(Atenção, atenção: inicio aqui a seguinte discussão. Pense bem.... O que te faz ler um livro?)
Com o sol incidindo teimosamente em meu olho direito, virei novamente o rosto para encontrar o sujeito com seu óculos e seu celular tão ativo no Ozzie's, um café em Park Slope, distrito do Brooklin, em Nova York. Dei uma risada e mordi meu cheesecake. Tão caricato e, ainda assim, tão real. Mas quem sou eu para dizer se o cara é caricato ou não? Vejo-o gesticulando com firmesa com a mão direita, e depois puxando de uma pilha de fichas a de número três, e lendo-a, e comentando-a para o sujeito com quem conversava através do celular. Levanto-me. O excelente cheesecake de limão desmancha-se no céu da boca, encontro uma pilha de jornais do bairro em um dos cantos do café. Ao lado da pilha de jornais, um cartaz propagandeando um curso ultra-eficiente para escritores aspirantes. Talvez, penso eu, Park Slope seja algum tipo de nova matriz mundial de escritores. E eu passeando por aqui, como um bobo, um fã.... caricato. Quem sou eu para achar esse sujeito com celular um tipinho com ares de sabichão literário?
Paul Auster, meu escritor favorito, vive por aqui.
"Sim, ele vem aqui com freqüência", diz o vendedor de óculos e cara tímida da Community Bookstore, supostamente visitada com assiduidade pelo autor que gostaria de encontrar. "Passa por aqui, pela calçada, com seu cachorro. Às vezes entra para dar um oi e comprar um livro"." Mas ele é falador? Ou é do tipo quieto e retraído?", pergunto eu, nem tentando disfarçar minha genuína bisbilhotice. "Bom, ele às vezes é retraído, às vezes é mais falador", responde o sujeito. Para meus registros: Paul Auster é de lua.
Respirando o ar da manhã, chutando as folhas secas de outono, cruzo a 7th avenue e pego a 5th street. As casas todas decoradas para o Halloween, que gracinha esta atmosfera bucólica de subúrbio novaiorquino. Não, não fui o primeiro — quantas pessoas não foram a Dublin atrás do fantasma de James Joyce? Ou quantos outros não foram a Lisboa atrás do Pessoa? E os infinitos alemães que foram procurar a Gabriela perdida nas ruas cheirando a xixi de Salvador? Não obstante, eu tenho uma singular diferença — estou em Park Slope e Paul Auster pode estar logo alí, vivo, com seu cachorro. Ele está por aqui, eu sei. Há o elemento do acaso, o acaso que é uma coisa ridícula, risível. Mas para um bom leitor, ou bom pupilo austeriano, meio acaso basta.
Não é só o fato de um de seus livros, por acaso, ter "acaso" no título — "A Música do Acaso", que depois viraria filme. O acaso é, para ele, o elemento mais importante da vida. Um outro é a solidão. Quer mais um? A literatura, um metamotivo, por assim dizer. E o baseball? Não esqueço do Baseball — ele até inventou um jogo de baseball de mesa (vide "Da mão para a Boca"). São as nuances, as idiossincrasias e paixões, a personalidade fascinante de um cara que eu conheço tão bem. Que pode estar passando naquela esquina. Vou até lá.
Nada. Vejo de novo o céu azul, o sol branco na cara. Passa um carro com placa do estado de Wisconsin e as folhas se levantam no vácuo que se segue à sua passagem.
(O que te faz ler um livro?
Resposta um: Cultura. Leia então toda a coleção de Os Pensadores, a Divina Comédia, os clássicos, meu filho, os clássicos. Quando tinha 17 anos e estava fazendo vestibular, descobri que preferia ler os resumos do cursinho - triste confissão que há muito quero fazer... piedade, irmãos intelectuais, perdão.
Resposta dois: Busca de mistério, romance, encantamento, enfim algo a mais nessa sua existência tão emburrada. Fontes de mistério, romance, encantamento não faltam. Para mistério, Agatha Christie. Romance, sei lá, que tal um Henry Miller? Encantamento — aproveite e leia agora o Senhor dos Anéis antes da estréia no cinema, quando Tolkien definitivamente vai ficar mastigadinho e perder muito de sua graça.
Resposta três: sem resposta. Como eu. Bom, continue a ler este texto, então.)
Falando sobre "A Música do Acaso", eis como eu comecei. Estava passando pela Avenida Paulista, em São Paulo. Uma loja vendia livros de ponta de estoque, aqueles vendidos a preços de banana porque estão há séculos estocados e não houve a demanda esperada por eles. Pego num deles, sopro na capa para afastar a poeira. Gosto da capa, quatro ases dos quatro naipes do baralho e uma estrada em linha reta rumo ao horizonte. Gosto do texto na orelha — algo como um cara arriscando e entrando numa viagem sem volta. Caixa registradora soando. Foi como lancei o método revolucionário de comprar livros pela capa. Chame-me de superficial.
Pela capa, atravessei um portal de letras para o interior dos Estados Unidos.
Um sujeito ganha uma herança (que coisa inesperada! Eu compraria uma casa no Havaí). O tal sujeito do livro decide viajar pelos States torrando todo o dinheiro. E viaja e viaja, sem destino, apenas para viajar. Viaja sozinho. Tem saudade da filha, mas precisa viajar.
Seu dinheiro está acabando, e ele conhece um jogador de pôquer compulsivo. O tal jogador o convence a aplicar o que lhe resta da grana em um torneio particular — o tal atleta do carteado iria enfrentar dois milionários birutas num casarão no interior. E lá vão os dois, o dono da grana e o jogador de pôquer, para o torneio. O profissional do carteado quase ganha, mas por um lace de sorte, perde. E quando eles perdem que eles percebem que grande absurdo que é a vida, quando são forçados a fazer uma coisa completamente sem sentido para pagar a dívida.
