais saboroso".
E olha que fugir do clichê e do estereótipo, em crônica, não é nada fácil (que o diga sua colega Martha Medeiros). Mas Claudia consegue, ao associar a Barbie à Hermione do Harry Potter, e esta à Helena de Tróia. Ou ao comentar o abuso do uso de antidepressivos entre os jovens a partir do filme 9 canções, em que Lisa, a protagonista, toma remédios contra a depressão:
"Sou do tempo em que a gente curava baixo-astral enfiando a cabeça no travesseiro e chorando. Não recomendo o método a ninguém, mas uma vantagem ele tem: encarar a dor de frente, sem medo de desmoronar, nos ensina que somos mais fortes do que imaginamos."
São poucas, aliás, as crônicas em que Claudia revela de frente seu posicionamento, apresenta armas, argumentos. Em geral a autora se revela excelente leitora, dona de um texto maduro, alguém com sensibilidade para falar de si sem deixar de olhar para os lados, para citar livros, filmes e discos respeitáveis, para fazer metáforas como a do clichê com o chuchu, mas que, como cronista, parece ser mais o que os leitores esperam de si.
Nesse sentido, Claudia muitas vezes escreve com uma coloquialidade ensaiada, evitando excesso de erudição e alternando temas leves como "a crise dos enta" com temas mais sérios, como o aborto, nunca se aprofundando demais nas questões e, muito menos, expondo seus argumentos com convicção. A estratégia aqui é outra: apostar num enorme nariz de cera para no final nos levar ao tema em questão e à opinião da autora, já no último ou penúltimo parágrafo. O bom é que os textos assim ficam leves, como devem ser naquele espaço de jornal, mas o grande problema é que sentimos falta do debate, dos argumentos, da autora que se ensaia mas não se liberta no próprio texto. Muitas vezes, inclusive, se começa a ler um texto sobre um assunto e se termina em outro completamente diferente, como em "Leitores (e eleitores)", em que Claudia começa falando do livro O último leitor, de Ricardo Piglia, e termina lembrando que "amanhã é dia de eleição", dia em que "errar talvez seja inevitável. Mas quem se informa erra menos. A política é torta, mas a gente sabe bem que poderia ser outra coisa".
Como assim? Primeiro, qual a relação com o livro de Piglia? Segundo, e talvez mais importante, quem disse que a política é torta, que poderia ser diferente? Diferente como? Para quem? Por que errar talvez seja inevitável? Os candidatos são ruins? Como acertar, e o que é acertar? Claro que estas questões ficam sem resposta, porque o texto acaba aí, dando a impressão de que as últimas frases encerram verdades óbvias que não precisam de debate. Mas será que não mesmo?
Não é uma questão de conteúdo, a autora tem todo o direito de ser de um ou outro lado político (ou de nenhum lado), a favor ou contra o aborto (tema de "Temporão"), a favor ou contra o uso de histórias infantis homossexuais em escolas (tema de "Autoridades Polonesas"), a questão é que o nariz de cera por vezes se torna maior que o tema de fundo e o debate, simplesmente, não existe.
Talvez seja uma estratégia para lidar com aquele espaço do jornal, para manter o tom leve e coloquial, mas confesso que o livro deixa uma sensação de reticências. Eu sentaria com prazer numa mesa com a autora e ouviria horas suas opiniões acerca desses temas cruciais, pois se percebe que ela tem muito a dizer. Suas crônicas, porém, não conseguem transmitir essa profundidade, muito por causa do espaço a que estão confinadas no jornal, um pouco pelo tipo de tratamento necessário numa mídia de massa.
Por isso espero que não pare por aí, que depois dessa estreia com a coleção de crônicas surja um texto feito especialmente para livro, talvez uma novela, quiçá crônicas mesmo, mas textos que revelem um pouco mais da Claudia Laitano que Agora eu era apenas sugere.
Não é apenas para o espaço do jornal, mas também o próprio formato crônica que não sugere ou enseja opinião. O autor não está ali para construir ou dizer para o leitor "concorde comigo". Acho que os leitores (e eleitores) ainda aguardam ansiosamente por alguém que "forme a sua opinião" - o que o autor parece querer da Claudia Laitano. Da autora, li algumas crônicas, que cumprem a função que entendo ser do gênero (também preciso me posicionar?): curtas tiradas boas, leves, inteligentes e provocativas de temas do cotidiano.