Durante a exposição da World Press Photo 2009, que acontece até o dia 19 de julho no Museu da Eletricidade, em Lisboa, uma das fotos chamou mais a atenção dos visitantes. Por coincidência, em meio a fotos do mundo inteiro, essa era brasileira. Um corpo estendido no chão. Em volta dele, crianças, risadas e conversa jogada fora. Como num bar, num encontro casual de amigos. Tudo normal. Como numa tarde qualquer, em que se sai para se divertir e distrair a cabeça. Porém, com um detalhe: há um corpo estendido no chão.
A foto em questão é de Eraldo Peres e ganhou menção honrosa na irônica categoria "Cotidiano". Foi tirada durante uma reportagem sobre violência em janeiro de 2008 para a agência de notícias The Associated Press (AP). Na imagem, é retratado o assassinato de Thiago Franklino de Lima, de 21 anos, morto na Favela do Coque, no Recife. Thiago permanece ali, sob a indiferença dos olhares dos moradores. O que antes chocava, agora é ignorado.
Até que ponto a violência se tornou normal para a população das grandes cidades brasileiras? O corpo, estendido e ensanguentado, passa a ser apenas mais um elemento que compõe a foto. Como um carro, um cachorro, uma bicicleta que passa. Ou até mesmo como uma pedra no chão. Honestamente, fotos que contrastam uma tragédia com a normalidade das pessoas já não são raras hoje em dia Infelizmente já vi muitas. Mas a risada farta da garota choca. O que será que levou a garota a uma risada tão aberta frente a um cenário tão ruim? Será que ela conhecia a pessoa que está ali caída? Será que era um vizinho? E as crianças, ainda de chupeta, o que fazem tão tranquilamente próximas a um cadáver? Tornou-se tão banal que nem mesmo as crianças ligam para a cena. Seus pais, então, se estiverem presentes, muito menos. A foto só conseguiria passar mais a sensação do quão banal esse tipo de cenário se tornou se, na composição, existisse um grupo jogando baralho, quem sabe dominó, ou até mesmo futebol.
A legenda explica para os estrangeiros que Recife é duas vezes mais violenta do que o Rio de Janeiro e possui uma média de 90 homicídios por 100 mil habitantes. Há anos a cidade vem se destacando nas linhas de estudo sobre criminalidade. E, pelo que parece, os moradores da favela onde Thiago morreu já consideram os fatos uma coisa normal.
Além da foto de Eraldo Peres, havia mais brasileiros se destacando no concurso. Na categoria "Notícias gerais" o fotógrafo Luiz Vasconcelos, do jornal A Crítica, levou o primeiro prêmio com a foto de uma indígena que carrega uma criança no colo e, ao mesmo tempo, tenta conter um batalhão da polícia durante uma invasão de terras em Manaus. A foto relata o desespero de uma mãe, que, ao se ver sem saída, enfrenta a dezena e talvez centena de polícias que tentam lhe tirar o pouco que tem. Numa categoria mais leve, André Vieira, da Focus Photo und Presse Agentur, ficou em terceiro lugar na categoria "Artes e Entretenimento" por um registro do estilista angolano Xhunos, feito em Luanda. Além dos brasileiros, várias fotos do fotógrafo mexicano Carlos Cazalis, que traziam mendigos dormindo em frente ao elitista Jóquei Club de São Paulo, se destacavam na exposição.
A foto principal de que trato no texto é brasileira, e talvez tenha me chamado mais a atenção por isso. Mas havia outras com o mesmo tema, mostrando que esse tipo de situação não é exclusiva do Brasil. No primeiro prêmio da categoria "Cotidiano", a foto de Lissete Lemos, do El Diário De Hoy, mostra crianças dentro de uma van escolar que observam o corpo de Petrona Rivas, mãe de dois alunos e morta a 200 metros do portão da escola, em El Salvador.
São adultos e crianças expostos à violência diariamente, o que os leva a tratar fatos como esses com normalidade. Na exposição, também não há limite de idade. No meio disso tudo, uma criança aparentando cinco anos pergunta para o pai: "Papai, o que é aquilo?". E o pai responde, sem cerimônia: "É uma pessoa morta, boiando". Ele se refere à foto de Olivier Laban-Mattei, sobre o ciclone que devastou Mianmar, em maio de 2008.
Durante o tempo que se leva para percorrer a exposição, também nota-se que a violência não é novidade nem mesmo para aqueles que estão ali só a olhar. Entre fotos com temas como natureza, esportes, retratos, política, desastres e mortes, as duas últimas são as que mais atraem as atenções e onde as pessoas parecem demorar mais a ir embora.
Desde 1955, a missão da fundação holandesa que organiza o World Press Photo é encorajar o fotojornalismo. A competição recebeu este ano o número recorde de 5.019 candidatos, de mais de 125 países. No total, 96.268 fotografias foram avaliadas pela comissão julgadora. Os prêmios para os vitoriosos foram entregues em Amsterdã no dia dois de maio. As fotos seguirão em exposição, chegando ao Rio de Janeiro no dia 29 de julho, onde ficará até 23 de agosto. Para conferir essas e outras fotos vencedoras do prêmio deste ano basta acessar o site oficial do evento.
Prezada Glória, é a partir destas barbáries que se confirma uma das teses da ilustre filósofa alemã Hannah Arendt, na qual se afirma a fragilidade das ditas democracias modernas, as quais podem vir a servir de base para a construção de novos regimes políticos totalitários, novos horrores, novos holocaustos...
A foto da índia versus a polícia é, sem dúvidas, a mais impressionante e bonita. A outra, virou clichê, neste país onde a carne humana, na maioria dos casos, é mais barata do que a de um bovino.