(Resposta três: talvez você e eu não saibamos porque somos consumidores de livros e de literatura porque simplesmente não há nenhum sentido ou explicação oculta, mesmo. Dizer que não sabemos porque lemos seria, dessa forma, algo natural. Não sabemos porque não haveria o que saber, entende?).
Usando o método da capa — que agora recomendo aos que têm olho preguiçoso - conheci meu colega londrino Nick Hornby, um turco chamado Akif Pirinçi e um cara meio esquisito chamado Nicholson Baker. E continuando pelo método, e depois desvencilhando-me dele, voltei a Park Slope no Brasil e aqui em Londres. "A Invenção da Solidão", "Da Mão Para a Boca", "Mr. Vertigo", "Leviatã", "Timbuktu" e "In the Country of Last Things" passaram pelas minhas mãos. Lindas capas. E, sim, antes que você me pergunte, foi sim pura obra do acaso o fato de que eu ainda não li a obra mais conhecida de Auster, "Trilogia de Nova York". Elogio meu destino, degustar-lo-ei com paladar mais acurado quando a roda da fortuna nos colocar frente a frente, no futuro.
Ainda que seja seu trabalho de maior repercussão, acho que dificilmente "Trilogia" poderá surpreender um leitor incauto que tenha deslizado antes pelas páginas de "Leviatã" — um livro brilhante, que deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas americanas especialmente no momento que estamos vivendo. Auster tem um cuidado especial com a forma como começa os livros. O início sempre é bombástico; contém alguma afirmação ou fato que, automaticamente, te chama para a história. Isso faz com que freqüentemente ele escreva na forma de flashback seus romances, já que tende a colocar o fato decisivo da trama inteira logo no primeiro parágrafo, e depois se explicar. "Leviatã" não é nenhum tipo de analogia à obra de Hobbes, embora fale sobre um estado imenso e poderoso, que treme quando estruturas verticais são alvos de atentados terroristas. Benjamin Sachs, escritor, é o terrorista autor das explosões, amigo do escritor-personagem que narra tudo em primeira pessoa. Auster encarna e reflete, autosarcasmo em relação a seu próprio trabalho, em relação ao paradoxo de todo autor, destinado a permitir que estranhos como eu entrem em suas cabeças.
A book is a mysterious object, I said, and once it floats out into the World anything can happen. All kinds of mischief can be caused, and there's not a damned thing you can do about it. For better and for worse, it is completely out of control.
(Resposta três: pense nisto. Que tal ler um livro que você não precisa ler? Bastaria tocá-lo e absorver, por osmose, toda a cor e o sabor, o vocabulário, toda a essência dos personagens, toda a riqueza do plot, suas nuances, suas esquinas obscuras, suas verdejantes pradarias. Não seria maravilhoso? Talvez por isso que você leia livros, não? Na vã esperança de que você possa devorá-los um dia como um bom hambúrguer com muita maionese, que desce bem rápido pela garganta. Há pessoas que não sentem o barato na primeira vez em que fumam maconha. Você é um desses, mas você não desiste — pica bem picadinho a erva literária, enrola ela bem apertada na seda e manda ver! Um dia você espera sentir. Diz! Diz que não é isso! Diz que não é esta a razão!)
A verdade é que meus pés são levados pela calçada para onde eu já estive e adoro estar. Li tantos livros de Paul Auster que agora não quero ler outro autor. Fiz uma opção, uma opção consciente — me alienar. Me alienar e pronto! Cada sentença de cada livro dele já está presente na minha cabeça antes de lê-la. É algo que as pessoas às vezes não entendem, mas sem dúvida nenhuma é uma coisa fantástica da literatura. Há o prazer de descobrir um novo autor. E há o prazer de ler o autor. E relê-lo, e degustá-lo, e aprendê-lo, e apreendê-lo. Quando você respira muito oxigênio, você pode ter alucinações. A mesma coisa com um autor — você pode ter alucinações por ler o mesmo autor, tantas vezes. Você começa a ver adolescentes andando pelo ar (Mr. Vertigo) ou observa cachorros e de repente começa a ouví-los pensar (Timbuktu).
Ou, por outro lado, pode ver uma outra realidade na mesma realidade.
Atravessei Park Slope. Depois das árvores, há um bairro feio, com casas sujas e velhas, quando termina o declive. O bairro feio tem uma grande avenida com pessoas pobres. A grande avenida leva a outra e eu, caminhando incansável, chego à ponte do Brooklin. "Leviatã" deveria ser leitura obrigatória para todo mundo agora que o mundo está acabando. E não só "Leviatã". Interessante foi que no mesmo dia em que cheguei a Nova York, terminei de ler "In the country of Last Things". Quando a liberdade acaba e o medo toma conta do mundo.
I can tell you of the ones I have seen, of the ones that are no more, but I doubt it will be time. It is all happening too fast now, and I don't keep up.
(Resposta três: Quer um conselho de quem também não sabe direito por que lê? Leia pelo mesmo motivo que as pessoas consultam videntes. Nunca se sabe se nas páginas de um livro qualquer estão ou não os presságios através dos quais você, por acaso, pode travar contato com a realidade e perceber que só as palavras lidas espelham a verdade.)
Arcano,
Acho leio porque, no fundo, tenho a convicção de que todas as explicações estão (ou estarão)escritas em algum lugar. Por causa desta convicção sou fisgada, sem resistência, pelos livros e textos que me passam pela frente...Como se fossem oráculos, com as respostas das minhas perguntas todas.
Abraços,
Ana